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CRIAR OU EDUCAR OS FILHOS
Enio Brito Pinto
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A gente vai educando nossos filhos, vai se comunicando com eles no cotidiano, com erros e acertos, com sucessos e fracassos, aprendendo com os sucessos e com os fracassos.
Quero começar essa nossa conversa por uma coisa que me preocupa sempre que
vou conversar com pais: embora muitas pessoas tentem dar receitas sobre como
educar os filhos, elas, na realidade acabam por se mostrar inúteis. Não há
receitas para educar filhos. A educação dos filhos se faz no dia-a-dia e se
baseia muito mais na intuição e no coração que no pensamento. A gente vai
educando nossos filhos, vai se comunicando com eles no cotidiano, com erros e
acertos, com sucessos e fracassos, aprendendo com os sucessos e com os
fracassos.
Espero que um momento de leitura como esse seja propício para uma parada e para
uma reflexão do que se tem feito, sobre como tem sido a relação, sobre as delícias
e as agruras da paternidade e da maternidade. Por favor, entenda minhas palavras
como reflexões de um psicólogo sobre a maneira como pais e filhos podem se
comunicar. Não pense que falo de seus filhos, nem pensem que não falo deles.
Tudo o que vou dizer são generalizações, são teorias que venho estudando
e/ou desenvolvendo ao longo de mais de vinte anos de trabalho e, como toda
teoria, ao mesmo tempo em que ela fala de pessoas e dá idéias sobre essas
pessoas, ela não fala dessas pessoas especificamente. Em outros termos: falarei
do geral, que, para ser particularizado, exige imenso cuidado, pois cada pessoa,
cada filho, é especial e apenas em parte pode ser entendido a partir de uma
teoria. A esse respeito, não podemos nos esquecer que toda pessoa é, sob
certos aspectos, a) como todos as outras; b) como algumas outras pessoas; c)
como nenhum outra pessoa.
Minha intenção é poder discutir a respeito das coisas que a Psicologia tem
desenvolvido no intuito de buscar facilitar a convivência entre pais e filhos e
de ajudar os pais na dificílima tarefa de educar cidadãos verdadeiramente
responsáveis num mundo tão conturbado e pouco ecológico como o que temos
hoje.
Selecione, dentro do que vou dizer, o que pode ser útil para você e para seus
filhos. E principalmente não entenda as idéias que defendo como receitas, pois
a vida se faz ao ser vivida, a cada momento e a cada encontro entre pais e
filhos, e encontro é lugar onde teoria tem pouca utilidade. Encontro é melhor
quando de coração a coração. O limite da teoria é facilitar a cada coração
a possibilidade de desenvolver suas potencialidades para que cada encontro seja
mais fecundo.
Winnicott, a respeito disso, diz o seguinte:
"Se se diz às mães que façam isso ou aquilo, não tardam em ficar
confusas e (o mais importante de tudo) perdem o contato com a sua própria
capacidade para agir sem saber exatamente o que está certo e o que está
errado. É facílimo fazer com que se sintam incompetentes. Se, para tudo,
tiverem de consultar um livro ou escutar um rádio, estarão sempre atrasadas
quando quiserem fazer as coisas certas, porque as coisas certas têm que ser
feitas imediatamente. (…) Podemos então discutir com elas o gênero de
problema com que se defrontam, o tipo de coisas que fazem e o tipo de efeito que
podem esperar de suas ações. Isso não é necessariamente a mesma coisa que
dizer-lhes o que devem fazer."
Isto posto, gostaria de começar a desenvolver uma idéia que tenho há algum
tempo e que somente agora começa tomar uma forma mais arrumada: é diferente
quando criamos e quando educamos filhos.
Desde há muito tempo, me incomoda quando ouço alguém dizendo que cria filhos.
Incomoda porque venho de uma região de Minas Gerais onde as pessoas têm muitas
criações (cães, gatos, galinhas, porcos, vacas, cavalos) em casa, e eu acho
que o termo criar só pode mesmo ser usado para animais. Animais eu crio; filhos
eu educo. Animais eu adestro; filhos eu educo.
