A MÁQUINA DO PENSAR E A MÁQUINA DO DESEJAR
Yara Prates
A inteligência pertence à dimensão cognitiva (máquina do pensar) e o desejo, à dimensão subjetiva (máquina do desejar).
Quando há alguns anos atrás, tendo sido abalada a minha
crença na afirmação "Se o aluno não aprende é
porque o professor não ensina", pela constatação
de que mesmo garantindo o melhor ensino há indivíduos
que não aprendem, fui procurar novos caminhos. Por esses
caminhos encontrei Alícia Fernandez e depois Sara Paín
que me iniciaram na teoria e na prática psicopedagógica.
Lembro que tive muita dificuldade no início com alguns
conceitos que me pareceram basilares para a compreensão
do processo de aprendizagem e de seu complementar o
processo de "ensinagem". Eram eles os conceitos
dos níveis implicados nesses processos: organismo, corpo,
inteligência e desejo.
Escolhi para esta oportunidade tratar da inteligência e
do desejo, deixando para outro momento o organismo e o
corpo, ressalvando, porém, que está excluída a pretensão
de esgotar o tema mas servir como ponto de partida para
quem se encontrar na mesma dificuldade que me encontrei
naquele então.
A inteligência pertence à dimensão cognitiva (máquina
do pensar) e o desejo, à dimensão subjetiva (máquina
do desejar).
Os intercâmbios entre sujeito e meio efetuam-se, através
do pensamento processado, segundo a dupla estruturação,
inteligente e desiderativa.
O pensamento é o produto da máquina do pensar (dimensão
cognitiva) enquanto que a fantasia é o produto da máquina
do desejar (dimensão subjetiva). Toda ação do sujeito
tem o componente lógico e o componente subjetivo. As
duas dimensões se articulam para se dar a conhecer, mas
devem funcionar separadamente.
À dimensão cognitiva tende a "objetivar, a buscar
generalidades, a classificar, a ordenar, a procurar o que
é semelhante, o comum, ao contrário, o movimento do
desejo é subjetivante, tende à individualização, à
diferenciação, ao surgimento do original de cada ser
humano único em relação ao outro". Fernandez
COMPONENTES DA MÁQUINA DO PENSAR E DA MÁQUINA DO
DESEJAR
Tanto a dimensão simbólica quanto a cognitiva são
constituídas de mecanismos, operações e de categorias
que produzem resultados, com caráter diferenciado numa e
noutra dimensão.
Os mecanismos tem por função captar os elementos da
realidade externa, e convertê-los em elementos sobre os
quais o pensamento possa atuar.
A noção de operação aplica-se à realidades diversas,
há operações lógicas, aritméticas, geométricas,
temporais, mecânicas, físicas etc. mas no geral podemos
dizer que operações são ações mentais cuja principal
característica é a reversibilidade. Por exemplo, a ação
de reunir (adição lógica ou aritmética) é uma operação
porque muitas reuniões sucessivas equivalem a uma só
reunião (composição de adições) e porque as reuniões
podem ser invertidas em dissociação (subtração).
Os esquemas são a matéria-prima da operatividade, seja
na dimensão cognitiva ou desiderativa. Esquema é um
padrão de comportamento ou uma ação que se manifesta
com ordem e coerência e que descreve um tipo regular de
ação que se aplica a vários objetos. Os primeiros
esquemas derivam-se dos reflexos. A integração de vários
esquemas conforma uma estrutura.
Categorias são domínios ou territórios que se
constroem ou se estruturam por meio dos mecanismos e das
operações. Nenhum tipo de pensamento pode deixar de
estar referido a uma categoria objetiva e nada do que eu
penso de mim mesmo pode estar fora das categorias
subjetivas.
As categorias objetivas se constroem durante os dois
primeiros anos de vida, enquanto que as subjetivas se
estruturam ao longo da primeira e segunda infância.
Os Mecanismos
Da máquina do pensar
A ordem objetiva conta com os mecanismos de assimilação,
acomodação, circularidade, e inibição.
Termos tomados da biologia, a assimilação e a acomodação
são mecanismos complementares do processo de adaptação
do indivíduo ao meio. Do ponto de vista dinâmico, o
cognitivo também é caracterizado por esses mecanismos.
A assimilação é um processo que aborda o mundo externo
da maneira possível às estruturas já construídas,
enquanto que e a acomodação é um processo interno de
alteração das estruturas do indivíduo visando um
intercâmbio com o meio. Os mecanismos de assimilação e
acomodação fazem com que as atividades realizadas pelo
sujeito sobre os objetos se esquematize como experiência
sensório-motora.
