MORALIDADE INFANTIL
Tânia Ramos Fortuna
Algumas situações práticas envolvendo a moralidade infantil
Como se dá,
na prática, a construção da moralidade infantil? Em trabalho anterior, com
Horn (Fortuna e Horn, 1997), refletimos sobre o desenvolvimento moral dos alunos
na Escola Infantil. Na ocasião, conceituamos moralidade e esclarecemos as relações
que mantêm com o desenvolvimento intelectual, apontando caminhos para a
intervenção educativa.
Selecionamos,
desta feita, algumas situações práticas que envolvem a moralidade infantil,
demonstrando como compreendê-las e detalhando o papel destinado ao educador
nestas ocasiões.
Ao fazer
referência aos educadores, dirigimo-nos tanto aos professores, "cuidadores"
de crianças, atendentes, como aos pais, avós ou responsáveis na família.
Educadores, aqui, são entendidos no sentido amplo: são adultos que
possuem uma intenção educativa em sua interação com a criança,
protagonizando um fazer cujo objetivo é a promoção do desenvolvimento
infantil, em todas as suas dimensões, inclusive na construção da
subjetividade. A formação e o nível de consciência de tais objetivos
diferenciam os profissionais entre si e os demais responsáveis. Mas serão
educadores, de todo modo, aqueles que estiverem conscientemente comprometidos
com o crescimento e aprendizagem das crianças.
Examinaremos,
na seqüência, algumas situações em que é possível perceber como ocorre, na
prática, o desenvolvimento moral:
Cair
Dando os
primeiros passos ou correndo, com a incipiente destreza que a autonomia
corporal, recém adquirida, empresta à marcha, a criança cai freqüentemente.
Ali, estatelada no chão, em poucos segundos experimenta não só a dor dos
arranhões e contusões – muitas vezes superestimados – mas a dor proveniente do
não saber o que fazer, colocada que é, subitamente, numa outra perspectiva do
ponto de vista espacial. Aquilo que a criança enxergava antes, quando, lépida,
corria, agora não vê mais, ao nível do chão em que está. Se carregava
alguma coisa na mão, ao continuar segurando o objeto, dificulta seus esforços
no sentido de levantar-se; pode, também, abandoná-lo bruscamente, quebrando-o
ou perdendo-o de vista. As sensações corporais são novas, e mesmo que pouco
doloridas, exigem da criança sua compreensão: como pisar com o pé arranhado?
Como levantar com a perna ardendo? Que mão é esta, toda vermelha, sangrando –
é minha?
Os
diversos matizes da nova experiência que é cair – cujo caráter de novidade não
é tanto medido pelo número absoluto de quedas, mas por sua diversidade e
contexto em que ocorrem – requerem, da parte da criança, uma rápida e intensa
aprendizagem, integrando-a às experiências anteriores. Conta, para isto, com
limitados recursos intelectuais, restrita que está à ação concreta e à precária
organização das imagens mentais. Conta, também , com os adultos,
especialmente aquele que cumpre a função materna , referência que é para as
novas situações que exigem aprendizagem. E o adulto, o que faz?
As reações
do adulto informam às crianças algo sobre sua vida emocional, ensinando-lhes
como experimentar sensações e expressar sentimentos. Pode correr em direção
à criança, desesperado, emitindo a mensagem “cair é perigoso” e seu corolário,
facilmente apreendido pela criança: “andar, afastar-se do adulto, fazer algo
novo, ousar é perigoso”, e comunicando, com seu pânico, sua frágil
estabilidade emocional. Pode, também, virar as costas, supondo ser a queda um
modo de a criança chamar sua atenção e expressar dependência ante uma situação
que é capaz de superar sozinha. Com esta atitude recusa-se a estabelecer uma
comunicação com a criança naquele momento, eximindo-se de dele participar, e
ensina, com o “vire-se” subjacente, que aprender é uma ação solitária
cujo objeto, ainda que inevitável como a queda, é desprezível. A criança
depreende, deste modo, que seu empenho em aprender tem pouca importância.
Pode, finalmente, agir com naturalidade, apoiando a criança naquele momento
inusitado e, por isso, cheio de medo, através da narração e interpretação
do acontecimento, em uma linguagem acessível e tranqüilizadora. Colabora, com
esta conduta, para que a criança interiorize a experiência, entendendo-a e
revisando sua perspectiva de modo a dissolver o ponto de vista egocêntrico do
ocorrido.