E como poderíamos entender melhor as diferenças que há entre criar e educar?
Vamos lá.
Uma das primeiras coisas que me vem à mente quando pretendo diferenciar criar
de educar diz respeito à questão da curiosidade. Quando crio filhos, estou
pouco atento à curiosidade da criança. Quando os educo, a atenção à
curiosidade é fundamental. Vou explicar.
É tarefa básica de pais e mães apresentar o filho à realidade e a realidade
ao filho já desde que o filho nasce. Desde os primórdios de sua vida, a criança
vai explorar esse mundo que lhe é apresentado, buscando sua forma própria de
lidar com ele e de interferir nele deixando sua marca pessoal. Isso é tarefa
para toda a vida, tarefa que se inicia já mesmo no útero materno e que tem
como base uma atitude curiosa acerca do que a pessoa vai encontrando pelo seu
caminho.
O processo educacional tradicional, o processo de criar crianças, tende a
inibir a curiosidade infantil já desde o início e através de toda a vida das
pessoas. A premissa é a de que a curiosidade matou o gato. Vivemos uma
sociedade que se baseia na ordem, no controle, na previsibilidade, atitudes
contrárias a um olhar curioso para o mundo, já que o olhar curioso é
carregado de excitação e de desejo de aprender, é um olhar que suporta lidar
com incertezas, que necessita lidar com incertezas.
Assim, quando educamos os filhos, estamos atentos ao seu olhar curioso sobre o
mundo e o incentivamos ao máximo. Exploramos com o filho o mundo e aprendemos
ao mesmo tempo em que ensinamos. Para isso, educar exige plasticidade, exige que
não nos consideremos sabedores e donos de verdades, mas, antes, pessoas permeáveis
a mudanças, pessoas capazes de experimentar novidades e a mudar comportamentos
e crenças a partir do momento em que descobrimos que esses comportamentos e
essas crenças já não respondem mais às nossas necessidades atuais. Não
abdicamos de nossa experiência e do que temos aprendido na vida, é certo, mas
tampouco fazemos do vivido anteriormente o único referencial, pois isso seria
desprezar o presente e suas inúmeras possibilidades.
Quando criamos os filhos, ao menor sinal de curiosidade, já lhes damos
respostas, já lhes damos a nossa definição da realidade, impedindo a exploração;
ou então damos aos filhos nossas regras, nossos ‘deverias’ e nossa exigência
de que essas regras sejam obedecidas; ou então evitamos conflitos e
questionamentos na pretensão de que não haja problemas no contato com os
filhos. Inibimos, assim, a possibilidade do perguntar, tão básica para que
conheçamos o mundo e nele exerçamos influência.
Não quero com isso fazer crer que a boa educação prescinda de regras. Não, não
é isso. Toda convivência humana precisa de regras que lhe sirvam de parâmetro
e de limite, e a relação entre pais e filhos não é diferente nisso, antes
pelo contrário. O que quero dizer é que a boa relação educadora não conhece
regras imutáveis, é permeável a mudanças em sua estrutura dependendo de cada
circunstância. Em outros termos: a boa relação educacional é aquela que é,
essencialmente, dialógica, ou seja é feita entre as pessoas. Quando estou numa
relação dialógica, eu dialogo com o outro, ouço suas necessidades e ponderações,
ouço minhas necessidades e ponderações e, junto com ele, respeitando os
limites de cada um, estabeleço atitudes, deveres e responsabilidades.
