EDUCAÇÃO INFANTIL E MUSICALIZAÇÃO
Cleudet de Assis Scherer
Educação Infantil e musicalização: algumas reflexões na perspectiva histórico-cultural
Neste artigo, objetivamos discutir a relação existente entre a musicalização e o desenvolvimento da criança pequena na Educação Infantil. Partimos de inquietações e questionamentos ocorridos em nossa vivência como professora e pesquisadora desse nível de ensino, que nos instigaram a buscar na perspectiva Histórico-Cultural explicações, em particular, ao que concerne à forma como esses autores concebem o ser humano, seu desenvolvimento, e a importância do outro como mediador dessa aprendizagem. Sob esta abordagem, ao observarmos o desenvolvimento de crianças da Educação Infantil, e seu interesse nas atividades desenvolvidas, surgiu à seguinte questão: de que maneira a música como elemento cultural, pode contribuir para o desenvolvimento da memória, da criatividade, da percepção e do pensamento dessas crianças? A concepção que norteia essa discussão é a de que segundo Vigotski e seus colaboradores, o desenvolvimento de funções psíquicas acionadas pela educação musical, está em estreita relação com as condições histórico-culturais nas quais o sujeito está inserido. Desenvolvemos a pesquisa em uma escola regular no centro-oeste do Paraná, em turma de musicalização, com 18 (dezoito) alunos entre 4(quatro) e 5(cinco) anos no nível III da Educação Infantil, no primeiro semestre de 2009. Com base em observações das crianças, reflexões teóricas e práticas pedagógicas esse estudo nos permitiu inferir que a música pode efetivamente contribuir para o desenvolvimento da linguagem, da percepção, da memória e da imaginação, em crianças da escola da infância.
Palavras-chave: Educação Infantil. Musicalização. Histórico-Cultural.
Introdução
A importância da música e da arte na sociedade contemporânea é justificada pelo fato de promover o desenvolvimento humano, conforme estudos já realizados por diferentes autores (LOUREIRO, 2003; BRITO, 2003; SCHROEDER, 2007) não por meio de alienação, mas sim, por meio de esclarecimento, da interdependência entre o corpo e a mente, entre a razão e a sensibilidade, entre a ciência e a estética, para promover a liberdade na criação e realização de sua própria ação.
Esse ensino tem sido priorizado na Educação Infantil por intermédio das linguagens artísticas como outras formas de “leitura”, ou seja, como por exemplo: quando uma criança de três anos ouve uma história lida por sua mãe ou professora está “lendo com os ouvidos”, o que é mais importante nessa fase do que ler com os olhos (BRITTO, 2009), e também, como um dos meios de acesso ao saber culturalmente produzido a todas as crianças independente de sua classe social.
Outro fator importante a ressaltar é que os documentos que regulamentam esse nível de ensino, como o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (BRASIL, 1998) propõem o trabalho com a arte e suas diferentes linguagens, entre elas a música, como proposta para o desenvolvimento integral da criança. Nesse sentido, buscaremos refletir sobre as relações existentes entre a linguagem, a percepção, a memória e a imaginação e as atividades artísticas musicais no contexto escolar.
A concepção que norteará a discussão é a de que essas complexas funções superiores, segundo Vigotski (1991), são assim denominadas porque se referem a mecanismos intencionais, ações conscientemente controladas, processos voluntários que nos dão a possibilidade de independência em relação a circunstâncias do momento e espaço presente; têm sua origem nas relações sociais que o indivíduo estabelece com o mundo.
O processo de humanização está assentado nas relações de trabalho e no próprio trabalho (ação com instrumentos para modificar a natureza). As ações de transformação da natureza, e consequentemente do próprio homem, promovem a constituição de novas funções psíquicas. Assim, por meio do trabalho, as funções psicológicas humanas, de elementares transformaram-se em funções capazes de diferenciar o homem dos outros animais. Como explica Leontiev (1978, p. 74), “o trabalho é, portanto, desde a origem, um processo mediatizado simultaneamente pelo instrumento (em sentido pleno) e pela sociedade”. Dessa forma, não há apenas uma relação do homem com a natureza, mas também, para a efetivação desse trabalho, uma interação com outros homens.
