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Artigo Entrid 268

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MUNDIALIZAÇÃO, AS RELIGIÕES E OS JOVENS

Jorge Claudio Ribeiro

Nesse estudo, serão colocadas em diálogo as Ciências da Religião e a Teologia com as Ciências Sociais.

1- INTRODUÇÃO



Pretendo aqui estudar as inter-relações entre a mundialização da cultura e as religiões, suas parcerias, conflitos e próximas etapas. Nesse contexto, analisarei de que forma esse processo impõe padrões, delimita espaços e oferece alternativas para a expressão da religiosidade do jovem contemporâneo. No nosso caso específico, penso no público universitário, sobre o qual, junto com alunos de iniciação científica e uma equipe do meu Departamento , estou finalizando uma pesquisa de campo iniciada há quatro anos. 

Nesse estudo, serão colocadas em diálogo as Ciências da Religião e a Teologia com as Ciências Sociais.



2- DESTERRITORIALIZAÇÃO



Com Renato Ortiz , entendo que a modernidade conduz a um quadro de desterritorialização. A globalização material rompeu com uma ordem geopolítica e comercial baseada nos conceitos de Estado e Nação, desde a origem altamente ideológicos. Mais que unificadores, tais conceitos são mascaradores das várias formas de opressão de classes.

Tanto o mundo contemporâneo como o “tradicional” são universos atravessados pela dimensão simbólica. Nesse último, a identidade e o território locais (e mais tarde nacionais) eram lugares em que o indivíduo se inseria espacial, espiritual e profissionalmente num contexto sobretudo familiar e agrário. Segundo Ortega y Gasset, nesse período o indivíduo conhecia seu lugar, confinado que estava a territórios bem delimitados. 

Esse tempo foi velozmente sepultado. Nas nações centrais, a sociedade industrial rompeu as fronteiras territoriais e integrou à força os mercados nacionais e coloniais . Com isso, a formação das sociedades modernas exigiu que as relações sociais não mais se prendessem ao contexto local. A paulatina supremacia da modernidade impôs novo “ambiente espiritual”. A modernidade ganhou mundo e, sobre uma hegemonia sustentada pela homogeneização, instaurou a diversidade e privilegiou a individualização das relações sociais, a autonomia do indivíduo e a afirmação do específico. Segundo Toffler, enquanto a Segunda Onda industrial emitiu uma mensagem padronizadora, niveladora e “de massa”, aos poucos a Terceira Onda atual impôs a pluralidade e segmentação de ofertas; ante elas o indivíduo, e mais ainda a juventude contemporânea, sente-se livre para buscar o que lhe interessa. 

Nas sociedades tradicionais, as principais agências socializadoras eram a família, as religiões, a escola (nos países centrais), a política, a cultura e a comunicação sobretudo impressa. Atualmente a socialização é realizada pelo mercado global, pela tecnologia informática e pela indústria cultural. A televisão é o veículo por excelência de uma cultura para as massas. Nesse contexto são redimensionados, de fora para dentro e quase à sua revelia, os espaços urbanos, familiares, religiosos, educacionais e laborais. Daí resulta um padrão civilizatório mundializado marcado pela transição entre hegemonias e pela violenta convivência de padrões “arcaicos” com os contemporâneos. 

Sendo cortadas suas antigas raízes, o jovem busca uma identidade que tenha referência às massas. Dispondo de forças poderosíssimas, a face cultural da modernidade acelera o “desencaixe” geral e engendra novos referenciais identitários. Isso é facilmente constatável com respeito à juventude, fase por si desenraizada que se apega “filialmente” a símbolos decantados e oferecidos pela globalização. Sendo que uma cultura só se torna efetiva ao concretizar-se no cotidiano, a forma privilegiada de inserção na modernidade ocorre mediante o consumo que, para além dos bens e serviços, se erige como ética e como conduta. 