Por exemplo, imaginemos uma família para a qual a freqüência do filho às
aulas seja um valor muito importante. Assim, esse filho não falta às aulas a não
ser que haja um motivo concretamente impeditivo. Numa sexta-feira, o filho
anuncia que não irá à aula porque pretende viajar com alguns amigos para o
fim de semana. Quem cria filhos, dirá que isso é impossível, que o jovem tem
que ir à aula e depois até pode viajar, se for o caso. Quem educa filhos,
ponderará com o jovem a respeito da importância da presença em sala de aula
para que os estudos tenham boa conseqüência; ouvirá, então, do filho, a
ponderação de que está indo bem de notas e de aprendizagem e que tem a
confiança de que poderá se recuperar de algum eventual prejuízo que esta
falta fortuita poderá lhe causar. E assim se seguirá um diálogo ao cabo do
qual um acordo será alcançado, e o filho irá ou não matar aquelas aulas
daquele dia.
Aqui já estamos entrando num outro território onde um conceito muito
importante nessa nossa diferenciação entre criar e educar filhos começa a
aparecer: é o conceito de autoridade. Mas, antes que passemos a esse assunto,
quero explorar mais um pouquinho um outro aspecto da curiosidade.
Para que se possa propiciar aos filhos o bom desenvolvimento da curiosidade, é
importante que também os pais estejam atentos a viver uma atitude curiosa
diante da vida. Um bom exemplo disso está na própria relação entre pais e
filhos: o pai ou a mãe que perguntado(a) se conhece seu filho, responde sim sem
hesitar, está pouco curioso diante da vida.
Quando estamos em contato com alguém, principalmente se este contato é
profundo e duradouro, temos uma tendência a formar uma imagem desta pessoa e,
com o correr do tempo, se não estamos atentos à curiosidade, acabamos por
ficar em contato com essa imagem, e não mais com a pessoa. Assim, quando
achamos que conhecemos bem determinada pessoa (um filho, o marido, a esposa),
estamos diante do risco de já não estarmos mais em contato real com essa
pessoa, por termos perdido a possibilidade da curiosidade.
Certa vez fui procurado no consultório pelos pais de um garoto que ia muito mal
na escola. Com pouco tempo de terapia, deu para notar o quanto a curiosidade
desse menino estava inibida: ele era praticamente incapaz de perguntar.
Pesquisando sua história, encontrei uma passagem importante e, posso dizer,
decisiva para seu sofrimento atual. Quando nasceu seu irmão, esse garoto não pôde
expressar seus ciúmes de maneira alguma, já que seus pais não admitiam a
possibilidade de que ele não ficasse contente por ter um irmão. Ele foi
obrigado a reprimir seus sentimentos de raiva e de frustração pelo nascimento
do irmão e a conseqüente perda de espaço na família. Certa feita, ele
empurrou o carrinho do irmão com tal violência que a criança caiu no chão e
por pouco não se machucou com seriedade. Passado o susto, situação
controlada, os pais ‘descobriram’ que o filho mais velho era muito agressivo. E
passaram a cuidar para que ele não fosse agressivo. A todo momento
lembravam-lhe que ele tinha que se conter em sua agressividade. O menino se
conteve tanto, que aos poucos foi se apagando para a vida, fechando-se em copas,
isolando-se do mundo por medo da própria agressividade. Ele próprio acabou
lidando mais com a imagem que lhe foi apresentada de si do que com o que de fato
era. Todo o trabalho terapêutico com esse menino consistiu em facilitar para
ele a curiosidade sobre si e sobre sua vida, a descoberta das inúmeras
possibilidades existenciais que tinha e que estavam negligenciadas por causa de
uma imagem.
Este caso é muito mais comum do que se possa imaginar. Ele nos dá uma idéia
de quanto podemos limitar e o quanto limitamos nossos filhos, e a curiosidade de
nossos filhos, quando sabemos o que eles gostam, o que eles não gostam, o que
eles são, o que eles não são. "Mas, filho, por que você pôs beterraba
em seu prato, se você não gosta?" Pronto, lá está a criança impedida
de experimentar uma mudança em seu paladar.
Resumindo, então, o que eu disse até aqui: quando estamos ocupados em educar
os filhos, temos espaço para a novidade, para o perguntar, para o experimentar,
para o inovar, para a criatividade. Quando estamos mais atentos a criar filhos,
a estabilidade, o conhecido, a imagem, a repetição dos mesmos passos já dados
são a tônica.
