RELAÇÕES PARENTAIS E PARADOXO: PSICODINÂMICA DA AUTONOMIA DO ADOLESCENTE
Sandra Maia Farias Vasconcelos
Contemplar a adolescência é sempre um desafio em dobro para o terapeuta e para o psicopedagogo, dada a imensa variância de características inerentes a essa etapa da vida.
INTRODUÇÃO
A autonomia é seguramente uma das noções mais em moda no discurso atual da
educação. O processo de aprendizagem é um movimento de troca que inclui o
engajamento de pais e professores direcionado à competência da autonomia
cognitiva. A visão que se tem de escola através dos tempos obedece a critérios
da dicotomia boa-má, que se estende a professores e pais. A concepção do que
é bom pai ou boa mãe fundamenta as expectativas criadas a respeito da tarefa
de educar filhos. As dificuldades pessoais presentes nos relacionamentos e os
tabus culturais que permeiam o modo de pensar são elementos de constituição
do arcabouço da relação entre pais e filhos.
Contemplar a adolescência é sempre um desafio em dobro para o terapeuta e para
o psicopedagogo, dada a imensa variância de características inerentes a essa
etapa da vida. Alterações de comportamento e conseqüentes choques de gerações
constituem apenas alguns dos pontos da transformação desse ser em plena
descoberta de sua subjetividade. Junte-se a isso o fator biológico: a mudança
no corpo, a olhos vistos, dificultam ainda mais a visão de si mesmo, muitas
vezes levando esse bebê-adulto a não compreender a dinâmica por que passa. O
medo se agiganta porque ele pressente que sua mudança é percebida. Entra em
questão o jogo de espelhos de DOLTO. A adolescência é a conquista certa do
pensamento, mas é a consciência da existência do outro. Além disso, como
cita BOSSA(1998)
*agora ele é capaz de dirigir suas emoções para ideais e não apenas pessoas
pois seu pensamento se encaminha para o abstrato, para o social. Essa mudança
lhe traz diferentes manifestações de sua emoção.
Buscando apreender pela leitura do discurso do adolescente sua visão desse
relacionamento, a pesquisa foi elaborada durante um período de cinco meses,
através da análise qualitativa de redações produzidas por 450 jovens do
ensino médio de escola privada, de Turmas Avançadas, todos de classe média
alta, com idades compreendidas entre 14 e 17 anos. A criação das histórias
foi o resultado de um processo de escrita para formação de uma personagem: EU.
Os adolescentes não foram informados sobre o objetivo das produções, que se
inseriam no seguimento normal do conteúdo escolar, com algumas inovações ao
programa proposto pelo livro didático. Tendo a pesquisa um interesse
qualitativo, não foram elaboradas estatísticas.
Talvez por serem considerados tão presentes na atualidade, os adolescentes têm
sido centro de diversos estudos. É a faixa etária de grande diversidade de
problemas: drogas, gravidez, suicídio. Há, sem dúvida, grande estereotipação
dos adolescentes, como em todo estudo de grupo. Contudo, vale ressaltar que a
antiguidade não reconhecia essa fase. ARIÈS comenta sobre a visão antiga da
infância e a fase adulta como fases vizinhas e consequentes. A adolescência é
um legado do século XX e toma nesse século grande importância, provavelmente
por significar o conjunto de mudanças e decisões a serem tomadas. No conjunto
dessas decisões entra a escola, isto é, se não for a mais marcante. Também
na aprendizagem vemos grandes mudanças. O adolescente chega cada vez mais cedo
ao final do ensino básico e a luta pela entrada na universidade passa a
constituir sua primordial atividade. Sua dinâmica se inobserva a despeito dos
valores impostos pela sociedade. Por um lado, grandes diferenças sociais que
marcam o país; por outro, a cobrança e a pressão da escola e da família a
que esse adolescente decida que profissão seguirá. Sem maturidade suficiente
para decidir sequer que roupa vestirá na festa do sábado, esse indivíduo vê-se
obrigado a definir o que, na sua visão, fará pelo resto da vida. A situação
se agrava à medida que subimos na escala social, visto que a expectativa parece
modificar-se.
Além da presença de forte sentimento negativo já abordado por VASCONCELOS
(2000), ficou clara a estruturação dos ideais dos adolescentes. Depender
financeiramente dos pais foi uma das maiores preocupações desses jovens
demonstradas nos textos. Observamos ainda presença de ansiedade desses
adolescentes em (co)responder às expectativas dos pais. O ideal transformado em
entrada na universidade e como efeito de recompensa e pagamento ao grande esforço
dos pais. O sonho de independência financeira aliado ao suceso no vestibular
reforça o narcisismo heróico de ajudar a todos.