Em outras palavras, é pelo processo de desenvolvimento profundamente enraizado nas relações entre a história sócio-cultural e a história individual que ocorre a formação humana. Portanto, a linguagem, a percepção, a memória e a imaginação, dentre outras funções compõem o psiquismo humano, e diferenciam o homem dos demais animais, pela intencionalidade de suas ações. Essa perspectiva teórica leva em consideração que essas capacidades mentais, tipicamente humanas, são constituídas no decorrer de uma interação mediadas por signos (no nosso caso a linguagem musical), e instrumentos físicos entre o indivíduo e o meio social. Nesse sentido, Vigotski (1991) explica que o desenvolvimento psíquico é promovido e organizado por meio de mediações e interações estabelecidas entre os homens ao longo de sua história; processo no qual, a mediação social é fator primordial para que os processos interpsíquicos, isto é, os partilhados entre as pessoas, sejam internalizados transformando-se em processos intrapsíquicos. Assim, desde que nasce o ser humano encontra-se em uma ambiência que pode favorecer ou não, seu desenvolvimento.
O cérebro humano possui uma grande plasticidade demonstrada pela capacidade de modificar-se e adaptar-se, sob uma base fisiológica e neuronal (MIRANDA-NETO, 2002). Além disso, o bebê humano ao nascer dispõe de todas as células nervosas que poderá ter, mas necessita de sinapses, isto é, de conexões entre os neurônios para que ocorra o seu desenvolvimento psíquico, físico e vital. Para que isso ocorra, o seu cérebro precisa de um ambiente estimulante, uma vez que ao inserir-se num mundo de linguagem e cultura, a criança necessita da presença do adulto para sua sobrevivência, aprendizagem e desenvolvimento.
Podemos perceber que segundo esses autores, a criança não nasce com o seu desenvolvimento predeterminado, ao contrário, a exposição à cultura e à língua específica determina a sua forma de perceber o mundo e a si mesmo. Nesse contexto teórico, como a música parte da cultura sócio histórica do homem, pode contribuir para o desenvolvimento da criança?
A música se faz presente em todas as manifestações sociais e pessoais do ser humano, desde os tempos mais remotos. Schaeffner (1958) explica que, mesmo antes da descoberta do fogo, o homem primitivo se comunicava por meio de gestos e sons rítmicos, sendo, portanto, o desenvolvimento da música resultado de longas e incontáveis vivências individuais e sociais.
Da mesma maneira, ao nascer, a criança entra em contato com o universo sonoro que a cerca: sons produzidos pelos seres vivos e pelos objetos. Essa sua relação com a música pode ocorrer, por exemplo, por intermédio do acalanto da mãe ou aparelhos sonoros, sons da natureza e outros sons produzidos em seu cotidiano. Assim, a música dialoga com a constituição interna do ser humano. A criança estabelece suas primeiras relações com o mundo sociocultural por meio dos sentidos e dos laços afetivos.
A educadora brasileira Ilari (2003) vai mais além, ao afirmar que o primeiro contato do ser humano com a música acontece mesmo antes do nascimento em sua vida intrauterina. Ao ouvir o batimento cardíaco da mãe, mais compassado e mais lento que o seu, ainda feto, o ser humano toma contato com um dos elementos fundamentais da música – o ritmo. Desse modo, iniciamos nosso contato musical desde quando nos encontramos no útero materno e o estendemos por toda a vida, na medida em que nos apropriamos de práticas sociais e tradições culturais musicais historicamente produzidas pela humanidade.
