CONCEITO AMPLO DE SEXUALIDADE
Ana Cláudia Bortolozzi Maia
Conceito amplo de Sexualidade no processo de Educação Sexual
Resumo. Este texto discorre sobre o conceito de sexualidade a partir de uma compreensão social e histórica. A noção de sexualidade ampla que extrapola a genitalidade baseia-se em uma visão que compreende o corpo e a sexualidade como representações que são construídas pelos discursos sociais. Além disso, procura-se refletir sobre o processo de educação sexual que deve ser compreendido na sua dimensão ético-política garantindo a todos um espaço para formação de atitudes e não para o trabalho informativo sobre temas da sexualidade.
Palavras-chave: Sexualidade. Sexo. Educação Sexual.
Abstract. This paper discusses the concept of sexuality from a social and historical understanding. The broad concept of sexuality that goes beyond the genital is based on a vision that understands the body and the sexuality as representations that are constructed by social discourses. It also seeks to reflect on the process of sex education must be understood in its ethical-political dimension to assure everyone a space for formation of attitudes, not to work information on sexuality issues.
Keyword: Sexuality. Sex. Sex Education.
Introdução
A sexualidade humana é um fenômeno complexo que tem sido interesse de vários pesquisadores em diferentes abordagens teóricas. Parece predominante, atualmente, a noção de que o conceito de sexualidade contém, na sua raiz histórica e cultural, uma inegável amplitude, e extrapola a ideia predominante que o restringe ao sexo. É sobre essa questão teórica e sobre suas diversas implicações acadêmicas e práticas que me proponho a discorrer nesse texto.
1.Reflexões conceituais e históricas sobre sexo e sexualidade
Sexualidade e Sexo são fenômenos culturais na medida em que expressam as relações sociais e políticas que inevitavelmente medeiam o modo como as pessoas experienciam seus corpos, prazeres e desejos, incluindo o fato de que tais experiências são construídas em relação a determinadas idéias normativas (MOTTIER, 2008). Sexualidade não é um fenômeno exclusivamente biológico e não pode mais ser compreendida como um artefato apenas natural, pois,
os animais fazem sexo, a partir de um impulso instintivo e inato, para a reprodução. Nós humanos, entretanto, vivemos o sexo na nossa sexualidade e, portanto, ele é uma questão cultural. Isto é, na medida em que os homens vivem numa sociedade, a sexualidade tem representações, simbolismos; ela torna-se um fato cultural e histórico. As crenças e os valores relativos à sexualidade variam segundo a cultura e o momento histórico (MAIA, 2006, p.9).
Bozon (2004) argumenta que a sexualidade humana não é um ato natural, mas é construída socialmente pelo contexto cultural, afirmando que por isso a sexualidade implica na relação entre a subjetividade e a atividade corporal, mediadas pela cultura. Diz o autor, também, que:
(…) essa sexualidade extrai sua importância política daquilo que contribui, em retorno, para estruturar as relações culturais das quais depende, na medida em que ‘incorpora’ e representa. (…) A sexualidade é uma esfera especifica, mas não autônoma- do comportamento humano, que compreende atos, relacionamentos e significados. A sexualidade não se explica pela própria sexualidade, nem pela biologia. A sociologia da sexualidade é um trabalho infinito de contextualização social e cultural que visa estabelecer relações múltiplas, e por vezes, desconhecidas, dos fenômenos sexuais com outros processos sociais, o que se pode chamar de construção social da sexualidade (BOZON, 2004, p. 14; p.151).
O conceito de sexualidade é, portanto, um conceito abrangente, pois além da necessidade de considerar o modo como culturalmente se percebe e vive as práticas sexuais e suas representações, também é importante lembrar que ela se configura no indivíduo erotizado a partir de uma predisposição difusa e polimorfa que se amolda segundo as experiências individuais do sujeito, mediadas por valores, ideais e modelos culturais. Foi Sigmund Freud quem, primeiramente, inseriu a noção de sexualidade num contexto diferente de sexo, quando deu à palavra sexualidade o sentido, de pulsão, libido, inerente a todo ser humano, desde o seu nascimento, ainda que sua gratificação estivesse vinculada a zonas erógenas distintas ao longo do desenvolvimento: as fases oral, anal, fálica e a fase genital indicam as diferentes formas pelas quais a pulsão sexual se manifesta, culminando, na vida adulta, na reorganização do desenvolvimento psicossexual de acordo com as vicissitudes do desejo.
