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ADOÇÃO : CONSTRUINDO A IDENTIDADE PARENTAL
Elizabeth Polity
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Penso que para construir com as famílias, dinâmicas mais favoráveis dentro do processo de adoção, é importante que possamos abrir espaço para discutir a constituição da nova identidade parental, não enfocando apenas um aspecto – intra psíquico ou social – mas ampliando nosso repertório e o das famílias, para realidades mais amplas.
INTRODUÇÃO
A idéia deste trabalho surgiu a partir dos questionamentos e discussões relacionados ao atendimento de famílias com o desejo de adotar uma criança.
O tema da adoção é vasto e passível de ser avaliado sob diferentes prismas. Ao abordá-lo, resvalamos em outro tema, não menos complexo, que é a formação da identidade parental do casal.
Embora, hoje em dia, as adoções possam ser efetivadas por casais com filhos e pessoas solteiras, a maior procura surge entre casais que por alguma razão, não conseguiram gerar filhos biológicos. Neste sentido, a esterilidade ou infertilidade também aparecem como questões relevantes associadas ao tema adoção e identidade.
Todos sabemos, que o período de gestação oferece uma oportunidade para o casal ir se constituindo na nova identidade: a de pai e mãe. Entretanto, na adoção, esta condição é muito diferente, o que demanda do casal um processo de identificação com os novos atributos, sem muito “tempo de aquecimento”. É sobre essa passagem que pretendo refletir ao longo do trabalho.
Podemos definir identidade com base em diferentes vertentes epistemológicas. Adotarei aqui, duas definições distintas, que servirão de base para a discussão do assunto: a Psicanalítica, num enfoque subjetivo, e a Antropológica, num enfoque social.
SÍNTESE TEÓRICA
Embora a noção de identidade não seja um conceito psicanalítico, este termo é freqüentemente usado na clínica onde se fala de problemas de identidade, sentimento de identidade, perda de identidade, etc.
Entretanto, toda tentativa de tratar a questão identitária trará consigo, contradições e impasses e deverá necessariamente levar em conta a noção de identificação.
Para a psicanálise, a noção de identidade é um tanto marginal pois ela só pode ser pensada de forma dinâmica por ser dependente dos processos identificatórios: por falta de identidade, o ser humano é “condenado” à identificação.
A identidade é o “resultado consciente” dos processos inconscientes de identificação e se traduz pelo fantasma de uma síntese pontual que o sujeito é obrigado a fazer quando ele diz “eu”.
Ela é uma espécie de pano de fundo cuja base é formada pelos conteúdos do recalcado que dão, a cada sujeito, o sentimento de ser sempre a mesma pessoa. A identidade se estabelece a cada instante num movimento ao mesmo tempo particular e paradoxal que se repete continuamente. Ela repousa sobre uma linha imaginária demarcada pelos fantasmas que permitem ao sujeito de resolver o paradoxo entre aquilo que o assemelha e aquilo que o distingue.
Referindo-se ao conjunto dos seres, a todos os “eus” ela é a repetição pois sublinha a identidade dos termos; mas ela é também o que é único quando designa um conjunto particular de características que são, estas características, também identificadas pelo “eu”.
A identidade se forma a partir de processos de identificação, cujo mecanismo de base é a introjeção, se dão pela interiorização dos objetos do mundo exterior, que se opera em um vai-e-vem entre o modo narcísico e o objetal.
Evidentemente, a identificação não se limita apenas a objetos e a imagens idealizadas: ela atinge também aquilo que a censura familiar acredita poder manter em silêncio. Por um “misterioso” processo de comunicação entre inconscientes, são transmitidos os elementos recalcados da fantasmática familiar: os segredos de família(entre eles, às vezes está presente a adoção), as histórias indizíveis de incesto, de suicídio, de crimes, enfim, tudo aquilo que não pode, sob pretexto algum, passar à posteridade.
Entretanto, estes segredos recalcados, verdadeiro “capital transgeracional”, podem retornar, sob formas de sintomas, de delírios, de somatizações variadas, para assombrar toda uma descendência que se encontra, às vezes, a várias gerações de distância: é neste sentido que o sujeito pode representar o sintoma de uma construção dos pais.
Pode acontecer que para se constituir como um igual no grupo, o sujeito, deva seguir referências identificatórias precisas e rígidas que o levarão a ocupar um lugar na economia libidinal da família, ou do sistema social, em ressonância com as expectativas para ele impostas..
Antes de apresentar um caso clínico para ilustrar a formação da identidade parental na adoção, cabe lembrar o conceito de identidade na antropologia.
