KALAH – ANÁLISE DO JOGO E SUAS POSSIBILIDADES
NA INTERVENÇÃO PSICOPEDAGÓGICA
Lia Leme Zaia
O kalah é um jogo que permite a introdução e/ou a construção de novas regras à medida que evolui. Inicialmente parte-se de algumas regras explicadas previamente, tais como:
· o objetivo do jogador é colocar um maior número de sementes em seu kalah
O Kalah é um jogo de estratégia pouco conhecido no ocidente e bastante difundido no continente africano e parte do asiático. Da mesma forma que o Mancala, o Awélé e outros semelhantes, em sua forma original, é jogado com sementes, pedregulhos ou conchas, “semeados” em covas feitas no solo, ou escavadas em um tabuleiro de madeira. Em todas as variações, as covas (casas) estão dispostas em fileiras e a “semeadura”, numa determinada direção, possibilita o desenvolvimento de estratégias para “colher” o máximo de grãos, segundo regras próprias de cada variante, bem como propicia o estabelecimento de relações termo-a-termo e, conseqüentemente, o desenvolvimento da conservação.
Seu material (figura 1) é composto por um tabuleiro retangular com doze covas, distribuídas nas laterais do retângulo: duas (chamadas kalah) situadas no centro das laterais menores e um grupo de cinco localizado, no sentido do comprimento das laterais maiores. Para a “semeadura” usam-se trinta e duas sementes iguais.
FIGURA 1
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O kalah é um jogo que permite a introdução e/ou a construção de novas regras à medida que evolui. Inicialmente parte-se de algumas regras explicadas previamente, tais como:
· o objetivo do jogador é colocar um maior número de sementes em seu kalah;
· para iniciar o jogo, cada participante distribui (planta) três sementes em cada cova, com exceção daquela localizada no centro do comprimento, onde deve colocar quatro;
· os kalahs, situados nas laterais, devem ficar vazios;
· os participantes fazem suas jogadas alternadamente, procurando garantir mais sementes em seu kalah;
· na sua vez, o jogador pega todas as sementes de uma das covas, do seu lado do tabuleiro (sua casa), e “semeia”, colocando uma em cada casa à direita, sem pular nenhuma, nem colocar duas sementes numa mesma casa;
· cada vez que passa pelo seu kalah deixa uma semente, continuando a distribuição no lado do adversário e não colocando sementes no kalah do outro jogador;
· o jogo termina se um dos jogadores não tiver mais sementes para movimentar.
Quando as primeiras regras já assimiladas possibilitarem o desenvolvimento do jogo sem muitas dúvidas, serão introduzidas, uma de cada vez, duas novas regras que exigem antecipação e planejamento das jogadas:
· sempre que a última semente cair no seu kalah, o participante terá o direito de jogar novamente, mesmo que seja em jogadas consecutivas;
· toda vez que a última semente cair em uma cova vazia, do lado do jogador, ele terá o direito de recolher as sementes do adversário que estiverem na cova diretamente oposta à sua e colocar em seu próprio kalah.
Outras regras podem se tornar necessárias, em função dos impasses e conflitos gerados na continuidade do jogo, podendo ser aprendidas com os mais velhos ou com os adultos ou, ainda, discutidas e combinadas entre as crianças.
Já na distribuição das sementes, há um forte apelo à cooperação, pois, se a criança não semear nas covas do parceiro, este não terá sementes e o jogo terminará. Assim, propiciar o desenvolvimento da cooperação e a reciprocidade nas relações são fortes razões para a escolha desse jogo.
Nas diversas partidas que tivemos oportunidade de observar , com a participação de diferentes sujeitos, foram muito poucos os momentos em que a competição se tornou exacerbada, mantendo-se o equilíbrio entre a cooperação e competição.
Embora a colaboração entre as crianças não seja comum nas primeiras partidas, a necessidade do parceiro compreender as regras e inventar estratégias para o jogo ter prosseguimento provoca, em algumas situações, condutas espontâneas de ajuda ao outro. Estas acabam se disseminando entre as crianças e, aquelas que são auxiliadas em algum momento, mais cedo ou mais tarde passam também a auxiliar outras.
Algumas situações não são compreendidas facilmente pelas crianças e vários procedimentos demoram para se tornarem habituais. É o caso da distribuição das sementes nas covas do adversário. É comum a criança suspender a semeadura logo depois de colocar as sementes no próprio kalah para perguntar o que devem fazer. Também é comum o jogador novato ou pouco experiente evitar as covas com muitas sementes, pois sua escolha provocaria a distribuição do outro lado do tabuleiro. Não percebem que, assim, deixam de colocar sementes em seu próprio kalah.