Gostaria agora de falar de outra coisa que é muito importante nessa nossa
diferenciação entre educar e criar filhos: a autoridade dos pais.
Começo adiantando que pais que criam filhos são autoritários e pais que os
educam exercem sua autoridade. Pais que criam filhos buscam a obediência, pais
que os educam esperam que eles sejam autônomos. Tratemos agora de diferenciar o
que é uma conduta autoritária e o que é uma conduta de autoridade.
A conduta autoritária caracteriza-se pela busca do certo e do errado, ao passo
em que a conduta de autoridade se baseia na busca do bom e do ruim. O pai
autoritário tem sempre a pretensão de saber o que é certo e o que é errado e
baseia nisso sua conduta; trata-se de um mecanismo perigoso de moral, na medida
em que é rígida e fixa, desprezando, assim, as circunstâncias e as
vicissitudes da vida, além de ser uma conduta pouco criativa e que acarreta em
pouca atenção ao filho, menosprezado por causa de regras que acabam mais
importantes que ele.
A conduta que se baseia na autoridade é sempre atenta às circunstâncias e ao
filho, buscando a cada decisão aquilo que se acredita seja o melhor para ele;
aceita ponderações e argumentações dos filhos, sem perder de vista que os
pais ocupam posição de decisão, embora sempre justificada, ainda que, por uma
série de circunstâncias, esta justificativa nem sempre tenha que ser levada
plenamente ao conhecimento dos filhos. Esta conduta tranqüiliza os filhos, na
medida em que eles têm sempre a certeza de que estão sendo levados em conta.
A conduta autoritária exige obediência e gera heteronomia, ao passo que a
conduta de autoridade exige responsabilidade e gera autonomia. A conduta autoritária
não permite aos filhos o exercício do poder – os filhos de pais autoritários
estão sempre impotentes ou onipotentes, porque impedidos de exercer de forma
adequada seu poder. Quando falo aqui em poder, não estou me referindo a poder
sobre (sobre os outros, sobre as coisas, sobre a vida), mas antes a poder de
ser, a capacidade de se sentir pertinente no mundo e capaz de exercer influência
nele, respeitando seus próprios limites e os limites do outro. Este poder de
ser só é dado por uma conduta de autoridade (sem autoritarismo) dos pais.
Na medida em que exige obediência, a conduta autoritária não prepara o filho
para a vida, não o ajuda a desenvolver as próprias responsabilidades,
facilitando o crescimento de uma pessoa sempre atenta ao que o outro quer e
pouco atenta às suas próprias necessidades, ou, vice-versa, tão atento às
suas próprias necessidades e aos próprios desejos que ignora o outro. O filho
de pais que usam de autoridade, por se sentirem respeitados, aprendem eles também
a se respeitarem e tendem a ser mais justos em suas trocas com o mundo, levando
em conta as necessidades e os desejos dos outros e as próprias necessidades e
desejos também, tornando-se, portanto, mais responsáveis para consigo mesmos e
para com o mundo.
Paradoxalmente, a conduta autoritária, exatamente porque não favorece o
desenvolvimento do senso crítico, acaba por tornar-se permissiva. Os pais
autoritários tendem a se ver sempre com a razão, sempre donos do certo e do
errado, o que acaba por facilitar aos filhos uma idéia petulante de que eles
estejam acima das normas sociais de conduta, como os pais sempre estiveram acima
deles, filhos.
Na medida em que é cuidadosa com o outro, a conduta de autoridade acaba por
facilitar à criança e ao jovem uma postura de cuidado para consigo mesmo e
para com o mundo, ao contrário da conduta autoritária, que facilita o
desenvolvimento de postura anti-ecológica apenas de exploração do mundo e dos
outros por parte da criança e do jovem.