Vygotsky (1984) coloca que a personalidade é o resultado da totalidade de relações sociais pelas quais passa o indivíduo, o qual as internaliza. Assim, para podermos falar de identidade parental devemos considerar não só o aspecto interno mas, e sobretudo, o relacional, presente na formação da identidade do sujeito/casal.
Segundo Erikson (1968:169), ideologia e identidade são aspectos do mesmo processo, onde a ideologia pode ser definida como um corpo coerente de imagens, idéias e ideais compartilhados, que implica num modo de vida e provê os participantes de uma orientação coerente e total. A identidade seria uma representação de si, uma idéia ou ideação de si mesmo, que pode ser incluída como parte desse corpo coerente de idéias.
Podemos falar então, em identidade social como uma forma de representação coletiva, como um fenômeno que emerge da dialética entre indivíduo e sociedade.
Sob a óptica da Antropologia, o conceito de identidade é atravessado por outros como grupo social e cultura, pois ela trabalha com as noções do sujeito inserido nas estruturas sociais. O que eu sou, ou como eu me vejo está sustentado pelo meio onde vivo.
As diferenças conceituais entre a Psicanálise e a Antropologia resultam de diferentes enfoques e de método de observação de cada ciência com respeito a questões que recebem destinos disciplinares diferentes. A esse trabalho interessa essa visão ampliada, na medida em que pretendemos falar da construção de uma identidade como um processo que envolve questões subjetivas e sociais.
A identidade pode ser definida como um jogo dialético entre semelhança e diferença: O que eu tenho em comum com o grupo? O que tenho de diferente? O que devo ter para ser semelhante ao grupo de mulheres/homens desse sistema social?
Na adoção podemos nos referir a relações de identidade, que supõem a existência de duas ou mais identidades, denominadas complementares ou combinadas: pai/mãe; pai/filho; mãe/filho.
Essas relações estariam integradas no sistema social que lhes dão origem: Quem é você (casal sem filho/casal com filho)? Como o casal é visto pela família extensiva? Qual a relação com grupo? Que novas funções são agora criadas no sistema familiar?
Como aponta Wallon (1963), no jogo de imitação/negação do outro, que está na base da formação identificatória, onde a palavra é o cerne, pois é a mesma que permite neste processo de conhecer-se de fora para dentro, que o outro – os muitos outros – indique(em) ao sujeito aquilo que ele apreenderá do social como sendo seu.
Por isso, o casal que adota pela primeira vez, passa a ser nomeado como PAI e MÃE. Uma nova identidade é criada para todos os membros da família, e é através da palavra que eles serão reconhecidos.
É também através da palavra que trabalhamos na Terapia Familiar para darmos lugar a essas novas funções criadas quando da adoção de uma criança.
Sabe-se que as relações bi-pessoais, são boas, necessárias, prazerosas, mas para certas ocasiões. Relações muito restritas a dois, correm o risco de progressivo empobrecimento.
A salvação são os “terceiros”. Há que ter um terceiro na cabeça e na realidade. Amantes ou estimulantes trabalhos, são terceiros cogitados com certa freqüência.
Mas, para um casal, o melhor terceiro costuma ser um filho, que permite realizar a estimulante triangulação. Este pode ser uma legítima motivação para a adoção.
Segundo Di. Loreto (1997), “a adoção em si é um fator neutro, inócuo. Não há patologia nem patogenia intrínseca à adoção. Nem pelo lado da criança, nem pelo lado dos pais que adotam”.
Quem for competente para ser boa mãe e bom pai, o será para o filho adotado ou natural, indiferentemente. Podem aparecer dificuldades, mas prevalecerão sempre os traços de personalidade mais profundos, estáveis e verdadeiros.
Quanto à criança, não se pode negar que existe um rompimento psíquico, um desenraizamento, que, em uma família com boa estrutura emocional, poderá ser superado como em qualquer luto normal de qualquer perda.
É uma perda. Comporta luto, reparação e substituição.
Como em toda família, espera-se que o casal, constitua um sistema capaz de dar continência aos seus membros, incluindo aí os filhos adotados.
Segundo o Prof. Di Loretto. (opus cit.), esse sistema torna-se funcional, quando segue determinadas estruturas. Trata-se de uma tetralogia, que ele considera básica para a formação de uma família dentro “dos padrões de funcionalidade”:
1) Função materna – prazerosa e fluente, isto é, com disponibilidade. Não há necessidade de êxtases amorosos, basta ser “suficientemente boa”.
2) Função paterna – firme e sólida. A “Lei do Pai” tem para as crianças, um efeito tranqüilizante. Basta a instalação de um sentido de : “nesta casa tem lei, tem usos e costumes, tem instâncias de arbítrio, autocráticas ou democráticas, mas tem.”