Nesse contexto, justificamos a música como um recurso para o desenvolvimento psíquico de crianças da Educação Infantil, visto que a mesma garante que desenvolvam determinadas funções psíquicas ao se apropriarem do conhecimento veiculado em produções culturais da humanidade, em um processo educativo do qual participam de forma integral.
O presente estudo tem por objetivo tecer algumas reflexões sobre a prática pedagógica do ensino da música, por entender que os dados obtidos até o momento em nossa pesquisa de mestrado, nos trazem indicativos de que ela se constitui em um efetivo meio de desenvolvimento de crianças dependendo da metodologia e das mediações estabelecidas, sejam elas ricas ou empobrecidas.
Desenvolvimento
A música como mediação na Educação Infantil
A musicalização favorece sobremodo a oralidade, uma vez que a música é primordialmente, oralidade. Na vivência com as crianças percebemos que no início das atividades elas só observam as canções e aos poucos acompanham o ritmo e cantam os finais das frases. Fazem registros musicais na sua memória, a princípio apenas vocaliza, e, aos poucos, vão aumentando seu repertório de palavras, desenvolvendo sua capacidade de expressão, ao imitar gestos e ações. Sobre a imitação Vigotski (2001, p. 120) afirma que a criança “[…] reproduz ativamente e assimila o que vê nos adultos, aprende as mesmas relações e desenvolve em si mesma os instintos primários do que irá necessitar na futura atividade”.
A linguagem faz com que pensamentos e emoções de uma pessoa possam habitar a outra. Para Luria (1985) a aquisição de um sistema linguístico supõe a reorganização de todos os processos mentais da criança. A palavra passa a ser assumida como um fator excepcional que dá forma à atividade mental aperfeiçoa o reflexo da realidade e cria novas formas de memória, de imaginação, de pensamento e de ação. Desse modo, o ser humano constitui-se como ser único, tornando-se não só um produto do meio, mas agente ativo nesse ambiente.
Assim, o desenvolvimento da linguagem é fator essencial para seu desenvolvimento psicointelectual. Como complementa Luria (1979, pp. 81- 82)
[…] a importância da linguagem na formação da consciência consiste em que ela efetivamente penetra todos os campos da atividade do homem, eleva a um novo nível o desenvolvimento dos processos psíquicos.
Nesse sentido, podemos pensar que a música, como elemento mediador, contribui para o desenvolvimento da linguagem, ao permitir a auto-expressão da criança de forma espontânea e natural. Ainda segundo esse autor, esse sistema de códigos e significados, a linguagem é “[…] o veículo mais importante do pensamento, que assegura a transição do sensorial ao racional na representação do mundo” (LURIA, 1991, p. 81).
A linguagem guarda em si, e, portanto, permite comunicar aos outros, o conhecimento, os valores, os sentimentos e o modo de pensar de diferentes culturas e épocas distintas. Por essa razão, ela faz a mediação entre o individual e o social, em um processo em que ambos se modificam. Ainda complementando a importância desse desenvolvimento Kostiuk (2005, p.21) explica
Os processos verbais adquiridos e dominados primeiro pela criança como atos sociais imediatamente tendentes à satisfação de determinada necessidade se convertem, com a continuação, na sua forma interior e exterior, em fatores importantes do desenvolvimento da percepção e imaginação, em instrumentos do seu pensamento e de toda a organização e regulação do seu comportamento.
Com base nas observações das crianças e estudos da perspectiva Histórico-Cultural, entendemos que o ensino musical por se constituir em interações sociais e por meio de apropriações de elementos musicais produzidos por gerações antecedentes, também permite o desenvolvimento de outras funções primordiais como, a memória, a imaginação e o pensamento.
Sokolov (1969) explica que sem a fixação da memória, o ser humano não poderia acumular experiências para utilizá-las em outras atividades, não reconheceria os objetos a sua volta, nem poderia orientar-se no meio que o rodeia. Sem fixá-los na memória não seria possível nenhum ensino, nenhum desenvolvimento intelectual e nem prático.