As crianças demoram para compreender que, ao evitarem semear do outro lado, acabam perdendo a partida por colocarem menos sementes no kalah ou que, se não semearem do lado do adversário, o jogo pode terminar mais cedo do que o desejável, pois encerra-se a partida quando um jogador não tem mais sementes para semear.
É necessário intervir muitas vezes para modificar um pouco essa atitude, questionando a criança sobre seus procedimentos e os resultados obtidos, propondo comparações entre as situações em que semearam nas covas do adversário e as que evitaram, perguntando o que poderiam fazer para colocar mais sementes em seu próprio Kalah.
Colocar sementes do lado do adversário implica uma descentração, no mesmo sentido da coordenação de ações com um parceiro em atividades de conhecimento físico. Coordenar ações com o outro é um procedimento anterior e necessário à construção da cooperação.
Outra dificuldade encontrada pelas crianças neste jogo se relaciona ao fato das sementes colocadas por elas no campo do parceiro, passarem a ser movimentadas por este, contrariando as expectativas desenvolvidas pelas dinâmicas de outros jogos mais conhecidos e exigindo descentração muito grande e ampliação da perspectiva de posse.
Compreender que as sementes, plantadas no outro lado do tabuleiro, devem ser movimentadas pelo adversário, implica a superação da idéia de posse. As sementes deixam, na verdade, de pertencer a este ou aquele jogador, uma vez que sua localização indica apenas quem pode manipulá-las em determinado momento, situação que pode ser invertida no momento seguinte.
Como todo jogo de estratégia, o kalah propicia o levantamento e a análise das possibilidades de uma determinada situação e o planejamento de seqüências de ações. A extensão desse planejamento é constantemente ampliada, de acordo com o desenvolvimento das possibilidades dos participantes tomarem consciência das jogadas feitas e de seus resultados, lembrando as situações e estratégias anteriores para comparar com a situação e as possibilidades atuais
A elaboração de estratégias, as possibilidades de descentração, de antecipação e análise das conseqüências de uma ação acompanham o desenvolvimento cognitivo das crianças. Dessa forma, o jogo torna-se interessante para crianças de diversas idades, adolescentes e adultos, podendo se tornar um instrumento útil ao trabalho pedagógico, à intervenção psicopedagógica, bem como na formação de professores.
Algumas regras exigem antecipações, como o direito de jogar novamente quando a última semente cai no próprio kalah. De acordo com essa regra, isso pode se repetir várias vezes numa mesma jogada, bastando que a última peça colocada caia seguidamente no próprio kalah.
Logo após a explicação dessa regra, as crianças se restringem a tirar proveito das condições ocorridas ao acaso e nem sempre tomam consciência da possibilidade. Depois, vão ficando mais atentas, aproveitando melhor essa regra, mas ainda sem provocar as circunstâncias necessárias. Mais tarde, começam a contar as sementes de cada cova e a comparar com o número de covas existente entre elas e o kalah.
Inicialmente só se preocupam em escolher aquela que possibilita jogar novamente, de imediato. Depois começam a ampliar essa possibilidade, procurando estabelecer uma ordem de escolhas, de forma a repetir a jogada o maior número de vezes. Assim, ampliam as possibilidades de antecipação e planejamento, construindo estratégias que envolvem um número crescente de jogadas.
Outra regra que, para ser aproveitada exige antecipação de situações e planejamento, relaciona-se à captura das sementes do adversário. Quando a última semente cai em um espaço vazio, do lado do jogador , este pode capturar (“comer”) todas as sementes do outro participante, no espaço diretamente oposto ao seu, colocando-as no seu kalah. Nesse caso, o jogador não tem direito a outra jogada.
Como as outras regras, a dificuldade inicial é grande. As crianças não conseguem planejar, isto é, escolher o lugar de onde retirar as sementes para a última cair na cova vazia. Da mesma forma que ocorre com a outra regra, de início só aproveitam as circunstâncias ocorridas ao acaso e só aos poucos começam a antecipar e a planejar. Acostumados a agir impulsivamente, demoram para sentir a necessidade de refletir antes de qualquer ação. É justamente nisso que consiste uma das vantagens desse jogo: provocar a necessidade de pensar para agir, ou melhor de analisar a distribuição das peças no tabuleiro para escolher a melhor possibilidade de ação.
Evidencia-se, novamente, a dificuldade relacionada com a inversão quando, já de posse de todas as regras, as crianças começam a perguntar se podem “comer” as sementes da cova da frente, quando a última semente cai em uma cova vazia do outro lado do tabuleiro, sem se darem conta de que se trata do seu próprio lado.
