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Penso que há uma tendência atual de se menosprezar este papel, o que acaba por gerar um certo esvaziamento dos debates acerca do tema e a possibilidade da manutenção de um status quo que não facilita o crescimento humano e a autonomia das pessoas no que diz respeito à sexualidade.
Talvez uma das inter-relações mais polêmicas da sexualidade seja aquela que acontece com a religião. É sobre ela que pretendo escrever alguns comentários, embora vá focalizar apenas o que diz respeito a esta interface no aspecto educacional, pois ele é o mais básico no meu modo de ver. Diferenciarei neste artigo a educação sexual da orientação sexual segundo a definição constante nos parâmetros curriculares nacionais, do MEC. A educação sexual é um processo ao qual estamos sujeitados desde mesmo antes de nosso nascimento; é uma educação empreendida principalmente pela família e que nos dá os subsídios básicos para que nos reconheçamos como seres sexualizados e para que definamos nossos valores quanto à sexualidade e ao seu exercício. A orientação sexual é um processo educacional feito em escolas através do fornecimento de um espaço de discussões sobre a sexualidade, um espaço através do qual os jovens, contando com a coordenação de um professor especializado no assunto, discutem a sexualidade e buscam vencer preconceitos e descobrir/desenvolver seus próprios valores quanto à sexualidade. Parece-me importante lembrar desde já que a sexualidade não se reduz aos genitais e nem ao ato sexual em si, mas é um conceito amplo que abarca desde a genitália e o ato sexual até, dentre outros, os papéis de gênero, o erotismo, a sensualidade e muitas outras funções do corpo humano, influenciando as relações entre as pessoas, o amor e a maneira como se constrói e se entende o mundo. Outra premissa importante, sobre a qual não me deterei mas que não quero deixar de lembrar, é que a sexualidade é uma construção cultural, ou seja, a maneira de vermos a sexualidade, bem como os valores a ela associados, dependem da cultura, variando em vários aspectos de uma cultura para outra. Aliás, isso é o que nos permite falar em uma educação sexual, pois não se educa o que é imutável. O imutável está dado e pronto, só nos restando aceitá-lo ou não. Educáveis são apenas aspectos da personalidade e habilidades que podem se transformar. Por exemplo, ninguém pode nos educar para não morrer, embora possamos ser educados para viver mais saudavelmente. Embora seja feita principalmente pela família, toda a sociedade participa da educação sexual, incluída aí a religião, qualquer que seja ela. Todas as religiões têm normas sobre a sexualidade e sobre o exercício da sexualidade pelos seres humanos. Assim é que encontraremos normas para a conduta sexual do ser humano nas religiões cristãs, no islamismo, no judaísmo, no budismo, enfim, em qualquer lugar onde o ser humano tenha ou pretenda ter um contato com o sagrado lá encontraremos leis que regulam e disciplinam a sexualidade humana. De imediato surge a questão: por que é assim? Por que as religiões, sem exceção, lidam com a sexualidade? As respostas a essa questão seguem basicamente dois caminhos, embora eles não sejam excludentes. A maioria dos teóricos afirma que a religião surgiu entre os seres humanos com duas finalidades: explicar o mundo e dar um sentido à vida de cada pessoa. Para qualquer uma dessas finalidades, a religião vai lidar com os mistérios da vida. Toda religião pretende responder a pelo menos duas das questões irrespondíveis que os seres humanos se fazem desde sempre: ‘de onde eu vim?’ e ‘para onde eu vou’. Digo que toda religião pretende responder a essas questões porque na verdade elas são irrespondíveis se apelamos apenas à racionalidade, podendo ser elucidadas somente pela fé. Por exemplo, ninguém até hoje provou a existência de um céu (ou de um inferno, ou de uma outra vida) após a morte, de maneira que só se pode ter fé nele. Para os que crêem, o céu é uma certeza, mas uma certeza baseada na fé e não em um raciocínio lógico, formal e científico. A sexualidade humana é cheia de mistérios, dentre os quais pode-se destacar, por exemplo, que é através dela que a vida se reproduz e se perpetua. Em outros termos, o que estou dizendo é que cada ser humano traz inerente a si a semente da vida e é capaz de ser, por isso, um agente criador de vida, uma fagulha de Deus. Mircea Eliade, um dos mais importantes estudiosos da religiosidade humana, chega até a dizer que a sexualidade é um meio de se entrar em contato com o sagrado e é por isso que ela, a sexualidade, é tão