E quando
a criança cai, de novo e inúmeras vezes? Repetindo a queda e desprezando a
ajuda com cólera ou um empurrão, revela seu esforço no sentido de aprender a
solucionar um problema e fazer-se “dona” do episódio. Talvez o adulto diga:
“já te ajudei uma vez, agora chega”, sentenciado, autoritariamente, a
amplitude da experiência, como se fosse possível controlá-la desde fora,
reforçando sua dimensão heterônoma, ou seja, ser governado por outrem. Talvez
transforme aquela conquista num espetáculo, com palmas e estímulos exagerados,
avultando-lhe o significado e destituindo-lhe a seriedade, disputando com a
criança o domínio da situação. Mas, quem sabe, sem abandoná-la nem
dirigi-la, acompanhe a criança, observando-a, conhecendo-a e oportunizando, com
esta atitude, que conheça a si mesma, nesta experiência, emblema de tantas
outras, que é o cair.
Quebrar alguma coisa
Quando as
crianças pegam algo proibido, é preciso perguntar-se: ela sabe que é
proibido? Como? Por que “uma vez” isto foi “dito”, enquanto todos podiam
pegá-lo? Qual o acesso que teve ao objeto? Que esforços fez no sentido de
alcançá-lo? Que experiências anteriores teve com o objeto?
Em Horn e
Fortuna (op.cit), descrevemos como o “não” é interiorizado, dependendo de
situações concretas e relações interindividuais para ser construído. A
construção da noção de “proibido” depende da constância da proibição
e de sua compreensão. A dupla mensagem é o maior obstáculo enfrentado pela
criança na construção desta noção, pois “façam o que eu digo, mas não
façam o que eu faço” é o lema de muitos adultos na educação moral de
crianças, dificultando, precisamente, a compreensão e adesão às regras. Sem
consciência de que a aprendizagem sobre o modo de ser – a identidade – tem, na
imitação, seu mais eloqüente instrumento, desprezam o poderoso processo de
ensino instaurado incessantemente através da demonstração sobre como agir
diante de toda sorte de situações. Porque as crianças não dispõem de meios
idênticos aos adultos para comunicar suas aprendizagens, não quer dizer que não
as produzam, de um modo adaptado aos recursos de compreensão e expressão
momentaneamente à sua disposição, de acordo com a etapa do desenvolvimento em
que se encontram.
Objetos
demasiadamente atraentes, pelo prestígio que gozam no universo adulto ou de
crianças mais velhas, ao alcance das crianças pequenas transformam-se em fácil
presa de sua curiosidade, passaporte que são de sua integração ao mundo
adulto, através da posse do objeto valioso. O simples afastamento do
objeto proibido, no entanto, não colabora com a construção da noção de
proibido nem impede que a criança, uma vez a ele exposta, deixe de manuseá-lo
sofregamente, correndo o risco de danificá-lo. Se nem o afastamento nem a
exposição impedem que a criança mexa em algo que não deve, como pode o
adulto intervir? Novamente entra em jogo a condução segura e esclarecedora da
experiência, em que o educador explica, de forma clara e inteligível para a
criança, as razões que a impedem de mexer no que é proibido, com demonstrações,
se possível. Após, afasta o objeto, de início totalmente, e depois,
lentamente, volta a introduzi-lo no ambiente da criança, de modo que não
represente mais fonte de curiosidade.