Para Freud, portanto, a sexualidade tinha como base uma força pulsional que orientava fundamentalmente a estruturação da personalidade, o que significa que não deveríamos mais confundir sexualidade com genitalidade, pois esta é somente uma das possibilidades da vida sexual de uma pessoa – na idade adulta; ou seja, para ele, a sexualidade se manifestava em todas as fases da vida humana, inclusive a genital (FREUD, 1974). A sexualidade envolve, então, a intencionalidade humana, a expressão e a vivência dinâmica dos afetos (NUNES, 1987), e um conjunto de representações simbólicas às quais o desejo se vincula. Embora Freud não tenha enfatizado o caráter histórico e social dessas representações, uma vez que sua preocupação fundamental era clínica, podemos concluir que ele contribuiu de forma clara para uma redefinição da sexualidade, ou seja, o conceito de sexualidade precisa ser compreendido, antes de tudo, de forma ampla, difusa e histórica; a sexualidade humana faz parte da expressão histórica da personalidade e é, essencialmente, cultural na medida em que sua expressão envolve a relação entre as pessoas num contexto social.
Ainda que muitos estudiosos posteriores a Freud tenham aceitado o conceito da sexualidade com a amplitude necessária para fazer justiça ao conceito, prevaleceu no senso comum uma leitura do conceito de sexualidade como sinônimo de sexo, restrito à noção de genitalidade e de práticas sexuais. Guimarães (1995) diferencia os conceitos de sexo e sexualidade afirmando que,
Sexo é relativo ao fato natural, hereditário, biológico, da diferença física entre o homem e a mulher e da atração de um pelo outro para a reprodução. No mundo moderno o significado dominante do termo passa a ser fazer sexo, referindo-se às relações físicas para o prazer sexual. No senso comum sexo é “relação sexual”, “orgasmo”, “órgãos genitais”, “pênis”. Sexualidade é um termo também do século XIX, que surgiu alargando o conceito de sexo pois incorpora a reflexão e o discurso sobre o sentido e a intencionalidade do sexo. É um substantivo abstrato que se refere ao “ser sexual”. Comumente é entendido como “vida”, “amor”, “relacionamento”, “sensualidade”, “erotismo”, “prazer” (GUIMARÃES, 1995, p.23-24).
A ideia de que a sexualidade contém representações sociais diversas pode ser evidenciada nas diferentes funções relacionadas às práticas sexuais ou ao sexo, ou seja, se nos perguntamos quais são as finalidades de tais práticas percebemos que elas sempre ocorrem mediadas por ideais, valores, regras, juízos etc. Basicamente, fazer sexo, há tempos, tem sido um comportamento compreendido como necessário para duas funções básicas: a de reprodução e a de prazer, embora com valores diferenciados e distintos para cada uma delas uma vez que o prazer, por exemplo, ora foi cultuado, relacionado à fertilidade e à riqueza ou condenado, como sujeira e pecado.