importante para as pessoas. Assim, por um lado, é por causa dos tantos mistérios que estão associados à sexualidade que ela faz uma interface com a religião, notadamente no que diz respeito ao sentido da vida. Para outros teóricos o que gera a interface entre a religião e a sexualidade é de outra ordem que não o mistério. Para eles, uma das principais funções da religião é dar aos seres humanos normas sobre a vida, regras, leis sobre como deve ser o comportamento das pessoas. Neste caso estão, por exemplo, os dez mandamentos divinos, que nada mais são do que leis que disciplinam o comportamento humano em sociedade. Embora hoje a gente tenha outras instâncias (principalmente a economia e a medicina, além, é claro, da própria religião) que regulamentem o comportamento das pessoas, a princípio esse papel era essencialmente da religião. A imensa maioria de nossos costumes tem uma origem em alguma lei religiosa, em algum código moral estabelecido por alguma religião em algum momento da história da humanidade. Não fosse o controle e a regulamentação que as religiões fizeram sobre os instintos humanos, muito provavelmente a vida em sociedade não seria possível, ao menos da forma como a conhecemos. O ser humano é um dos animais que se reproduzem através do sexo. Como todos os outros animais que têm essa característica, é muito provável que a princípio os humanos tivessem um comportamento sexual determinado pela natureza, principalmente no que diz respeito a códigos de escolha de parcerias e de acasalamento. Como acontece com todos os outros animais, é muito provável que a princípio houvesse muita violência associada à sexualidade humana, uma violência que precisava ser contida para que pudesse haver a vida em sociedade. Certamente a maneira mais eficaz de se fazer essa contenção é através de códigos impostos aos seres humanos por alguma entidade sobrenatural. É assim que surgem as leis religiosas que incidem sobre a sexualidade, sendo que provavelmente a primeira delas foi a que impedia o incesto e obrigava os homens a buscarem parcerias fora de sua família. Todas as religiões são constituídas por um sistema de crenças (a maneira de a fé se expressar), sistemas de ética (as leis que regulam e orientam o comportamento humano) e sistemas de organização (a maneira como a instituição religiosa vai se hierarquizar). Grosso modo, cabe ao sistema de organização interpretar e fazer cumprir o sistema de ética. Pelo que vimos até aqui, então, podemos entender as relações entre a sexualidade humana e a religião se dando principalmente através de duas vias, uma que fala dos mistérios associados à sexualidade e à religião e outra que trata da função socializadora da religião. Uma, a primeira via, se aproxima mais da questão do sentido da vida, dos ‘para que’ da existência humana; a outra via fica mais perto da questão da explicação do mundo, na qual se inclui os ‘como’ da vida, isto é como deve ser exercida a graça da vida, mais especificamente no nosso caso, como deve ser exercida a sexualidade humana. A maneira como essas duas funções da religião vão ser cumpridas, as leis que vão ser levadas a sério e as que não vão, o que virá depois da morte e o que houve antes do nascimento, a própria face de Deus ou dos deuses, tudo isso vai depender da religião e da organização religiosa. Assim, vamos encontrar uma grande variação, de uma organização religiosa para outra, sobre o sentido da sexualidade humana e sobre as leis que a regulam, mas em todas elas vamos encontrar essas leis e a elucidação desse sentido. Por exemplo, no islamismo vamos encontrar a possibilidade da poliginia, ao passo em que na maioria das organizações cristãs o preceito é a monogamia. Para algumas religiões o sentido da sexualidade é a procriação, para outras esse sentido é a transcendência, a superação dos limites humanos. Como já vimos, a educação sexual é o processo através do qual a sociedade, principalmente através da família, ensina a moral sexual que servirá como base para que as pessoas desenvolvam seus valores quanto à sexualidade. O próprio conceito de família já é um conceito tremendamente baseado e regulado pela religião, que dirá da sexualidade que essa família vai ensinar aos seus membros. É óbvio que hoje em dia não é apenas a religião que determina como deve ser a família e como as pessoas devem se comportar em família, mas não restam dúvidas de que a religião tem ainda um espaço enorme nos códigos familiares modernos. Como também tem um espaço enorme nos códigos que regulam a sexualidade humana nos dias de hoje, por mais que aparentemente a influência da religião