Foi possível observar também em nossa pesquisa que a musicalização ajuda a desenvolver a capacidade de concentração imediata, de persistência e de dar resposta à constante variedade de estímulos; e assim, facilita a aprendizagem ao manter em atividade os neurônios cerebrais.
A criança memoriza um repertório de canções e conta consequentemente com um “arquivo” informações referentes a desenhos melódicos e rítmicos que utiliza com frequência nas canções que canta e inventa, já que desde o seu nascimento tem contato com o mundo sonoro e musical, e mesmo antes de falar podemos ver o bebê cantar, gorjear e experimentar sons vocais diversificados.
A linguagem musical estimula a memória verbal e escrita, visto que uma canção pode ser um relatório de uma leitura, e as notas ensejam o mesmo significado das palavras. Amplia seu repertório de palavras e sua visão de mundo, não com repetições monótonas, mas com conhecimentos que fazem parte de sua vida e por meio da apropriação de bens culturais produzidos socialmente. Sokolov (1969) deixa claro que memorizamos melhor o que tem significado importante para a nossa vida, e também aquilo que está associado aos nossos interesses e necessidades.
Esse mesmo autor assevera que a atenção e a percepção são funções fundamentais, que se encontram na base do desenvolvimento das demais capacidades de modo que o raciocínio, a memória e a imaginação, não se estabelecem e não operam sem essa participação efetiva. A percepção é uma capacidade intelectiva extremamente importante á educação, uma vez que, em menor e maior grau, está imbricada em todas as atividades escolares. Essa função está presente em quase todos os animais, assim como nos bebês e é de natureza reflexológica, ou seja, movida por necessidades instintivas. Enquanto que nos animais se mantêm inalterada, no homem, sofre modificações substantivas. Como afirma Vigotski (1996) é por meio da aprendizagem do conhecimento contido em instrumentos físicos e simbólicos que as formas cognoscitivas e de sentimento se estabelecem. Pela mediação, pela via da linguagem, o caráter instintivo da percepção vai sendo substituído pelo caráter social, e ganha uma nova identidade e uma nova dimensão humana. Dessa forma, a aquisição da linguagem humaniza a percepção como explica Sokolov (1969, p. 148, tradução nossa)
A percepção se forma desde a infância sob a influência da linguagem, na qual se tem fixado a experiência social das gerações passadas. As indicações verbais dos adultos ajudam a criança a destacar uma ou outra parte dos objetos, a perceber o que é parecido ou sua diferença. Por meio da palavra, a criança adquire novos conhecimentos sobre os objetos e isto, influi essencialmente sobre a percepção.
De posse dessas informações, nos indagamos sobre as condições necessárias para o desenvolvimento dessa função por meio das atividades musicais. A escuta tem grande importância na Educação Infantil, escutar é perceber e entender os sons por meio do sentido da audição, ou seja, detalhar e tomar consciência do fato sonoro. Como por exemplo, quando trabalhamos nas aulas de musicalização com os diversos tipos de sons – sons do entorno, sons da natureza, sons dos animais, sons do corpo, sons dos instrumentos musicais e da produção musical da cultura humana – estamos propiciando as crianças á oportunidade de ouvir, não apenas como processo fisiológico, mas sim como um processo contínuo de interpretação de dados com vistas à integração entre a ação e a recepção sonora. (BRITO, 2003). Graças a essas atividades a criança estabelece a comunicação, que transcende o simples contato sensorial com o mundo circundante: a percepção lhe permite a compreensão.
Enfim, como percebemos nesse estudo, a criança ao se apropriar da linguagem, fica apta a organizar sua percepção e memória, e é capaz de tirar conclusões a partir das suas próprias observações e fazer deduções e assim conquistar todas as potencialidades do pensamento. Ao nomear algo, ela estará analisando e passando a usar palavras para designar e resolver problemas relacionados ao seu mundo, por intermédio de experiências de todo gênero humano, e não só por sua experiência pessoal.