O sexo sempre foi relacionado principalmente a sua função reprodutiva, enquanto, na história da sexualidade ocidental, predomina a repressão sexual, evidenciada na modernidade, especialmente, a partir da época do vitorianismo na Inglaterra governada pela Rainha Vitória, um período histórico marcado pelo moralismo sexual (ARAÚJO, 1997; CABRAL, 1995; CUNHA, 1981; CHAUÍ, 1985; GREGENSEN, 1983; MOTTIER, 2008; NUNES, 1987; RIBEIRO, 1990). Ideias repressoras sobre o sexo-prazer existiam muito antes; elas ganharam força a partir da obra de três apóstolos importantes da Igreja Católica: São Paulo, Santo Agostinho e Santo Tomaz de Aquino (CUNHA, 1981; RIBEIRO, 1990). Muitas regras foram impostas para controlar o sexo, em geral, somente autorizado dentro de relações entre um homem e uma mulher, casados, para fins de reprodução, ou seja, as idéias religiosas relacionadas ao que hoje conhecemos como a igreja católica, sempre foram repressoras sobre as diversas manifestações da sexualidade. Além disso, segundo Ussel (1980), a organização social burguesa e novos hábitos de convivência social também controlaram o corpo e a consciência dos seres humanos, com regras de higiene e pudor relacionadas à sexualidade.
A concepção da sexualidade como uma função exclusiva da reprodução, respaldada em teorias moralistas, pautadas nos dogmas da religião e em algumas vertentes da ciência biológica, visavam defender o sexo exclusivamente para atender a necessidade de perpetuação da espécie. Depois, outras concepções mais abrangentes sobre sexualidade, incluíam comportamentos e valores que extrapolaram o âmbito instintivo da reprodução manifestando-se num contexto cultural de diferentes significados e sob influências sociais e históricas diversas. No entanto, o sexo como um comportamento cuja função seria a obtenção do prazer sexual permanece sob constante vigilância, embora exista um constante apelo midiático utilizando o sexo como meio para vender produtos vários, ou uma recomendação de sexólogos que indicam a prática como receita de uma vida saudável, o sexo ainda é algo que sofre discriminações e repúdios em muitas famílias e comunidades.
Desde a antigüidade o prazer relacionado ao sexo estava ligado a uma dicotomia de valores que identificava as pessoas (no caso, especificamente as mulheres) que gozavam do sexo com prazer como sendo desprovidas de virtude e, ao contrário, identificava como virtuosas as mulheres que se dispunham a uma relação sexual com seus “consagrados” maridos, pela razão nobre e maior de gerar um descendente. Esta dicotomia é explícita nos relatos bíblicos, na literatura, nas artes e, mais recentemente, na mídia, na música, nas telenovelas etc (CHAUÍ, 1985).
A dicotomia – esposa x amante; santa x prostituta; amor espiritual x amor carnal – embora camuflada pela cultura globalizada e pela repressão sexual moderna, existe até hoje de várias formas. Uma delas, por exemplo, na idéia das mulheres belas e boas para a sedução e conquista sexual em contraposição às mulheres não belas, mas santas para a salvação da família e do lar, em razão dos filhos (CHAUÍ, 1985; GOLDBERG, 1988). Aqui se anuncia a concepção normativa de sexualidade enraizada no binarismo normal versus anormal, que, em sua simplicidade dualista contribui para manter sob controle os comportamentos relacionados à sexualidade. Segundo Russo (2009, p.71) isso ocorreu mais intensamente com a psicologização e a medicalização da sexualidade, fruto da “autonomização da sexualidade em relação à procriação, com a conseqüente ênfase no prazer como objetivo primordial da atividade sexual”.
Além da função sexual de reprodução e de obtenção de prazer, uma terceira função do sexo seria a função social que, num mundo capitalista, englobaria tudo aquilo que se refere à promoção de renda econômica, ou seja, o sexo em boa medida está reduzido à condição de mercadoria, vinculado à venda de inúmeros produtos em um mercado de consumo, incluindo a venda do corpo/relação sexual, no caso da prostituição feminina e masculina, e a associação sexo/venda através de revistas, filmes, pornografia e propaganda em geral. Aprofundar esta discussão demandaria outro caminho a percorrer que, embora não menos importante, fugiria ao propósito central deste texto.