O que o
adulto não pode querer é que a criança saiba o que é “quebrar” e como as
coisas se quebram, sem nunca ter vivenciado isto. A bronca “você não viu que
ia quebrar?” – que vale também para a queda, com a admoestação “você não
viu que ia cair?” – é improcedente, porque, para que a criança faça um
raciocínio prospectivo, fazendo projeção do que vai acontecer depois, é
preciso ter vivido a experiência e aprendido com ela. Ora, se visse que ia
quebrar, ou cair, não teria agido daquele modo! Por outro lado, “o sem
querer”, enunciado pelo adulto ou pela própria criança, nem sempre concorre
para a construção do sentimento de responsabilidade. Embora diretamente ligado
ao sentimento de culpa, dele se diferencia por ter este último uma dimensão
demeritória, para a qual a desculpa é o antídoto. Desculpando a criança,
o adulto escoima a experiência de toda a sua importância moral, impedindo-a de
compreender a relação causal subjacente e acrescentando-lhe o peso de ter
feito algo “feio”, “errado”. Se isto é dito pela criança, sem entender
seu sentido e de forma compulsiva, pior é o efeito, representado por um pedido
assustado de desculpa de algo que sequer compreende como acontece. Além do
mais, o “sem querer” passa a funcionar como senha para fazer qualquer coisa
sem dela responsabilizar-se. Se autonomia refere-se à capacidade de tomar decisões
por si mesmo, identificando-se como co-autor das regras e responsável por sua
manutenção ou substituição, portanto, situando-se como sujeito da ação, e
se esta é a meta de toda educação moral, posto que é a etapa mais avançada
de seu desenvolvimento, como retirar “o querer” da criança? Ela pode não
ter querido que o objeto se danificasse, mas precisa identificar em suas ações
a causa do dano. Ao ver o vaso quebrado, por exemplo, aprende que as coisas se
quebram, como se quebram, que reação produzem nas pessoas e o que deve ser
feito para consertá-las. Nas demais circunstâncias semelhantes, deve ser
lembrada – voltemos, aqui, ao adulto como evocador externo não só das regras,
mas também da experiência adquirida, contribuindo para sua inserção em um
sistema de relações, de modo a resultar em conhecimento – das vivências
anteriores, com breve descrição e demonstração simplificada. Pode-se
propiciar à criança que dramatize o que aconteceu, na vez anterior em que
mexeu em algo vulnerável, transformando a situação em um jogo no qual
apodera-se das regras e compreende causa e efeito da ação.
É
preciso, aqui, como nos demais momentos decisivos do desenvolvimento moral, um
adulto disponível, capaz, ele mesmo, de projetar-se na posição da criança,
avaliando sua perspectiva para, em seguida, retornar à posição adulta,
revelando, assim, mobilidade psíquica e capacidade de equilibrar pontos de
vista.
Perder-se, atravessar a rua
Quando
uma criança se perde – na rua, em uma loja, no supermercado – como assinala
Bettelheim (1988:60), ela não diz “eu me perdi”, e sim “você me
perdeu”. Na opinião da criança, a culpa é do adulto, que a colocou em
situação tão vulnerável. Sua fala revela, por si só, a compreensão que tem
do ocorrido, com toda a dificuldade que possui de colocar-se como sujeito
responsável por suas ações. Resumindo a heteronomia, sua compreensão de
perder-se indica o outro como instituição que a governa.
Além
disso, a simples percepção de sua falta de jeito ou incompetência,
desencadeadora de um sentimento de inferioridade, somada ao temor à irritação
do adulto porque quebrou algo, perdeu-se ou atravessou a rua sozinha, em situação
de perigo, elevam a ansiedade da criança. Esta ansiedade, quando se encontra
com a censura furiosa do adulto, deixa-a sob um sentimento de desamparo e
abandono. O medo da raiva do adulto, combinado com o sentimento de
inferioridade, exigem, no lugar da crítica contumaz, solidariedade. Quem deve
tomar a dianteira na coordenação de pontos de vista é o adulto, procurando
assumir a perspectiva emocional da criança. De certa forma, a criança vê mais
do que o adulto em situações como esta: vê a sua infelicidade, oriunda do
sentimento de incompetência e inferioridade, e vê o lado do adulto, observando
a sua infelicidade expressa através da insatisfação em relação à ela.
Enquanto isto, o adulto só tem olhos para a perda material – no caso do quebrar
alguma coisa – ou para a humilhação pública porque passa, ou para o susto que
teve – se a criança faz um escândalo porque caiu, ou se perdeu, ou ainda por
que não quer atravessar a rua.
Não desgruda, excessivamente dependente
É
preciso perguntar "o que ela pode fazer sozinha?", para avaliar se sua
dependência não é fomentada pelos adultos que a rodeiam – não pode entrar no
quarto sozinha, nem mexer nos brinquedos, nem ir na sala, ou sacada, ou
cozinha… Que ambiente é este: promotor da ação livre ou dependente?
"Só
eu sei fazê-lo dormir, ou comer" pode denunciar, ainda que sob o manto da
competência especial, o desejo do adulto de se fazer necessário à criança,
legitimando seu papel e o que disto decorre – "não posso trabalhar, não
posso sair, não posso estar em intimidade com meu marido…" A queixa
sobre a criança que não desgruda talvez represente a narração de um desejo
do adulto: é ele que não quer desgrudar-se!
Úteis
interrogações para nortear a compreensão desta queixa são:
1-
quem não desgruda?
2-
quem é dependente?
3-
não estará a criança sendo usada pelo adulto?