Falamos de função materna e função paterna. Não figura. Nada a ver, portanto, com o irrelevante detalhe de, se quem institui a Lei do Pai, é homem ou mulher.
3) Atração afetiva, sexual e intelectual entre mãe e pai, que reforça o vínculo entre o casal e ajuda a conter os ataques dissociantes e incestuosos que os filhos fazem ao casal parental.
Estas atrações quando presentes, criam o fator mais fundamental para o bom desenvolvimento psíquico dos filhos: o vínculo cooperativo, que oferece um lugar seguro para o crescimento e desenvolvimento da prole.
4) Apego à realidade – a capacidade de nomear a realidade e de viver conforme ela. “Fabricamos ou adotamos um filho: a vida mudou, a realidade é outra e há que aceitar perdas no trabalho, no lazer e em mil outros interesses legítimos. Quando se impregna o apego à realidade de um certo toque ético, costuma-se chamá-lo de “apego à verdade.”
Embora este seja apenas um modelo de funcionalidade – e como todo modelo, uma metáfora – freqüentemente podemos observar em nossa prática clínica a não existência desses fatores comprometendo o funcionamento familiar. O intuito de trazer essa forma de compreensão do funcionamento familiar, deve-se ao fato de querer enfatizar que a adoção em si não acarreta prejuízos à família mas, a dinâmica que se estabelece e as narrativas que se podem formar a partir desta, é que poderão, ou não, ajudar o casal se constituir na nova identidade de uma forma saudável e transformadora.
Quando um casal decide adotar uma criança, muitas modificações acontecem na vida psíquica de cada um e sobretudo na relação entre ambos. Passam de casal à família, de filhos à pais, de marido e mulher, à pai e mãe. São modificações que implicam numa mudança de imagens internas e sociais, que vão determinar uma nova identidade para eles. Mas isso não ocorre sem grande esforço, e porque não dizer também, sofrimento. Há perda e dor. Além da possibilidade de alegrias e crescimento.
É com a intenção de mostrar um exemplo desse processo que trago o caso da família A.
APRESENTAÇÃO
O casal que veio em busca de terapia, com a queixa de dificuldades no relacionamento, em função de não conseguirem ter filhos. Estavam casados há dez anos e já havia feito vários exames, não acusando nenhuma anomalia orgânica, que os impedisse de gerar uma criança. Entretanto, não haviam tido sucesso com implantes e fertilizações in vitro e agora estavam dispostos a adotar uma criança.
Queixavam-se de relacionamento tedioso, de falta de motivação, tristeza e pressão das famílias de origem e da diferença que sentiam em relação a outros casais da mesma idade.
Começaram a se culpar, acusando-se mutuamente pela falta de realização pessoal que estavam enfrentando. Resolveram então que uma boa saída seria a adoção.
Quando conversávamos a respeito, mostravam-se com muita vontade de ter uma criança. Falavam da disponibilidade de amor e tempo que estavam dispostos a doar e como se sentiriam completos se caso formassem “uma família de verdade”.
Com três meses de atendimento foram chamados por uma assistente social, responsável pelo programa de adoção, que os informou da disponibilidade de uma menina com cinco meses de vida, que fora deixada pela mãe na paróquia da Igreja do bairro.
O casal ficou muito contente com a notícia e apressaram-se a tomar as providências necessárias para trazer a garota para casa.
Desta data em diante, algumas modificações significativas puderam ser observadas na relação do casal e na formação de uma nova identidade: a de pais
Ana sentia-se esquecida pelo marido. Não podia mais ser “a garotinha do papai”, pois outra garotinha havia entrado na história deles. Com raiva, dormia logo que o marido chegava em casa. Não tinha mais relações sexuais com ele e negava-se a preparar sua comida. Os comportamentos adultos ficaram comprometidos com a entrada de uma nova criança na família.
Paulo, que já tivera a experiência de ser pai de seus irmãos, em sua família de origem, agarrou-se ao papel paterno, esquecendo-se da função de marido e companheiro, dando muito mais atenção à criança que à Ana. Beijava primeiro a menina ao chegar em casa e só depois de muito tempo é que se dava conta que Ana também estava lá.
Esse comportamento deixava Ana com raiva, que para puni-lo, punha a criança para dormir antes que ele chegasse em casa e não permitia que ele a visse até o dia seguinte.
Essas atitudes geravam brigas e mágoas entre o casal, que por vezes cogitavam se não seria melhor devolver a criança.