O termo sexualidade tem indicado comumente a noção estreita de sexo confinado à genitalidade. Mesmo que o sexo esteja necessariamente incluído na sexualidade, a sinonímia ou a relação entre esses dois termos como tendo um mesmo significado é comum nos discursos sociais. Um exemplo disso pode ser visto quando a escola opta por aulas ou palestras que discutem a sexualidade dos jovens adolescentes através, exclusivamente, de temas genitalizados da sexualidade humana, tais como as doenças sexualmente transmissíveis e/ou métodos anticoncepcionais, depois, é claro, do aparelho reprodutor (genitália masculina e feminina). A própria proposta dos parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997) que prevê a orientação sexual na escola limita-se à discussão de temas que exploram os aspectos biológicos e preventivos: corpo, diferenças sexuais e prevenção às doenças sexualmente transmissíveis/Aids (MAIA, 2004).
Evidentemente, sem desmerecer a importância destas questões que visam à saúde sexual da população, deve-se ressaltar que a sexualidade envolve questões que extrapolam o biológico e merecem uma reflexão sobre o contexto sociocultural em que os jovens estão inseridos. Esta prática reducionista, segundo a conhecida leitura crítica feita por Foucault (1988), está enraizada nos moldes de uma ciência eugenista e no início da Sexologia, que estudava o sexo para melhor controlá-lo e para combater seus males. Para o autor citado, tendo em vista as relações de poder (relações de dominação social), a preocupação central era a compreensão do conhecimento sobre o sexo pelas instituições sociais em relação ao momento histórico específico e à cultura na qual esses conhecimentos estavam embutidos.
Em nome da medicina e do controle da saúde, a sexualidade passou a ser classificada, nomeada e suas práticas sexuais controladas, pois muitas doenças sexualmente transmissíveis foram alvo dos discursos médicos reforçando o vínculo com o discurso religioso e moral (ALLEN, 2000; CHAUÍ, 1984; FOUCAULT, 1988; MOTTIER, 2008). Allen (2000) comenta que doenças como a sífilis e a Aids serviram às sociedades capitalistas emergentes como um meio de demonstrar a penalização diante de comportamentos sexuais considerados pecaminosos e imorais, como relações sexuais homoeróticas, promíscuas ou adúlteras.
Foucault (1988) propõe, então, que a sexualidade, incluindo aí o direcionamento pulsional do desejo, a representação do corpo, gênero, práticas sexuais diversas, é construída a partir do conjunto de instituições sociais, culturais, históricas e discursivas mediadas pelo dispositivo saber-poder. Para esse autor, o discurso sobre a sexualidade desencadeia uma relação de poder sobre ela, pois gera normas, controle e vigília daquilo em que determinada época se considera errado e anormal.
Há uma necessidade de reflexão sobre a história social da sexualidade humana, neste cenário atual em que há um discurso sobre a sexualidade aparentemente tão evidente e explícito, na medida em que somos agentes de educação sexual e sofremos sua influência, pois é impossível dissociar o biológico da sexualidade de sua dimensão psicossocial e de sua historicidade (FOUCAULT, 1988; NUNES, 1987; RIBEIRO, 1990).
A dificuldade em conceber a sexualidade como algo exclusivamente “natural” tem sido bem argumentada por seguidores dos chamados estudos culturais (LOURO, 2007; WEEKS, 2007; SCOTT, 1995). Para Louro (2007, p.11) “definimos o que é- ou não- natural; produzimos e transformamos a natureza e a biologia e, consequentemente, as tornamos históricas”. Ou seja, os corpos e a sexualidade ganham sentido porque existem nas sociedades e são por elas fabricados. Ainda segundo a autora, os discursos sociais são responsáveis por regular e normatizar os comportamentos sexuais em determinada época e contexto.
Compreendida a sexualidade como historicamente construída – ainda que respeitada a individualidade de quem a exerce – e, portanto, como sujeita a transformações sociais, deve ela ser entendida como um processo que é passível de ser reformulado, questionado em seus valores e padrões vigentes.
Ou seja, a sexualidade implica a expressão da personalidade histórica e social. É um dos elementos essenciais na constituição da pessoa, na medida em que faz parte da expressão de sua personalidade. Ao mesmo tempo, é construída de modo dinâmico porque passa por modificações através dos tempos. Cabral (1995) assegura que o mundo e as relações entre os seres humanos, se forem compreendidos numa dimensão histórica, processual e dinâmica, podem ser encarados como estando em constante transformação.