Considerando essas situações, evidencia-se a dificuldade para coordenar os diferentes observáveis do jogo, seja para obter um número maior de jogadas, seja para capturar as sementes do adversário e, assim, acumular pontos no seu kalah.
Enquanto as crianças permanecem centradas na própria ação de semear, não consideram as possibilidades de fazer coincidir a última semente com o seu kalah ou com a cova vazia. Jogam ao acaso, sem planejamento ou antecipações, deixando essas situações passarem despercebidas por diversas vezes.
Para considerar a quantidade de sementes em cada cova, a situação das covas vizinhas e a relação entre elas, de forma a conseguir uma nova jogada ou completar o seu kalah com o número maior de pontos, são necessárias abstrações reflexivas. Explicando melhor, a antecipação do lugar onde vai cair a última semente de determinada cova implica na comparação mental de quantidades, isto é, compara-se mentalmente a quantidade de sementes existentes em uma cova com o número de covas intercaladas entre ela e o kalah ou a cova vazia.
De início, as crianças só estabelecem essas relações ao semear efetivamente, (nível do fazer), passam depois a estabelecê-las por meio de gestos, sem distribuir as sementes, para só mais tarde relacioná-las mentalmente. Consideramos o uso de gestos, sem efetivar a ação, como uma situação intermediária entre o nível do fazer para ver o que acontece (escolher cova ao acaso) e o planejamento que envolve a escolha da melhor situação, considerando diversas possibilidades. Durante esse período em que são construídas as possibilidades de antecipar e planejar, as perguntas e os erros são muito freqüentes.
Algumas vezes, ao estabelecerem as relações entre as sementes e as covas, as crianças não excluem aquela de onde elas seriam retiradas, por isso não chegam a uma previsão correta. No momento da distribuição, ou deixam uma semente na cova de onde retiram as outras, ou não terminam a distribuição das sementes na casa vazia, ultrapassando-a.
Outras vezes, quando mais de uma cova tem o número suficiente de sementes para a última atingir o kalah, não sabem escolher por onde começar. Assim, por exemplo, se a última cova antes do kalah possui uma semente e a penúltima duas, podem iniciar por esta e, depois de garantir mais uma jogada, surpreender-se com as duas sementes na última cova, impedindo que a semeadura termine no kalah.
Após sucessivas descentrações, provocadas pelas situações em que se envolvem durante o jogo, as crianças começam a considerar as possibilidades abertas pela distribuição das sementes no tabuleiro, dando início a um planejamento incipiente. Assim, se uma das covas possui uma quantidade suficiente de sementes para atingir o kalah, a criança já pode considerar interessante esvaziá-la primeiro e, depois, usufruir o direito a uma nova jogada.
Quando mais de uma cova encontra-se nessa situação, já pode escolher as covas da esquerda para a direita, de forma a não prejudicar nenhuma possibilidade de jogar novamente, com a semeadura de mais uma semente na cova que já continha o número exato de sementes necessárias para chegar ao kalah.
Despreocupadas com o que ocorre do outro lado do tabuleiro e não procurando antecipar o que pode acontecer, inicialmente as crianças são constantemente surpreendidas pelas estratégias do adversário.
Com o tempo, acabam sentindo a necessidade de observar os indícios do jogo e as estratégias dos parceiros. Uma cova vazia do outro lado do tabuleiro passa a representar perigo e o sujeito retira as sementes da cova que se encontra diretamente oposta àquela ou preenche com suas sementes as covas vazias do adversário.
Poucas sementes, no lado do adversário, pode indicar a proximidade do término da partida. Assim, se o seu prolongamento for interessante, a criança pode distribuir as sementes das covas mais à direita, de modo a preencher as primeiras covas do outro.
Embora antecipando algumas soluções e apresentando um início de descentração, algumas crianças não chegam a determinar onde cairiam as últimas sementes de todas as covas ou a planejar o aumento da quantidade de uma cova, antes de esvaziá-la. Por exemplo, quando falta uma semente em uma casa para a última semente chegar ao kalah, é difícil distribuírem as sementes de uma outra cova à esquerda para, na sua próxima vez, realizar a jogada planejada com o número acrescido de sementes.
Esse planejamento implica a diferenciação de objetivos sucessivos em direção ao êxito, exigindo grande flexibilidade de pensamento para considerar várias possibilidades ao mesmo tempo e seqüenciar as ações necessárias.
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Publicado em 01/01/2000
Lia Leme Zaia – Coordenadora do Curso de Especialização em Psicopedagogia na F.F.C.L. de São José do Rio Pardo, Pedagoga e Psicopedagoga, Doutora em Psicologia Educacional pela FE-UNICAMP, Membro do Laboratório de Psicologia Genética – FE – UNICAMP.
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