3- RETERRITORIALIZAÇÃO



O mundo se esvaziou de paradigmas e de conteúdos mas é preenchido de novo, de acordo com as forças sociais atualmente hegemônicas. À desterritorialização se segue uma reterritorialização (não há “fim do território”) . Constroem-se novas identidades a partir de novos referentes. Essa dinâmica coincide com a concepção de Lévi-Strauss, para quem a identidade não é uma substância palpável mas lugar virtual, construção simbólica em constante mutação . O mundo se desterritorializa como Nação e se re-territorializa em outro nível: a cotidianidade, enquanto consumo, tecnologia, “cultura mundial” de consumo e cultura de massa.

Se, na fase anterior, a escola e o Estado foram atores privilegiados nesse processo, as novas agências mundiais favorecem a elaboração de identidades desterritorializadas a que a juventude é particularmente passível. No entanto, existe aí um jogo de poder, demarcado por uma hierarquia clara e impiedosa baseada na imposição de legitimidades.

A mídia, e dentro dela a filosofia e a linguagem publicitárias, se ocupa da educação das massas para o consumo e para a “cidadania mundializada” . A publicidade tem um duplo objetivo: instrumental e espiritual. Torna-se necessária uma educação que “ajude” as massas a escolher produtos e a adquiri-los. Ao mesmo tempo, a complexidade da vida urbana transforma os jovens em consumidores atomizados e necessitados de um vínculo, o qual é fornecido por agências do consumo que consagram valores e orientam a conduta . 

Tal orientação se torna tanto mais necessária quando se considera que palavras como “mercado” e “consumo” são plurais, polissêmicas. Bourdieu aponta como cada grupo e classe social consome objetos materiais e bens simbólicos segundo seu capital cultural: o universo cultural não é espelho uniforme mas palco de distinções e conflitos . Daí a tendência de segmentação, voltada para mercados mundializados, re-territorializados segundo seu modo de consumo.



4- RELIGIÕES E MUNDIALIZAÇÃO



A face “espiritual” da mundialização da cultura rebate de duas maneiras, pelo menos, sobre as religiões: como conflito e como incorporação. 

Relegadas a um plano menor, enquanto agências socializadoras outrora hegemônicas e vendo seu poder reduzido sobre corações e mentes de seus adeptos, as grandes religiões constatam a corrosão numérica de seu rebanho – mundialmente civilizado pelo consumo, pela mídia e pela tecnologia – que passa a canalizar e explicitar sua religiosidade em formas equivocadamente qualificadas como “alternativas”. Essas tendem rapidamente a se tornar as religiões oficiais da modernidade-mundo. 

A teóloga feminista católica Ivone Gebara reconhece o crescimento impressionante de expressões fundamentalistas, pentecostais ou carismáticas. Estádios imensos se enchem de fiéis em catarse, em louvor e falando em línguas: “Emocionam-se, choram, gritam. Curas, exorcismos especialmente sobre mulheres, solução de problemas econômicos e afetivos são o cotidiano dos programas de TV e dos centros de expansão dessas religiões”. 

Como entender a relação entre religiões e mundialização?

Historicamente, as religiões chegaram antes, e à sua maneira, à mundialização. Elas são uma parte significativa da memória coletiva mundial. E têm know-how para tanto: consolidaram locais, símbolos, história, hierarquias e metodologias de trabalho. Conseguiram articular, não sem tensões, a contradição “mundialização/ enraizamento”. Cada época histórica realizou uma síntese original e pendular dos dois pólos. Apesar de intenções universais, seu sectarismo as tornou fortemente territorializadas. 

No nível religioso, como em outros âmbitos, a modernidade detona a diversidade. Interfere na religiosidade dos indivíduos, sobretudo o jovem, ao libertar a individualidade, na qual se enraíza sua consciência individual, lugar de decisões (inclusive de consumo). Criadora de homogeneidades, a modernidade tende a diluir as fronteiras entre as religiões e a implantar no campo simbólico um “ecumenismo de mercado e do consumo”. Caracterizado por um estilo emocional, espetacular e, por isso mesmo, infantilizante, esse ecumenismo resultaria numa neo-religião amorfa, sem nome e sem Deus, aquém das denominações religiosas, de suas diferenças, lutas e conquistas. As novas denominações surgiriam num nível mais superficial, tais como modelos diversificados de uma mesma fábrica. Por não perceberem essa diferença, muitos jovens se sentem, em sua busca religiosa (que é intensíssima), à vontade para trocar freqüentemente de “marca”, o que não necessariamente os satisfaz. Nem haveria mais ecumenismo verdadeiro, uma vez que este supõe o diálogo na diferença e não o conformismo do vale-qualquer-coisa.