2. Sexualidade e Educação Sexual
É a partir de uma reflexão ampla e crítica que o estudo da sexualidade humana deveria estar respaldado. Ou seja, a sexualidade, enquanto uma questão ampla e social, que existe em todo ser humano, não pode ser entendida, interpretada, refletida ou estudada sem considerar as suas múltiplas determinações e suas várias manifestações. O que dará sentido à sexualidade humana serão as normas sociais e culturais, que não podem ser entendidas sem o recurso a uma perspectiva histórica. Esta sexualidade, tal qual a conhecemos, reproduzimos ou reformulamos manifesta-se nos discursos e no que chamamos de processo de educação sexual que, por ser social, segue regras e normas, incluindo os mecanismos de repressão sexual que visam manter a “ordem natural das coisas”, o status quo.
Werebe (1998) define a educação sexual como um processo que engloba um conjunto de ações intencionais e não-intencionais desenvolvidas na família, na escola e em outras agências e instituições sociais. Segundo a autora,
A educação sexual compreende todas as ações, deliberadas ou não, que se exercem sobre um indivíduo, desde o seu nascimento, com repercussão direta ou indireta sobre suas atitudes, comportamentos, opiniões, valores ligados à sexualidade. A educação sexual, num sentido amplo, processo global, não intencional, sempre existiu, em todas as civilizações, no decurso da história da humanidade, de maneira consciente ou não, com objetivos claros ou não, assumindo características variadas, segundo a época e as culturas (WEREBE, 1998, p.139).
Indiscutivelmente somos todos ao mesmo tempo sujeitos e agentes da educação sexual (FIGUEIRÓ, 2006; WEREBE, 1998) e, na escola e na família, essa educação ocorrerá em várias mediações: por meio de informações, explicitas ou não, de regras e valores de conduta e moral, pelo contato com meios de comunicação de massas e pela imitação de modelos de conduta, pelas experiências pessoais relacionadas aos desejos e a sua frustração ou satisfação etc. É preciso sempre considerar essa diversidade de meios pelos quais a educação sexual ocorre independentemente de serem favoráveis ou não ao pleno desenvolvimento dos educandos (filhos ou alunos).
Além da Educação Sexual familiar e escolar há também, obviamente, uma educação sexual que acontece esporadicamente (e, muitas vezes, desvencilhada do contexto cultural dos educandos) em propostas de Orientação em Sexualidade, como as palestras, cursos, discursos políticos, religiosos, médicos e também na ideologia capitalista de consumo (sexo como mercadoria). Ultimamente, a educação sexual ocorre explicitamente nos meios de comunicação de massas como a televisão, a internet etc. O que diferencia e qualifica a informação veiculada no meio social, independentemente de qual fonte advém, é a sua recepção pelo indivíduo, que pode fazer dessa informação parte integrante de suas concepções sobre a sexualidade, de um modo que o direcione para mudanças de atitudes com relação a sua sexualidade e à sexualidade de outros.
Nesse sentido as propostas de orientação sexual, embora priorizem a informação, não podem desmerecer a reflexão e o respeito ao contexto dos educandos, do educador e da sociedade em que eles estão inseridos. Não se ensina sobre sexualidade sem considerar sua contextualização e sem crítica aos padrões sociais impostos pela cultura. Qualquer intervenção educativa voltada às questões da sexualidade, deveria buscar o oferecimento de condições e meios para que o educando cresça interiormente (VITIELLO, 1995) e seja capaz de tornar-se um cidadão, capaz de escolher e viver sua sexualidade da melhor maneira possível respeitando o sentido de coletividade.