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Ao atender este caso pudemos perceber o momento de stress enfrentado pelo casal, para responder às novas necessidades tanto do ponto de vista interno-emocional, quanto do social, com relação às novas identidades parentais.
Supervalorizar o relacionamento adulto-criança significa por em risco o casamento e levar a vínculos emocionais excessivamente intensos entre pais e filhos. Por isso a busca pelo reequilibrio da distribuição do tempo, energia e conexões psicossociais pode permitir ativar recursos poderosos em um sistema para curar a si próprio.
Nos nossos encontros, procurávamos refletir com eles:
· Por que adotar?
· O que faz da adoção um sucesso?
· A que papéis sociais eles estão respondendo?
· Que ajuda, eles precisam para se constituírem enquanto pais?
· Que pressões sofre o casal para adotar ou não?
Ao abordar questões das famílias de origem de ambos, foi possível nomear o que era esperado deles e que tipo de ajuda eles poderia ter da família ampliada.
A família ampliada é um recurso para a família nuclear. Com a chegada de um filho todos os membros avançam um grau no sistema de relacionamentos, sendo que para alguns, esta mudança é apenas nominal, não desenvolvimental ou funcional. É importante pois, para o casal, poder contar com recursos emocionais e de apoio da geração anterior, que também fornece os modelos para esta nova identidade rumo ao desenvolvimento de todo sistema familiar.
Ao poder perceber os sentimentos, os motivos e as expectativas que envolviam a decisão da adoção, foi possível observar as dificuldades que envolviam este processo e que caminhos o casal poderia construir para adaptar-se à nova realidade e a nova imagem identitária que esta realidade trazia.
Aos poucos, foram se percebendo neste novo lugar e puderam discutir e redefinir as experiências, levando em conta como se viam, como eram vistos e como manejavam a “tetralogia da normalidade” dentro do sistema familiar.
A compreensão dos processos internos, com base nos conceitos da Psicanálise, aliada à compreensão dos processos relacionais-sociais, com base nas definições propostas pela Antropologia, oferece uma rica oportunidade à todo sistema terapêutico – casal e terapeuta – de reavaliar os referencias identificatórios vinculados aos processos de adoção, “lugar” de mãe, “lugar” de pai, enfim ao conhecimento do seu “lugar” social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Freqüentemente a adoção está associada a situações geradoras de conflitos ou dificuldades, não apenas pelo senso comum, mas às vezes até por profissionais da área da saúde ou no meio científico. Não foi este o enfoque aqui pretendido, ao contrário, quisemos enfatizar que muitos dos problemas que aparecem nesta área estão mais associados ao funcionamento das famílias, do que ao fato da adoção.
Apesar do tema ser tão antigo e de estar presente ao longo da história da humanidade, como na Bíblia ou nos mitos gregos, como é o caso de Hércules, esta modalidade de constituição familiar ainda continua envolta em preconceito e discriminação.
Quanto a questão da identidade, sabe-se que sempre teremos alguma identidade operante dentro de contextos sociais e familiares com os quais mantemos expectativas e as quais pretendemos dar respostas. Identidade não vem pronta, mas é fruto de uma construção contínua, por isso passível de ser revisitada e redefinida, numa proposta terapêutica.
Penso que para construir com as famílias, dinâmicas mais favoráveis dentro do processo de adoção, é importante que possamos abrir espaço para discutir a constituição da nova identidade parental, não enfocando apenas um aspecto – intra psíquico ou social – mas ampliando nosso repertório e o das famílias, para realidades mais amplas.
Trabalhar com o tema adoção e identidade dá margem para buscarmos muitos conceitos teóricos, bem como, para revermos nossos valores e nossos pré-conceitos no exercício de nossa clínica. Os princípios básicos que aprendemos com essas famílias podem nos oferecer orientações para planejarmos modos de ajudar nossos clientes a lidar com as circunstancias cambiantes desse modelo de organização familiar.
BIBLIOGRAFIA
DI LORETO, W., Pensando sobre a adoção; artigo gentilmente cedido pelo autor, em disquete, 1998.
ERIKSON, E., Infância e sociedade, Rio de Janeiro, Ed. Zaar,1968
HALEY, J., Aprendendo e Ensinando Terapia, Artes Médicas, 1998
VYGOTSKY, L.S., A Formação Social da Mente, Ed. Martins Fontes, 1984
WALLON, H., Lévolution dilaetique de la personalité, Enfence,1963
Publicado em 01/01/2000
Elizabeth Polity – Psicopedagoga, terapeuta familiar, Mestre em educação, doutoranda em
psicologia. Diretora do Colégio Winnicott. Diretora da APTF
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