A globalização aboliu a noção de “estrangeiro”, que serve tanto para os viajantes como para as religiões. Se não há mais Nação, não há mais o conceito de “religião nacional”, como esteio de identidade. No espírito do jovem cidadão do mundo contemporâneo cabe qualquer crença, desde que esta se adeqüe a uma religiosidade previamente formatada pelo mercado, mesmo que disso ele não se dê conta. 

Entendo religiosidade como uma dimensão característica do ser humano -determinada histórica, cultural e singularmente – e que se articula com a busca de sentido para a totalidade da existência. A religiosidade uma possibilidade, uma necessidade e um horizonte desde as origens da humanidade. Formalizada como religião, mitos, arte e organização social, entre outros, a religiosidade apresenta formas diversas em cada sociedade e fase histórica. Atualmente, “ela sofre o impacto da modernidade avançada no que se refere, quer aos seus valores, quer às suas expressões religiosas”. 

Ocorre com as religiões o que aconteceu com o automóvel e com os produtos eletrônicos “mundiais”, cujos componentes são fabricados em diversos “países” e o conjunto é montado em qualquer país e levado para onde os consumidores estão. Resulta daí uma simbiose religiões/ sociedade+ cultura de massa ou mercado religioso/ tecnologia. Num primeiro momento, a religião imita a cultura de massa; no segundo momento atual, a modernidade invade a religião, rompe suas fronteiras e seu mercado cativo, usando sua especialidade: o gerenciamento, a tecnologia e a habilidade de conquistar corações e mentes. No nosso caso, dos consumidores. 

O fenômeno recente dos padres cantores é sugestivo. Serão mais sacerdotes ou mais cantores? Quem usa quem: a religião usa a multinacional do disco ou esta é patroa daquela? A multinacional programa a “carreira” do sacerdote-cantor e produz clones dele em vários países. 

Aliás, esse fenômeno foi impulsionado com o próprio papa assumindo o papel de megastar da propaganda da fé. Até que ponto é propaganda, até que ponto é “da fé”? Lembre-se que Wojtila usou a própria imagem à exaustão em suas viagens nas quais a estratégia era reunir multidões. Principal executivo da multinacional eclesial, o papa se localiza decisivamente do lado do pólo da mundialização contra o pólo do enraizamento. Tenta impor a romanidade como universalidade não hesitando em destruir as resistências locais, representadas por conferências episcopais, teologias (como a da libertação) ou ritos nacionais (como os africanos). Sua prática ecumênica levanta suspeitas no sentido de que, no fundo, seria uma tentativa de impor algum tipo de liderança sobre outras religiões.



5- ALTERNATIVAS



Restaria algum espaço para a religião enquanto valor de uso e não enquanto valor de troca, mercadoria? Como se fará a revanche?

Tem a palavra a Teologia, que aqui assume seu inteiro papel de reflexão crítica. Aponto algumas pistas, visto que a compreensão consolidada de possibilidades é o objetivo a ser sempre buscada. 

Uma primeira possibilidade que vejo já é tradicional: a contestação. “Não vos conformeis ao espírito desse mundo” grita o apóstolo, do fundo dos tempos bíblicos. Atendendo ao chamado da encarnação, as religiões sempre se nutriram, transcendendo, dos pecados das sociedades e das épocas em que se enraizaram. Paralelamente, procuram manter distância e crescer frente ao solo sem dele se destacar. Contestando o mundo, contestam-se a si mesmas. Gebara, por exemplo, denuncia essa “religião do mercado e da mídia” como uma pseudo-religião, pois nem sempre desperta a compaixão, a justiça e a mutualidade: “É uma religião do imediato, que reduz os problemas e sofrimentos a procedimentos quase técnicos. É uma religião para um ‘mundo sem coração'”. 