Pretendo ter uma boa profissão, honesta e que eu me sinta bem ajudando a todos,
não vendo quem.
As coisas que nós temos é para ser compartilhadas com todos aqueles aqueles
que necessitam.
Só sei que posso ser o que quiser, e que só depende de mim.
Nessa visão, o ideal narcísico da adolescência revela o heroísmo de
corresponder às expectativas dos pais, de mostrar que pode obter sucesso. A que
preço? Um adolescente escreveu:
Estou na fase da adolescência, estágio da vida em que a mente muda
completamente, é marcada pelo aborrecimento e intransigência, pretendo formar
a partir desse período um caráter cheio de honestidade e bons princípios.
(sic)
Sua reflexão insere o conceito de aborrecimento e intransigência. Seu texto
entretanto não deixa claro o sujeito do aborrecimento e da intransigência. Em
suas relações interpessoais, não se pode saber quem é intransigente com
quem, quem aborrece quem. Podemos sugerir apenas que o outro é a família. Essa
relação com o outro, algumas vezes consciente. Uma adolescente confessa:
A cada dia vou descobrindo uma nova L. e sei que ainda vou conhecer muitas
outras.
Na relação com a família, permeia-se uma agressividade dissimulada no não
querer ser igual:
Não me considero gorda, mas passo todos os dias de minha vida controlando o que
vou comer para não ficar igual a minha mãe. Isso é um sacrifício! Mas é
melhor do que ficar horrenda.
Ficar horrenda assemelha-se a ficar como a mãe. A imagem da mãe horrenda
transtorna a adolescente. Ainda em seu texto e aliada à repulsa pela imagem da
mãe, surge a obrigatoriedade de se sair bem nos estudos, ou seja, tirar boas
notas:
Estou me matando de estudar para conseguir aquele velho resultado.
Não é preciso ir muito longe para saber a que VELHO RESULTADO a jovem se
refere; o vestibular novamente aparece como objetivo vilão e desafiador, apesar
de repetitivo. Note-se que a colocação anterior do adjetivo velho (velho
resultado= costumeiro, de sempre) não dá a mesma conotação que daria se
posposto fosse (resultado velho=desgastado, usado). Estaríamos aí diante do
ato falho freudiano? Provavelmente.
Uma outra adolescente traz o seguinte discurso:
Sou fumante passiva, obrigada a copiar a fumaça asfixiante do próprio pai
A imagem de si mesmo e a obrigatoriedade do sucesso na escola e no vestibular
foram as falas constantes desses adolescentes
Na quase totalidade dos textos, o discurso desses adolescentes apareceu permeado
de angústia, de medo e da queixa de forte pressão familiar para que alcancem
status social. A angústia se revela pela influência do mundo exterior, pelo
medo de perder, de ser criticado ou de ser punido. Ao mesmo tempo, surge em seu
discurso a criação da necessidade de um retorno compensatório aos pais sob a
forma de sucesso profissional. A situação se agrava pois muitos não entendem
a razão de sua luta diária e, criando um universo simbólico e presente na
maioria dos textos, apresentam-nos pais maravilhosos, mas cujas atitudes nos
demonstraram o desconhecimento da psicodinâmica interna do adolescente. Some-se
a isso a responsabilidade de estar numa boa escola e numa turma de alunos
considerados os melhores em rendimento escolar.
CONCLUSÃO
Os textos trazem discurso da inquietação, acrescido da gratidão aos pais pelo
esforço dispendido na educação dos filhos. Há constante demonstração de
afeto e revolta nas relações parentais, formando o paradoxo no equilíbrio
familiar.
Assim, a família equilibrada, a boa escola e a melhor turma não são
suficientes para engendrar a AUTONOMIA do adolescente. Para tanto, seria necessário
levar em conta sua psicodinâmica: do narcisismo heróico à submissão ao sonho
dos pais, da escola e da sociedade.
Publicado em 01/01/2000
Sandra Maia Farias Vasconcelos – Psicopedagoga Hospitalar no Ceará e gostaria de manter contato com a Associação Brasileira de Psicopedagogia
Clique aqui:
Normas para
Publicação de Artigos