TRANSFERÊNCIA E CONTRATRANSFERÊNCIA
Sonia Cristina Soares Miranda
Agressões mútuas que se manifestam na situação ensino-aprendizagem
Convido a turma de sétima série do Ensino Fundamental, para assistirmos
documentário sobre a Revolução Francesa. Apesar de ter feito introdução
sobre o conteúdo do filme, uma aluna, que aqui chamarei por Ana, me pergunta o
porquê de eu não ter trazido o filme "A Estuprada".
Contratransferencialmente, sinto profundo mal estar e respondo que este, ela
poderia pedir à mãe que passasse na locadora após a aula e levasse , para que
,juntas assistissem na sala da casa dela. Ana se transfigurou e, com uma expressão
de dor estampada no rosto , retrucou raivosamente que não tinha mãe .
Senti-me, naquele momento, culpada e impotente por não ter sido capaz de
entender a agressão , que , agora, com toda certeza, posso reconhecer que, na
origem, não era para mim. Eu estava apenas servindo de depósito para o ódio
que ela tinha da mãe.
Investiguei nos arquivos e com os colegas mais antigos, sobre a história de
Ana. A mãe fugiu para o Estado do Espírito Santo quando ela tinha apenas três
anos , e foi viver lá com um homem. Ana ficou aos cuidados da avó e sofreu
abuso sexual aos onze anos por parte do irmão da mãe.
Agora, Ana tem catorze anos e pede para eu passar diante de todos, a sua dor, o
seu estupro. Pede de forma agressiva, aos " berros". A Estuprada é a
própria criança que , sem saber como lidar com a sua dor, agride a mim e aos
outros.
O que ela queria me transmitir? Que sentimentos transferiu para mim? Por que
reagi também de modo agressivo? Tudo indica que, naquele momento ela estava me
acusando de ter culpa pelo seu estupro. O ódio que sente pela mãe, foi
transferido para mim. O meu inconsciente captou este ódio e reagiu
agressivamente, defensivamente. Regredi, me tornei também adolescente e numa
situação de contratransferência fui agressiva na mesma moeda. Foi ,ali, olho
por olho…
Ana fala da mãe como se ela já estivesse morta. do mesmo modo que
"matou" a mãe, queria também me matar . Ela não diz nunca que a mãe
vive em outro Estado. Simplesmente responde que não tem mãe. Ela tenta
"matar" professoras, diretoras, merendeiras e a avó…
Após tomar conhecimento da historia de Ana, passei a pensar em todas as agressões
que os professores e professoras recebemos e o modo como reagimos a estas agressões
. Esta situação com Ana, ocorreu na época em que eu estava na metade do curso
de Psicopedagogia. Comecei então, a ler muito sobre o fenômeno da transferência.
Encontrei vários textos sobre o assunto, mas quase sempre ligados às situações
analíticas. Chamou-me a atenção o fato de não haver quase nada sobre
contratransferência, principalmente a negativa.
Levando em conta que transferência e contratransferência formam uma unidade,
isto é, não são de modo algum dissociáveis, mesmo que para uma transferência
negativa possa ocorrer uma contratransferência positiva, ainda assim, formam
uma unidade, então, por que os trabalhos , tanto no campo da psicanálise, como
co campo das psicopedagogia, dão maior importância a transferência?
Talvez haja uma fuga inconsciente dos profissionais, no sentido de não
interpretar suas contratransferências e expô-las ao público. É mais confortável
interpretar material clínico vindo do inconsciente dos pacientes, dos alunos,
do que aquele material que vem do meu inconsciente. Mesmo porque, para eles eu
posso dar um nome fictício, como o faço para Ana. Mas, e, nós profissionais
de psicopedagogia professores, psicanalistas… Quando exponho ao público,
material clínico, me identifico perante meus pares: Não é mesmo fácil,
devemos confessar, expor a todos, as contratransferências negativas (embora
Freud o fizesse constantemente) .
O medo de uma exposição negativa pode mesmo ser o motivo maior da carência de
trabalhos de interpretações das contratransferências.