Todavia,
a criança "grudada" pode estar demonstrando um efetivo interesse em
conviver com aquele adulto: suas demandas não são justificadas, no sentido de
que ele não precisa, verdadeiramente, do adulto para realizar aquelas ações
que pretende, mas um pretexto para tê-lo junto de si. Este "tê-lo junto
de si" também precisa ser examinado: a intensidade e freqüência da exigência
de companhia podem atestar o estado de ansiedade em que a criança é colocada
em situações de separação incompreensíveis para ela e, principalmente,
imprevisíveis, que não lhe permitem organizar-se e preparar-se para isto.
Assim, a requisição veemente da companhia do adulto talvez se inscreva no
esforço da criança de aprender sobre estas separações, ensaiando algum
controle sobre elas.
Ao adulto
compete ajudá-la a entender esta experiência, sendo constante, coerente e
firme nos momentos de separação – ora ficar, ora não, ou ficar se ela
chora muito não a ajuda a entender a necessidade de se desgrudar – e
proporcionar-lhe momentos de “convivência concentrada” como diz Tiba
(1996), segundo as necessidades e resistência da criança, e não segundo o
humor do adulto. Muitas vezes esta convivência não precisa se dar no parque,
no Shopping, num passeio muito elaborado: fazendo coisas simples, juntos, desde
uma “farra” no sofá da sala, até ver TV juntos, conversando sobre
comerciais e programas prediletos.
Por fim,
ainda citando Tiba, "ser mãe é algo que demanda tempo" (op.cit.:38).
Em Educação, querer economizar tempo é o modo mais fácil de perdê-lo. A
exigência de tempo da interação educativa, longe de significar "perder
tempo", constitui-se não só em um importante investimento na formação
moral, pois o desrespeito ao ritmo biológico da criança, por exemplo, é um
modo de inseri-la em um contexto indisciplinado (ibid.), mas representa,
sobretudo, a mais emocionante das aventuras – a de relacionar-se com o ser
humano.
Considerações finais
É
difícil para o adulto reconhecer que é sua responsabilidade oferecer situações
concretas – e, por conseguinte, seu correlativo emocional – adequadas às
possibilidades da criança, sobretudo quando o acidente ou a desobediência se
criam em um contexto que denuncia a incúria do adulto.
O
adulto, deve, sim, assumir seu papel de educador, sem que isto signifique privar
a criança da progressiva assunção da responsabilidade por seus atos. É
necessário examinar, com cautela, os locais aos quais a criança é conduzida,
quanto às condições de segurança oferecidas e às solicitações
demasiadamente exigentes para o repertório de respostas disponível da criança.
É, também, fundamental que a criança receba tarefas graduadas às suas
possibilidades, para que se sinta partícipe da experiência, palmilhando o
longo trajeto em direção à autonomia.
Nas
situações acima descritas, como em todas as demais que colocam em xeque a
construção da moralidade ao longo do desenvolvimento infantil, ao adulto cabe
escolher entre sufocar o medo, a tristeza, a vergonha e a confusão da criança,
ou servir de continente aos seus sentimentos, mostrando-se compreensivo e solidário
com sua dor. Enfim, sentindo com a criança, como tantas vezes Winnicott, em sua
obra, lembrou, e a partir dela Bettelheim, também. Não é preciso que sinta
como a criança, que seja a criança. Basta que faça aquilo que sua condição
de adulto moralmente autônomo oportuniza-lhe: deixar de ver sob um único ponto
de vista – descentrar-se – e coordenar as diversas perspectivas – agir com base
na reciprocidade. A principal lição na educação moral da criança será
perceber que ser adulto é ser capaz de compreender e colocar-se no ponto de
vista do outro, sendo ele mesmo.
Referências bibliográficas
BETTELHEIM,
B. Uma vida para o seu filho. Rio de Janeiro: Campus, 1988
FORTUNA, T. R. Desenvolvimento infantil: como manejar comportamentos infantis
que provocam queixas? Revista do Professor, Porto Alegre, 12(46):41-45,
abr./jun. 1996.
— e HORN, M. G. Dois enfoques: a trajetória do desenvolvimento moral na
educação infantil. Porto Alegre: Seminário de Educação Infantil da
Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura Municipal de Porto Alegre,
1997. (A ser publicado na Revista do Professor.)
TIBA, I. Disciplina: limite na medida certa. São Paulo: Gente, 1996.
WINNICOTT, D. W. A criança e seu mundo. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
— Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. 4. ed. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1993.
Publicado em 01/01/2000
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