Tanto os pais autoritários, aqueles que criam filhos, quanto os pais que
exercem a sua autoridade, aqueles que educam filhos, usam o ‘não’. O que os
diferencia é a maneira como o ‘não’ é usado. O pai autoritário usa o ‘não,
porque não’ deixando claro que seu critério de proibição ou permissão parte
de um conceito anterior e independe da relação com o filho e do momento que
está sendo vivido. O pai que usa de autoridade usa o ‘não’ com justificativas,
que se baseia em sua maior experiência de vida e não despreza as argumentações
dos filhos, mas, antes, as discute e trata de promover a reflexão ao invés de
obrigar, levando sempre em conta os filhos e suas necessidades e desejos e
limites a cada momento da vida.
O mesmo raciocínio serve para os ‘sins’ que os pais dizem para os filhos.
No fim das contas, a grande diferença entre as duas condutas é o tipo de
pessoa que cada uma vai facilitar que o filho se torne. E aqui a gente encontra
a grande diferença entre criar e educar filhos. Quem educa, educa para a
autonomia; quem cria, cria para a obediência, para a heteronomia.
Tratemos de entender o que é uma conduta autônoma.
Autônoma é aquela pessoa que se governa a si própria, ao contrário da pessoa
heterônoma, que é aquela que se governa com base no raciocínio e no código
de valores de outrem. Tanto as pessoas autônomas quanto as heterônomas
respeitam regras e têm regras para atuarem diante da vida; o que as diferencia
é a maneira como lidam com estas regras e a origem da base do cmportamento,
como nos explica Carl Rogers. Falando sobre a pessoa que ainda não conseguiu
alcançar a autonomia, a pessoa heterônoma, Rogers diz:
" numa tentativa de receber e conservar amor, aprovação e consideração,
o indivíduo renuncia ao centro de avaliação que possuía anteriormente (na
primeira infância, esclarecimento meu), e o coloca nos outros. Aprende a ter
uma desconfiança básica em sua experiência como guia para seu comportamento.
Aprende com os outros um grande número de valores pensados e os adota como
seus, embora possam ser muito discordantes do que está sentindo. Como seus
conceitos não se baseiam em sua valorização, tendem a ser fixos e rígidos, e
não fluidos e mutáveis."
Continua Rogers:
"Os desejos e comportamentos sexuais são quase sempre maus. As fontes
deste conceito são muitas – pais, igreja, professores. A desobediência é má.
Aqui os pais e professores se combinam com os militares para acentuar este
conceito. Obedecer é bom. Obedecer sem discussão é ainda melhor. Ganhar
dinheiro é o bem supremo. (…) Ler por prazer e leituras exploratórias sem
objetivo são indesejáveis.(…) A cooperação e o trabalho em equipe são
sempre preferíveis à ação isolada. (…) Coca-Colas, chicletes, geladeiras
elétricas e automóveis são inteiramente bons (…)."
Já a pessoa autônoma, para Rogers, é aquela que
"reconhece que o comportamento e os desejos sexuais (e também os não
relacionados à sexualidade, acrescento eu) podem ser muito satisfatórios e ter
conseqüências permanentemente enriquecedoras, ou superficiais e temporárias e
insatisfatórias. Orienta-se por sua própria experiência e esta nem sempre
coincide com as normas sociais. (…)
Compreende que às vezes sente a cooperação como significativa e valiosa para
si, e que, em outras vezes, quer estar só. (…) É sua vivência que
proporciona a informação de valor ou feedback . Isto não quer dizer que não
esteja aberta a todas as provas que possa obter de outras fontes. Mas quer dizer
que estas são aceitas como são – provas exteriores – e não são tão
significativas quanto as suas reações. (…) prefere as experiências que, a
longo prazo, são enriquecedoras; utiliza toda a riqueza de sua aprendizagem e
funcionamento cognitivos, mas, ao mesmo tempo, confia na sabedoria de seu
organismo."