Em relação à prevenção da AIDS e de outras doenças sexualmente transmissíveis, por exemplo, sabe-se que a maioria dos jovens tem informação sobre a necessidade do uso de preservativo, porém há uma longa distância entre o saber, a necessidade de seu uso e a atitude real de usá-lo numa relação sexual (eventual ou com parceiro fixo). Isto porque existem várias contingências ambientais envolvidas na história de educação sexual deste sujeito que vão influenciar a ação de prevenir-se (usando o preservativo) e a representação da camisinha, do sexo e da negociação de seu uso com um(a) parceiro(a) (MARINHO, 2000; RIBEIRO, 1998; ROSENTHAL, 1993; SCHUCH, 1998; SEFFNER, 1998).
A mudança de atitude, entendida aqui como a disposição de uma pessoa para agir de forma favorável ou não em relação a uma situação particular, é formada segundo Cavalcanti (1993) através de três componentes básicos: o cognitivo (pensar), o afetivo (sentir) e o conativo (agir). Em palavras simples, aquilo que o indivíduo pensa e o modo como age parecem depender de suas vivências e de sua aprendizagem no meio social, ou seja, o pensamento, o sentimento e a ação relativos a sua sexualidade são comportamentos interrelacionados. Além disso, devem ser considerados na realidade social e econômica em que ocorrem. Cavalcanti (1993) exemplifica:
se uma adolescente teve com o uso de um contraceptivo uma experiência ruim ou se ouviu relatos de efeitos desagradáveis vivenciados por pessoas que lhe são significativas, este conhecimento e esta vivência terão um sentido particular para ela. É, portanto com base na experiência e na vivência que a adolescente começa a estruturar seu pensamento acerca do contraceptivo (p.167).
Um estudo realizado por Figueiró (1996) analisa o estado da arte no Brasil sobre a educação sexual e descreve que as publicações científicas a partir da década de 80 apresentam diferentes abordagens para discutir sobre temas da sexualidade. As diferentes concepções filosóficas, pedagógicas e metodológicas demonstram, na verdade, as diversas posturas adotadas entre os teóricos e pesquisadores ao encarar a Educação Sexual. Elas foram agrupadas pela autora em três tipos de abordagens: religiosa, pedagógica e política. Em suas conclusões, Figueiró (1996) aponta que um grande contingente de pesquisadores e/ou educadores considera adequada a realização da Educação Sexual por meio de cursos, aulas (inseridas ou não no currículo escolar) ou ainda de palestras, ou seja, atrelada a um conjunto de práticas informativas que fica muito aquém da idéia de formação a longo prazo, pois essa precisa “ser sistematizada e ter sua continuidade assegurada” (p.172). Nas palavras da autora:
Neste Estado da Arte, a visão que se tem, na maioria das publicações, é que se pensa em dar Educação Sexual, esquecendo-se de que é preciso criar condições para a formação da autonomia moral e intelectual do educando, isto é, levá-lo a aprender a pensar por si próprio, a adotar com segurança um posicionamento pessoal em relação a valores morais, bem como a tomar decisões (FIGUEIRÓ, 1996, p.173).
O espaço da dimensão política da educação sexual, por exemplo, é defendido por Goldberg (1988). A luta por uma educação sexual ideal, ou ao menos não tão desigual, implica, segundo essa autora, em movimentos sociais contra o autoritarismo sexual (desigualdade, violência e preconceito sexual), a favor da liberdade sexual pessoal, social e histórica (eliminando a culpa pessoal e a opressão social). Os obstáculos nesta luta estão no que a autora chamou de Educação Sexual Reflexa, Informativa e Difusa. De maneira geral, a Educação Sexual Reflexa (reprodutivista) acaba sendo conservadora, imóvel e pessimista na medida em que identifica as lacunas, mas não crê em sua transformação. A Educação Sexual Informativa está embasada nos dogmas do cientificismo, priorizando técnicas que não garantem o espaço de reflexão e crítica para um possível aprendizado que alcance mudanças significativas no plano social. Há uma ênfase na informação detalhista em detrimento da reflexão sobre essa informação na vida da pessoa.