A realidade é vista sob a óptica das esquemas do indivíduo,
o que não pode ser capturado pelos esquemas presentes não
pode ser conhecido, gerando a necessidade de transformação
do objeto (assimilação) ou de alteração dos esquemas
(acomodação). Tome-se como exemplo e esquema de sucção,
derivado do reflexo de sugar. O bebê suga o bico do seio
e/ou o da mamadeira e obtém um certo resultado. Ele
aplica o esquema de sucção a todos os objetos que forem
levados a sua boca e com isso ele vai formando um repertório
de resultados diferenciados (assimilação). O que não
for passível de sucção é abandonado. Quando ele passa
a receber alimentação com colher, inicialmente pode-se
vê-lo responder ao estímulo da colher tocando sua boca
com o esquema de sucção. Como este esquema não serve,
há uma reorganização das experiências armazenadas
para criar um novo esquema (acomodação) que lhe permita
incorporar novos conhecimentos.
Seja no âmbito biológico ou no cognitivo, os mecanismos
de assimilação e acomodação nunca se apresentam em
forma pura, o processo sempre supõem alguma medida de
cada um desses mecanismos. Portanto, pela assimilação/acomodação
se contróem os esquemas, que servirão para aplicar às
operações.
A circularidade é o mecanismo pelo qual uma atividade é
exercida em si e por si mesma, onde o antecedente e o
conseqüente servem de ativadores entre si, isto é, o
conseqüente pode ativar o antecedente e vice-versa. O
balbucio do bebê é um exemplo clássico do mecanismo de
circularidade. Ele reproduz uma sílaba que recortou do
envoltório sonoro correspondente à língua materna e
repete a mesma sílaba por longo tempo. Não se sabe se o
que desencadeia a ação é o aparato acústico ou o
aparato fonador. Esse mecanismo arcaico pode ser
identificado em adultos, em eventos tais como a depredação,
onde a maioria dos participantes não tomaria essa
atitude se estivesse sozinho, eles o fazem porque a ação
do outro funciona como desencadeante do mecanismo da
circularidade.
A circularidade só é quebrada quando entra em jogo o
mecanismo da inibição. "A inibição é a expressão
de uma restrição do ego, restrição que pode obedecer
a diversas causas…. A inibição está sempre
relacionada com uma função e não significa
necessariamente algo patológico". Freud
O mecanismo de inibição ao intervir na circularidade
permite a possibilidade de aprender não só o movimento
adequado para conseguir um fim, mas também a de alcançar
um domínio do próprio corpo capaz de agir de maneira
eficaz.
Da máquina do desejar
Projeção, Identificação, repetição, repressão,
esquemas de representação afeto são os mecanismos da máquina
de pensar (dimensão subjetiva).
Através do mecanismo de projeção o sujeito transforma
o objeto externo, retirando de si e colocando no outro
qualidades, sentimentos, desejos que ele desconhece que
possui, ou recusa-se a admitir que possui.
Mecanismo de enorme significação no desenvolvimento do
ego a identificação pode ser definida por ato ou
processo "pelo qual um indivíduo assimila um
aspecto, uma propriedade, um atributo do outro e se
transforma, total ou parcialmente, segundo o modelo dessa
pessoa". Laplanche
Através de inúmeras identificações é que o indivíduo
se constitui num sujeito.
A repetição possibilita voltar a algo não simbolizado,
não representado, não elaborado, não recordado, em
suma, volta-se a algo que não foi totalmente esgotado,
Repete-se para aprender e repete-se numa processo de
evitação da angústia do novo. Repete-se o esquema,
repete-se uma forma de atuar, não se repete os conteúdos.
Repressão, primeiro mecanismo de defesa reconhecido na
teoria psicanalítica "A repressão consiste em uma
atividade do ego que barra da consciência o impulso
indesejável do id ou de qualquer dos seus derivados,
sejam eles recordações, emoções, desejos ou fantasias
de realização de desejos. No que diz respeito à vida
consciente do indivíduo, são todos como se não
existissem." Brenner
Os mecanismos de projeção e de identificação formam/conformam
os esquemas de representação e de afeto do ser humano.
Na tabela abaixo os mecanismos equivalentes da dimensão
cognitiva e da dimensão desiderativa.
MÁQUINA DO PENSAR |
MÁQUINA DO DESEJAR |
Assimilação |
Projeção |
Acomodação |
Identificação |
Circularidade |
Repetição |
Inibição |
Repressão |
Operações
Da máquina do pensar
As operações cognitivas tratam das relações que o
indivíduo estabelece entre ele e o objeto ou de objetos
entre si. As operações que determinam a coerência da
leitura da experiência e a construção de uma
objetividade real são a classificação e a seriação.
Esses mecanismos permitem a construção operatória do
universo, primeiro no nível prático, em seguida no nível
representado e depois em representações de segunda
ordem.
Na operação de classificar destaca-se as partes de um
todo segundo um critério qualitativo abstraído das
diferenças ou semelhanças dos objetos da coleção,
pelo classificador. Na seriação o critério é de
magnitude, há o ordenamento progressivo a partir de um
atributo susceptível de graduação, seja ele tamanho,
temperatura, matiz etc.
Da máquina do desejar
Todos as operações da ordem do desejo vem de uma
estrutura comum que é a linguagem.