Vigotski (1989) explica que a memória, a fantasia ou imaginação são funções complexas e dialeticamente inter-relacionadas e são manifestadas apenas no ser humano. Para esse autor, tudo o que nos rodeia foi criado pelo homem, ou seja, o mundo da cultura é produto da imaginação e da criação humanas. Ignatiev (1969) aponta que a imaginação é a capacidade de produzir do sujeito, criar algo novo, que até então não existia, ou utilizar algo existente para um fim até então desconhecido. Desse modo, quando escritores, pintores e artistas em geral criam suas obras, se inspiram em observações e aprendizagens ocorridas durante sua vida.
Nesse sentido, cada vivência, cada nova experiência da criança deve ser direcionada para o desenvolvimento de todos os mecanismos psicofisiológicos, que vão transformar as suas relações com o seu entorno em novos níveis de relações com o mundo. Com base nessa visão, podemos afirmar que a música pode ser usada para produzir um estado de flexibilidade, pode abrir caminhos para um fluxo de idéias, de fantasias, e assim estreitar laços nas relações sociais e estimular a imaginação na pequena infância.
Metodologia
O estudo está se realizando em uma escola municipal de Educação Infantil no centro-oeste do Paraná em turmas de musicalização do nível II. Investigamos em especial, o desenvolvimento de funções psíquicas em crianças de quatro a cinco anos submetidas ao ensino da musicalização em duas aulas semanais de cinquenta minutos.
O trabalho relatado nesse artigo resulta de observações, registros, vídeos e análise das reações às atividades musicais dos alunos, nos primeiros meses do ano de 2009. Os procedimentos utilizados durante as aulas são planejados e organizados com vistas a propiciar aprendizagem e desenvolvimento, já que esse nível de educação não deve ser entendido como uma pré-educação, mas como uma educação em si, com seus objetivos, conteúdos e métodos próprios, de forma que as crianças possam se apropriar da herança deixada pela humanidade, desenvolvendo funções psíquicas. É também, nesse período, segundo Ilari (2003) que novos aprendizados vão reorganizar e reforçar as conexões entre as células do cérebro humano. Novas conexões e sinapses são formadas á medida que novos conhecimentos são adquiridos.
Com o intuito de analisar os efeitos da musicalização em seu desenvolvimento, foram estabelecidos objetivos para cada procedimento com vistas à aquisição dos conceitos musicais de intensidade: sons fortes e fracos; de duração: sons longos e curtos; e de andamento: sons rápidos e lentos. Para a consecução dos objetivos propostos, planejamos aulas com as estratégias bastante diversificadas: utilização de instrumentos de percussão, jogos musicais de imitação e criação, histórias sonorizadas, canções folclóricas, entre outras. Procuramos também, com base na perspectiva Histórico-Cultural (Vigotski e Leontiev) direcionar o tipo de atividade a ser proposto para essa faixa etária, bem como as ênfases musicais a serem trabalhadas, para atingir os resultados propostos.
Os dados obtidos ainda que preliminares são indicativos de que a música é um instrumento psicológico excelente para o desenvolvimento de funções psíquicas de crianças desse nível de ensino. Podemos perceber que além da aprendizagem de conceitos musicais houve a ampliação do vocabulário das crianças, maior participação nas aulas trazendo suas experiências sonoras como contribuição e também a alegria com a participação em jogos e brincadeiras infantis do nosso folclore esquecidos por seus educadores.
Considerações Finais
A análise parcial dessa pesquisa nos permite afirmar que a musicalização é um elemento mediador importante para o desenvolvimento e interação social de crianças da Educação Infantil. Apesar do nosso estudo ainda estar em andamento foi possível observar durante as atividades realizadas, comportamentos infantis que atestam a compreensão e atribuição de significados a determinados termos e conceitos musicais.