Piaget vem nos lembrar que em condições ideais a criança torna-se
progressivamente mais autônoma à medida em que cresce. Diz ele que os adultos
reforçam a autonomia ou a heteronomia das crianças, intercambiando com elas
pontos de vista, no primeiro caso, ou recompensando e castigando, no segundo
caso.
A criança educada com muitas oportunidades de trocas de idéias, construirá,
por exemplo, a noção de que é melhor para todos serem honestos uns com os
outros. A criança punida poderá desenvolver basicamente três atitudes: o cálculo
de riscos, a conformidade cega ou a revolta.
Para que as crianças desenvolvam autonomia, os adultos devem encorajá-las a
construir por si mesmas seus valores morais, e para isso é preciso que abdiquem
de punições e de recompensas como forma preferencial de educação, o que,
infelizmente, tem sido raro em nossa cultura tão apegada ao autoritarismo.
Abdicar de punições e de recompensas como forma preferencial de educação é,
no mais das vezes, em nossa cultura, tarefa difícil, embora possível, como nos
lembra Maria Tereza Maldonado:
"No entanto, apesar das dificuldades e temores que muitos pais sentem
frente ao desenvolvimento da autonomia da criança, sua tendência ao
crescimento tem muito a ensinar aos pais. Uma das tarefas mais delicadas e
complexas dos pais é crescer junto com o filho, acompanhando seu
desenvolvimento, o que evidentemente implica na capacidade de continuamente
reformular modos de ser e de atuar para melhor adequar-se às diferentes
necessidades e situações que se sucedem ao longo da vida."
O ponto essencial da autonomia é que a pessoa se torne apta a tomar decisões
por si mesma. Então, e só então, ela poderá tornar-se livre, entendendo aqui
a liberdade como a define Rollo May, ou seja a forma como a pessoa confronta com
seus limites, como empenha seu destino na vida cotidiana. May lembra-nos, ainda,
que a responsabilidade é inseparável da liberdade: "pois a liberdade
ilimitada é como um rio sem margens; a água não é controlada e o fluxo se
derrama em todas as direções, perdendo-se na areia."
As sanções impostas à criança devem ser sanções por reciprocidade, que são
aquelas "diretamente relacionadas com o ato que se deseja sancionar e com o
ponto de vista do adulto, tendo o efeito de motivar a criança a construir por
ela mesma regras de conduta através de pontos de vista."
Piaget cita exemplos de sanção por reciprocidade, tais como a exclusão temporária
do grupo (quando a criança age como elemento perturbador da harmonia grupal),
apelação para a conseqüência direta e material do ato, privação da coisa
mal usada (inclusive, e paradoxalmente, até da liberdade, ainda que
temporariamente) ou a reparação.
Todas estas sanções podem ser vistas como punições se não houver entre o
adulto e a criança uma relação de afeto, confiança e respeito mútuo. O
respeito, a aceitação incondicional e a empatia para com a criança são
fundamentais para que ela se desenvolva autonomamente. Respeitada e aceita como
é, a criança tenderá a respeitar e a aceitar o adulto.
Piaget e Rogers nos mostram que a aquisição de valores morais se dá muito
mais por uma construção interior que pela internalização do ambiente, quando
há condições favoráveis para que a criança se desenvolva.
O incentivo às liberdade de escolha é essencial para que se facilite à criança
o desenvolvimento da autonomia, respeitando-se, é lógico, os limites da criança
em cada idade:
"É possível favorecer o desenvolvimento da autonomia mesmo quando a criança
ainda é bem pequena, desde que os pais lhe dêem a oportunidade de fazer
escolhas que estejam ao seu alcance. Uma criança de 2 anos, por exemplo, já
pode escolher se quer tomar sorvete de morango, de chocolate ou de limão; uma
criança de cinco anos pode escolher a peça teatral de domingo. Com isso,
exercita-se a capacidade de tomar decisões, de discriminar o que quer e de
escolher o que é melhor para si."