*Na teoria psicanalítica, operações
subjetivas são denominadas mecanismos, preferimos deixar
o termo operações para não confundir com os mecanismos
citados anteriormente. Nota do auto
A metonímia constróe-se por substituição
de uma coisa por outra que guarda com a primeira alguma
relação de causa e efeito (trabalho por obra), de
continente e conteúdo (copo por bebida) , lugar e
produto (porto por Vinho do Porto), matéria e objeto (ouro
por medalha de ouro). São considerados metonímicos
todos os termos que possam substituir-se num texto sem
alterar seu sentido. A metáfora é uma representação
dramática e, portanto, seqüencial e condensada de um
conflito. Na frase: Ele é uma raposa, o termo raposa
deixa de ser o animal para ser a condensação das
qualidades do animal raposa, rapidez, astúcia etc.
Na dimensão subjetiva a metonímia é o efeito do
deslocamento e a metáfora, o é da condensação.
As operações da máquina do desejar "são
essencialmente semióticas e seu referente não é o
objeto de conhecimento, mas aludem a significações
profundamente instaladas nas primeiras relações
objetais".Pain
As Categorias
As categorias objetivas são: objeto, espaço, tempo, número,
causalidade. "Um pensamento objetivante, pelo qual
um fenômeno ou experiência converte-se em conhecimento,
instaura os limites de sua objetividade justamente quando
consegue assimilá-los a um desses territórios."
Objeto, categoria resultante da ordenação sistemática
das percepções, através da qual se conservará, apesar
das variações de aspecto a que é submetido pela
variabilidade que lhe é imposta pelo movimento, seja do
objeto, seja do espectador. O rosto da mãe só se
transforma em objeto quando a criança conseguir integrar
a imagem vista de frente, com a vista de perfil. A imagem
integrada precisa ainda resistir a mudanças de expressão
e também de ocultamento.
No princípio, o espaço é múltiplo (oral, visual, tátil
etc.), aos poucos os diversos espaços vão-se
aglutinando até atingir a singularidade. Nesse percurso
vão sendo construídas as noções de distância,
longitude, superfície e volume. A categoria espaço se
estabelece quando se articulam movimentos de avanço com
o de recuo, ou a reversibilidade dos deslocamentos.
"A objetivacão das séries temporais é paralela à
causalidade. A categoria tempo envolve as noções de
sucessão, duração e simultaneidade de eventos."
Piaget
Número: categoria resultante da junção em um sistema
único das estruturas classificação (classe/inclusão
hierárquica), de seriação e de relações assimétricas
(onde cada elemento é ao mesmo tempo maior que seu
antecessor e menor que seu sucessor).
Causalidade A organização dessa categoria tem início
com a quebra da circularidade permitindo a experiência
de antecedente e conseqüente e progride até permitir a
determinação de qual modalidade mais geral o fenômeno
é representante.
Da máquina do desejar
Existem apenas três categorias da ordem da subjetividade:
ego/Outro (como diferenciação), Superego e Id. As
categorias subjetivas foram caracterizadas por Freud como
instâncias.
As categorias que se diferenciam a partir do id (ego e
superego) são especificadas pelas identificações de
que derivam
O ego é a categoria do presente, é a categoria do
pensar, O sonho é da categoria do id, o tempo do id é o
passado.
Conclusão
Como se viu os mecanismos captam os elementos da
realidade externa e os convertem em esquemas (sensório-motores
e representativos-afetivos). Sobre esses esquemas são
exercidas operações (classificação e seriação; metáfora
e metonímia) que constroem um produto, o pensamento,
referido às categorias (objeto, espaço, tempo, número
e causalidade; id, ego/Outro e superego).
A máquina do pensar e a máquina do desejar são
distintas, embora seus conteúdos sejam solidários e
intercambiáveis. No dizer de Alícia Fernandez "em
qualquer atitude que observemos de uma pessoa, poderemos
discriminar, mas só teoricamente, o processo objetivante
(lógico-intelectual), do subjetivante (simbólico-desejante):
a soma de ambos os processos é o ato que resulta."
BIBLIOGRAFIA
BRENNER Charles, Noções Básicas de Psicanálise, Imago Editora, 1987
FERNANDEZ Alícia, La Inteligência Atrapada, Ediciones Nueva Visión, Buenos
Aires, 1987
FREUD, Síntoma, Angústia e Inhiibición, 1926, Obras Completas, Edición CD
Rom. In Context
LAPLANCHE e PONTALIS, Dicionário de Psicanálise, Martins Fontes, São Paulo,
1988
PAIN Sara, A Função da Ignorância, vols I e II, Artes Médicas, Porto Alegre,
1991
PAIN Sara, Anotaçoes de aula
PIAGET Jean, Seis Estudos de Psicologia, Forense Universitária, São Paulo, SP,
1991
Publicado em 01/01/2000
Yara Prates – Pedagoga, Psicopedagoga (E.Psi.B.A. -Escuela Psicopedgogica de Buenos Aires), Mestranda em Psicopedagogia Clínica (UNISA), Conferencista, Coordenadora de Grupos sobre Ensino/Aprendizagem, Atendimento Clínico para indivíduos e grupos e Diretora do Colégio Don Quixote
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