Outro fator importante a considerar, é que segundo os autores da perspectiva Histórico-Cultural, a atividade principal do desenvolvimento infantil no período pré-escolar, onde se encontram os sujeitos da pesquisa, é o jogo ou a brincadeira. Como define Leontiev (1988, p. 122), em cada etapa da vida uma atividade se destaca como papel principal
O que é atividade principal? Designamos por esta expressão não apenas a atividade frequentemente encontrada em dado nível do desenvolvimento da criança. O brinquedo, por exemplo, não ocupa, de modo algum, a maior parte do tempo de uma criança. A criança pré-escolar não brinca mais do que três ou quatro horas por dia. Assim, a questão não é a quantidade de tempo que o processo ocupa. Chamamos de atividade principal aquela em conexão com a qual ocorrem as mais importantes mudanças no desenvolvimento psíquico da criança dentro do qual se desenvolvem processos psíquicos que preparam o caminho da transição da criança para um novo e mais elevado nível de desenvolvimento.
Leontiev, explica que a atividade que motiva mudanças mais importantes nos processos psíquicos e nos traços psicológicos da criança é o brincar. É pela brincadeira que ela apossa do mundo concreto dos objetos humanos, isto é, reproduz as ações realizadas pelos adultos com esses objetos. No entanto, elas não ocorrem de forma natural e espontânea, como se fosse inerente ao ser infantil. Esse processo carece de mediação, uma vez que a criança opera com os objetos utilizados pelos adultos, e, assim, toma consciência deles e das ações por eles realizadas.
Na atividade lúdica, a criança realiza ações que, efetivamente, não poderia realizar como dirigir um carro, por exemplo. No entanto, ao utilizar o “faz de conta”, imitando ações dos adultos, ela desempenha essa ação, criando uma zona de desenvolvimento proximal, se comportando além da conduta habitual de sua idade. Sobre isso, Vigotski (1991, p. 117) afirma: “[…] no brinquedo é como se ela fosse maior do que na realidade. Como no foco de uma lente de aumento, o brinquedo contém todas as tendências do desenvolvimento sob forma condensada, sendo, ele mesmo uma grande fonte de desenvolvimento.”
No que tange ao desenvolvimento musical, na construção de instrumentos e nos jogos imitativos pudemos perceber uma melhor interação, porque aprenderam a agir como um ser “social”, ao cooperar com seus iguais, a submeter e valorizar as regras sociais. As brincadeiras de rodas, canções, percussão corporal ou percussão instrumental, permitem a criança transformar-se em um instrumento vivo, com seu corpo e sua voz, permitindo-lhe a oportunidade de desenvolver diferentes funções psicológicas. Isto também foi percebido pela professora da sala, ao dizer que “notou uma mudança na parte afetiva e cognitiva, e que as crianças tornaram-se mais participativas e atentas as explicações dos conteúdos que são trabalhados em sala de aula”.
Nessa ótica, a música tem muito a contribuir com a sua expressividade por meio das manifestações/ produções sonoras, movimentos corporais e ritmos que utilizam os sentidos humanos, fazendo com que a criança adquira a leitura do ser individual e social, e assim transformar suas relações interpessoais.
Enfim, ao possibilitar o uso de instrumentos e signos, a musicalização caracteriza-se como uma forma de mediação bastante promissora na promoção do desenvolvimento cognitivo, cultural, social e afetivo dos alunos, permitindo-lhes a sua apropriação sem reservas, porque a música não deve ser um privilégio de alguns, mas de todo ser humano.
REFERÊNCIAS
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Publicado em 23/11/2010 11:44:00
Cleudet de Assis Scherer – Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Maringá.Professora do
Departamento de Pedagogia da Faculdade Estadual de Ciências e Letras de Campo
Mourão, (FECILCAM).
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