As crianças precisam ser encorajadas a refletir, o que infelizmente é
negligenciado em quase todo o ensino tradicional. A gravidade desta lacuna em
nosso ensino se mostra diretamente vinculada à questão da autonomia, pois se
uma pessoa não pode refletir logicamente, como poderá pensar de maneira crítica
e autônoma?
É lógico que, quando estamos falando em e pensando sobre adolescentes e crianças,
precisamos ter em vista que a pessoa só pode de fato alcançar a autonomia máxima
na idade adulta. A infância e a adolescência são momentos da vida em que a
pessoa vai ensaiando sua autonomia, vai ampliando sua capacidade de autonomia
para que possa exercê-la o mais plenamente possível quando adulta.
No caso do adolescente, é importante atentarmos para o caminho que o jovem está
seguindo no sentido de alcançar a autonomia plena. Não podemos, de forma
alguma, esperar que um adolescente já possa exercer plenamente sua autonomia,
dentre outros motivos porque a adolescência é, por excelência, um período de
experiências e de busca de rumos, um momento em que modelos de pessoas adultas
são, mais do que nunca, importantes para que o jovem possa solidificar sua
identidade. Desta maneira, devemos esperar que o adolescente tenha, sim, mais
autonomia que a criança, mas não podemos cobrar dele plena autonomia, antes
pelo contrário. Se uma autonomia precoce é dada ao adolescente, é mais provável
que ele se sinta perdido que livre, pois, até alcançar a idade adulta, ele
precisa, e muito, dos pais a fim de que possa alcançar o necessário
discernimento e ser realmente cuidadoso consigo mesmo e com o mundo que habita.
A escola, assim como a família, tem como sua obrigação pavimentar ao máximo
possível o caminho do jovem em direção à autonomia. Mas não podem, a escola
e a família, perder de vista que o jovem não tem ainda condições de exercer
plenamente a autonomia, que, nele, é ainda potencial a ser desenvolvido. Isto
implica em um sentido de proteção ao jovem, principalmente no que diz respeito
ao estabelecimento de limites e de orientações que lhes sirvam de balizas ao
escolher seus próprios caminhos.
Outro aspecto da autonomia quando pensamos nos jovens é a questão mais prática:
o jovem ainda não tem a possibilidade de, por exemplo, se sustentar
financeiramente, o que certamente vai lhe trazer restrições quanto à sua
possibilidade de exercer a autonomia. E, mesmo que, excepcionalmente, o jovem
possa ter como se sustentar financeiramente, ele ainda não poderá prescindir
da orientação e do apoio da família e da escola, pois a adolescência é uma
passagem no processo de amadurecimento das pessoas, uma passagem que, se por um
lado exige a ampliação da autonomia, por outro lado exige com igual
intensidade a consciência de que ainda não há condições objetivas e
subjetivas para o exercício pleno da autonomia.
Ainda assim, a autonomia deve ser o propósito da Educação, e para isto é
preciso envidar esforços no sentido de ampliar esta noção como uma das metas
de educadores e pais.
É de novo Maldonado quem nos alerta ainda que
"respeitar a autonomia da criança implica não somente em aceitar o filho
como pessoa diferente de nós como também em acreditar que existem várias
maneiras ‘certas’ (e não apenas a nossa) de reagir ou de se conduzir em
determinadas circunstâncias. Muitas vezes, os pais não conseguem enxergar que
pode haver outras alternativas e fazem imposições desnecessárias, esperando
que o filho pense como eles ou se comporte como querem (‘eu sei o que é melhor
para meu filho’)."
Talvez esse seja o nosso grande desafio nos dias de hoje: lidar com as diferenças.
E aqui nós encontramos aquela que talvez seja a grande diferença entre quem
cria e quem educa filhos: quem cria filhos, quer padronização, uniformidade;
quem os educa busca lidar com as diferenças como enriquecimento, como, aliás,
nos ensina a natureza e seu processo de seleção natural.