nesse aspecto esteja diminuída por causa dos avanços do capitalismo e sua consequente secularização do mundo. É por causa desse espaço que ainda detêm na moral familiar e social que a religião ainda tem um papel muito grande na educação sexual, um papel que vem sendo, de certa maneira, rejeitado ultimamente pela nossa cultura, a qual pretende ser profana e puramente racional/científica. Não é à toa que nossa cultura é chamada de judaico-cristã e não poderemos entender o exercício da sexualidade em nossa sociedade se não olharmos para esse importante aspecto de nossa história. Em nossa cultura ocidental predomina o cristianismo, uma religião que vem regulando há séculos o exercício da sexualidade humana. No Brasil, a influência cristã se deu e se dá principalmente através do catolicismo , pois, desde a colonização pelos portugueses e até recentemente, religião católica e Estado sempre estiveram muito próximos em nosso país, de maneira que uma enorme parte de nossa educação sexual foi – e ainda é – firmemente influenciada pela religião. Para entendermos um pouco do papel do cristianismo na sexualidade, teríamos que observar dois aspectos da sexualidade humana que historicamente foram legislados pelo cristianismo, o corpo e as relações de gênero. Por questões técnicas e de espaço, apenas sugerirei como as reflexões sobre esses temas podem evoluir, mas prometo voltar ao assunto em breve e de forma mais detalhada. É através do corpo que nos relacionamos com o mundo e com a realidade, daí sua enorme importância na existência humana. Uma importância tão grande que fez com que o corpo fosse um dos principais alvos da moral religiosa no processo de educação da sexualidade humana. Encontramos no cristianismo uma ênfase no aspecto do sacrifício, uma ênfase que teve no corpo humano o principal alvo. Correndo o risco de simplificar demais, durante grande parte da história do cristianismo o corpo foi visto como o lugar do pecado e foi enorme a pressão no sentido de roubar do corpo a espontaneidade, com reflexos claros sobre a sexualidade humana. Só mais recentemente as religiões começam a abrir um espaço maior para a espontaneidade corporal e para a sexualidade, como, por exemplo, no catecismo católico de 1992, que segue as diretrizes do Concílio Vaticano II, e coloca a sexualidade como fonte de alegria e prazer. Mas, no meu modo de ver, ainda há muito a se discutir sobre o papel do corpo sexualizado nas religiões. Aqui entram, dentre outros, temas como a virgindade, a procriação, e, principalmente, o prazer. Intimamente ligado ao tema do corpo, está o das questões de gênero, a definição social dos papéis de homens e de mulheres. Como não poderia deixar de ser, devido à importância do tema, também aqui encontraremos influências históricas da religião na organização social. No século XX este é um dos temas mais polêmicos da sexualidade humana, principalmente por causa dos movimentos feministas. Mas é através deste tema que as religiões disciplinam o casamento, a função dos homens e das mulheres no casamento e na sociedade, a homossexualidade e grande parte da solidariedade humana, dentre outros. Com relação ao cristianismo, se em são Paulo encontramos uma tentativa de resgate de um papel mais importante da mulher na sociedade da época, na maior parte da história das igrejas cristãs vamos encontrar uma moral falocêntrica que ainda precisa ser muito questionada se queremos chegar à possibilidade de um mundo menos desigual. Não entrarei neste artigo no mérito de avaliar se e como essa influência da religião na educação sexual é enriquecedora ou empobrecedora na vivência da sexualidade humana, pois isso é tão polêmico que demandaria um artigo à parte, de maneira que esse é um assunto para depois. Por ora, é-me importante que tenha ficado percebido que, ainda que diminuída, é claramente visível a influência da religião na educação sexual dos dias de hoje. Penso que há uma tendência atual de se menosprezar este papel, o que acaba por gerar um certo esvaziamento dos debates acerca do tema e a possibilidade da manutenção de um status quo que não facilita o crescimento humano e a autonomia das pessoas no que diz respeito à sexualidade. Se não discutirmos os aspectos éticos, não poderemos cumprir nossa função social de agentes participantes e transformadores da sociedade e de suas organizações, as religiosas inclusive. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Publicado em 01/01/2000 Enio Brito Pinto – Formado em psicologia pela PUC/RJ é especializado em psicopedagogia pela UNIP.
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