De acordo com Strachey (1948), " Ser analista significa não responder
talionicamente, não entrar no círculo vicioso neurótico do paciente, não se
submeter às defesas do analisando e isto implica numa contínua busca de
compreensão. (grifo meu)
Transferindo a situação de analise para a sala de aula, onde sabemos ocorrer a
transferência e contratransferência , podemos pedir emprestado a Strachey e
adaptar a sua afirmação para a situação ensino-aprendizagem: "Ser
professor significa não revidar na mesma moeda, não entrar no círculo vicioso
neurótico do aluno, não se submeter às defesas do aluno e isto implica numa
contínua busca de compreensão.
O psicanalista, presume-se, possui base teórica e análise didática , que,
juntas formam a base que lhe dá condições de ir à busca constante desta
compreensão que Strachey nos sugere. Mas , e os professores e professoras? O
que recebemos nas universidades nos capacita suficientemente para lidarmos com a
diversidade de situações que encontramos no espaço escolar? A nossa
clientela, principalmente a da Escola Pública, sofre de inúmeras mazelas
sociais, além de outras tantas que abrange também `a clientela das escolas
particulares. Daí temos que lidar com os ódios provenientes da fome, dos
espancamentos, do alcoolismo dos pais, dos abusos sexuais… e são tantos os
males e maiores ainda os ódios, que se transformam em fontes inesgotáveis de
manifestações de transferências negativas.
Que tipo de respostas contratransferenciais estamos preparados para dar nos
momentos das agressões mais acentuadas?
O fracasso escolar e a evasão decorrente dela são indicativos de que ainda não
estamos lidando adequadamente com os fenômenos que envolvem o ensinar e o
aprender . As reações que nós, ensinantes temos, é reflexo ou conseqüência
da formação que tivemos, além da história de vida e leitura de mundo que
cada um de nós fazemos. .
É por isto que se faz necessário e até urgente, que a psicopedagogia, além
de teórica, passe a ser também prática, ocupando o seu lugar , que deveria
ser nas universidades, onde professores e professoras recebemos formação..
Precisamos sair dos cursos de licenciatura com uma base psicopedagógica que
seja capaz de sustentar a nossa prática no cotidiano escolar.
Para que eu possa estar em constante busca da compreensão se faz necessário
que eu aprenda primeiro a lidar com os meus sentimentos, pois compreendendo o
que se passa no meu interior, posso, a partir daí, tentar compreender as
transferências de meus alunos para que numa situação de contratransferência
(que vai sempre ocorrer nas interrelacões vida afora) , possa, na maioria das
vezes, contratransferenciar de modo positivo, e, quando não possível, que pelo
menos permaneça silenciosa.
Ë provável que a dinâmica presente na História da Revolução Francesa , com
tantas mortes , decapitações, enfim, situações constantes de perdas, lutos,
tenha se misturado à dor das perdas sofridas por Ana, dando desencadeamento àquelas
manifestações .
Hoje, se Ana me pedisse para passar o filme "a Estuprada", mesmo que não
soubesse da história de vida dela, desconfiaria de algo e não responderia
daquele jeito tão agressivo. Diria a ela que , após o documentário sobre a
Revolução Francesa, se ela quisesse, poderíamos conversar sobre o assunto.
Mas, a minha mudança de atitude não aconteceu como num passe de mágica. É
resultado de uma formação psicopedagógica , que hoje me fornece condições
de, seguindo a sugestão de Strachey , estar sempre à busca constante da
compreensão.
BIBLIOGRAFIA
SRACHEY, J Natureza de La Accion Terapêutica Del Psicoanálises. T.V.1948.
Citado
por CARON & MALTZ na RBP vol. XVIII. No. 4, Rio de Janeiro: 1984.
LAPLANCHE e PONTALIS. Vocabulário de Psicanálise. Martins Fontes, São Paulo:
2000.
Publicado em 01/01/2000
Sonia Cristina Soares Miranda – Psicopedagoga; Professora de História da Rede Estadual do Rio de Janeiro
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