O fato é que a vida nos faz lidar com um paradoxo interessante: no correr de
nosso desenvolvimento, somos o mesmo, isto é, temos como garantia de nossa
identidade uma vivência de continuidade que se caracteriza por nos
reconhecermos através do tempo como sendo uma única pessoa, apesar das tantas
diferenças que vamos fazendo em nós e em nosso corpo. Paradoxalmente, como
vamos ficando diferentes sem nem mesmo nos darmos conta disso! O corpo, até a
adolescência, é o principal denunciador dessas mudanças, tantas e tão rápidas
são as transformações que sofre; a partir da idade adulta, o corpo já se
transforma mais lentamente, ao passo em que nossa personalidade potencialmente
pode continuar a se transformar não tão lentamente através das tantas coisas
que vamos aprendendo sobre nós mesmos e sobre a vida.
Nossa cultura tende a negar o valor dessas transformações pelas quais
passamos, até enfatizando a afirmativa (que tantas vezes ouvimos) de que a
pessoa boa é aquela que permanece a mesma durante todo o correr da vida, o que
é, na verdade, um imenso desperdício.
A vida nos empurra para transformações, para aprendizagens, para
enriquecimentos e para a mudança, quando estamos permeáveis a seus chamados e
atentos a suas lições. A vida nos chama a lidar com as diferenças, e esta tem
sido, no meu modo de ver, a grande negligência de nossos tempos: há uma tendência
moderna de se tentar tratar de modo igual os desiguais, como, por exemplo, no
recente processo de globalização ao qual estamos sujeitados, ou no caso
daquela mãe que reclama que seus filhos são tão diferentes apesar de elas os
tratar da mesma maneira.
As pessoas, os filhos inclusive, são diferentes entre si, e não dá mais para
tentarmos fugir dessa realidade. Uma conduta que é boa para um filho pode não
ser para outro. Quando nos preocupamos em educar os filhos e não em criá-los,
quando queremos preparar nossos filhos para uma maior autonomia e para uma
melhor responsabilidade diante da vida e do mundo, quando sonhamos em vê-los
desempenhando um papel realmente transformador no mundo, não há como não
levarmos em conta que a boa educação se baseia no fascinante fenômeno das
diferenças individuais. Só assim poderemos, com propriedade, tratar
desigualmente os desiguais, e, deste modo, confirmar para cada filho o que ele
tem de único e de original, sem a necessidade de se comparar aos outros ou de
competir desnecessariamente com eles. Só assim cada filho pode se sentir amado
pelo que é, um ser único que um dia recebeu a graça da vida. É preciso que
os filhos saibam que cabem confortavelmente no coração dos pais como são, e não
como deveriam ser.
BIBLIOGRAFIA
Lima Filho, A. P. , Brincadeiras Selvagens, problema nosso. São Paulo, Oficina
de Textos, 1997
Kamü, C. A Criança e o Número. São Paulo, Papirus, 1985
Maldonado, M. T. , Comunicação entre pais e filhos: a linguagem do sentir.
Petrópolis, Vozes,
1986
May, R. Liberdade e Destino. Porto Alegre, Rocco, 1987
Piaget, J. & Inhelder, B. A Psicologia da Criança. Rio de Janeiro, Difel,
1978
Pinto, E. B. , Orientação sexual na escola – a importância da Psicopedagogia
nessa nova
realidade. São Paulo, Editora Gente, 1999
Rogers, C. R. & STEVENS, B. De Pessoa Para Pessoa. São Paulo, Pioneira,
1977
Winnicott, D. W. , Talking to Parents. New York, Addison-Wesley Publishing
Company, 1993
Publicado em 01/01/2000
Enio Brito Pinto – Formado em psicologia pela PUC/RJ é especializado em psicopedagogia pela UNIP.
Terapeuta há 20 anos, realiza palestras na área de sexualidade para jovens.
Professor convidado dos cursos de especialização em Educação Sexual e em Terapia Sexual, pela Sociedade Brasileira de Estudos de Sexualidade Humana e pela Faculdade de Medicina do ABC.
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