Contra a espetacularização da vida (religiões aí incluídas) e o consumo guloso de sensações (inclusive espirituais), Gebara defende a maturação lenta de um sentido para a vida, com a compreensão de conteúdos, a formação do caráter e um referencial de valores. Suas críticas integram uma torrente de desconforto generalizado do pensamento teológico frente à mundialização; mas também revelam uma compreensão ainda insuficiente do desafio histórico que a modernidade representa para as religiões.

Junto com a etapa crítica, é preciso agir. Um primeiro passo para o novo enraizamento crítico das religiões na modernidade seria abandonar o proselitismo (que atualmente adota estratégias de conquista de jovens consumidores e mercados). Em seguida, assumir o compromisso com a localidade. O “local” é o que está realmente presente em nossas vidas, nos reconforta com sua proximidade e acolhe na familiaridade. A raiz é identidade, relaciona-se com seu terreno: o desenraizamento é uma perda, uma ameaça. O “local” é lugar da diversidade , a qual é diferença e não variedade de ofertas.

Mas o local não é autônomo do nacional e do global. A mundialização da cultura se define como transversalidade ao atravessar territórios cada vez mais vastos. Que espaços novos, que possibilidades a modernidade abre para a religiosidade da juventude, a quem nos compete educar?

Primeiro, o espaço do desafio. A questão ética central é que a matriz mundial das agências socializadoras ancora-se na dinâmica da mercadoria. São incapazes, porque a isso não se propõem, de localizar e de abrir a “caixa preta” da pessoa humana. Esta não amadurece em estufa, tal como gado confinado, e sim na solidariedade e na entrega. A vantagem da religião é que ela tem experiência em se misturar com os fatos e impasses do cotidiano, o que é particularmente valioso para alcançar indivíduos desterritorializados e intimidados. 

Em segundo lugar, como aproveitamento das “brechas do sistema”. Se os mercados não se tornam hegemônicos sem conflitos, aí surge espaço para a reflexão crítica a partir da diversidade sufocada mas não sepultada.

Terceiro, como positividade. Essa é a reflexão mais difícil porque a situação é inteiramente nova. Decerto a mundialização tem o que oferecer às religiões. Uma possibilidade está na quebra das fronteiras e na disseminação do conhecimento e de alternativas culturais. Outra possibilidade é o avanço de uma compreensão científica da subjetividade, que pode levar à defesa da liberdade de consciência de cada um, num espírito de verdadeira tolerância. Outra ainda seria, a exemplo do movimento ecológico, a articulação mundial dos engajamentos locais. 

Haveria outras alternativas mas aí tocamos no limite da pesquisa e do pesquisador. Avançar nesse terreno é minha proposta.


ORTIZ, R. Um outro território, São Paulo, Olho d’Água, 1996
ORTEGA y Gasset,. “La rebellion de las massas” in Revista de Occidente, Madrid, 1956, p.51-2
ORTIZ, R. Op. cit. p.79
TOFFLER, A. The third wave. Nova York, Bantam Books, 1980, p. 158
ORTIZ, R. Op. cit. p. 84
idem, pp. 49;60
idem., p. 73
RIBEIRO, Jorge C. Sempre Alerta – condições contradições do trabalho jornalístico, São Paulo, Brasiliense/ Olho d’Água, 1994, pp. 92-104
ORTIZ, R. Op. cit. p. 106
BOURDIEU, P. La distinction, Paris, Minuit, 1980
GEBARA, I. Teologia ecofeminista, São Paulo, Olho d’Água, 1997, p. 98
LIBÂNIO, J.B., in Diálogo, março/1997, no. 5, p. 11- 19
GEBARA, Op. cit. p. 85
ORTIZ, R. Op. cit. pp. 54.58
idem, p. 56

Publicado em 01/01/2000


Jorge Claudio Ribeiro – Professor, Doutor Departamento de Teologia e
Ciências da Religião da PUC/SP

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