A educação Difusa, por sua vez, mostra que a educação sexual extrapola os muros da escola, mas isso acaba justificando o silêncio e a omissão, práticas predominantes neste contexto. O discurso para o “não–sexo” na escola é moralista, liberal e burocrático, baseado no mito da neutralidade, supondo que não se falar de sexo formalmente, o que seria decorrente de limites operacionais, é não se envolver no problema, mas é justamente assim que a escola contribui para manter a situação tal qual ela está – a reprodução de uma realidade repressiva (GOLDBERG, 1988).
No Brasil, há um incentivo do governo federal para incluir o tema da sexualidade na escola, reconhecendo-a como um tema acadêmico proposto nos chamados Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN)- volume Orientação Sexual (BRASIL, 1997). Por um lado a escola é apontada como um espaço fundamental para se implantar a orientação sexual, mas de outro ela é acusada de se omitir sobre este papel, muitas vezes ignorando a ocorrência de situações envolvendo questões sexuais em seu cotidiano ou tratando desses casos com atitudes preconceituosas. Na prática, muitos professores não assumem a educação/orientação sexual de seus alunos porque a escola não tem estrutura para lidar com isso e, principalmente, porque eles não se sentem preparados para esta tarefa (FIGUEIRÓ, 2006; NUNES, 1987; RIBEIRO, 1990).
Reitere-se, nesse contexto, que atualmente, mesmo havendo um espaço aparentemente mais aberto às palestras de profissionais visando à prevenção do contágio de doenças sexualmente transmissíveis ou da gravidez indesejada, a escola ainda prioriza uma visão que culmina na genitalização da sexualidade e uma opção por ações preventivas baseadas, em geral, em dogmas médicos relacionados à saúde pública. As escassas tentativas de trabalho nesta área, especialmente nas escolas públicas, ainda priorizam técnicas e informações ao invés da discussão e da reflexão em grupo, ou ainda evidenciam uma falsa e hipócrita neutralidade quando se omitem do assunto. Além disso, contam com educadores pouco preparados e formados para atuarem na orientação em sexualidade (FIGUEIRÓ, 2006; MAIA, 2004). Já afirmamos que:
Para a realização da orientação sexual em qualquer instituição, é essencial a ação de um profissional preparado teórica e tecnicamente, o que implica em investimentos oficiais na formação de orientadores/educadores sexuais reflexivos, críticos e com conhecimento interdisciplinar dos temas pertinentes à sua atuação. No caso da escola brasileira, além de profissionais especialmente capacitados como orientadores sexuais, é também preciso que o professor, seja ele de qualquer disciplina, também seja formado nesta área, porque mesmo que ele não tenha intenção de trabalhar a sexualidade em sua disciplina específica, está previsto nos Parâmetros Curriculares Nacionais a inclusão da orientação sexual como um dos temas transversais que “atravessa” as disciplinas curriculares. No entanto, mesmo que a literatura na área aponte estas necessidades, é visível que os cursos de formação em Magistério e em Pedagogia desconsideram ou minimizam o tema da sexualidade e da educação sexual em seu currículo formador (MAIA; HEREDERO; RIBEIRO, 2009, Cd ROM, sem p.)
Altemann (2003) relata em seu estudo sobre a sexualidade na escola, que as iniciativas de orientação nessa área têm reproduzido a medicalização da sexualidade, trabalhada em seu sentido biológico, orgânico e profilático.
A educação de hoje certamente não é a mesma da do século XIX, mas como há rupturas e mudanças, há também realocação de problemas. Conforme demonstrado, encontramos nesta pesquisa fortes influências do discurso médico no modo de a escola desenvolver trabalhos de orientação sexual. Destacado como um espaço de exercício de tecnologias de governo, o sistema educacional é chamado a intervir no comportamento sexual dos/as adolescentes através de dois temas mobilizadores: a AIDS – e outras DST’s – e a gravidez na adolescência. A orientação sexual vem sendo desenvolvida na escola dentro da disciplina que está mais próxima do discurso médico –Ciências –, que na 7a série tem como tema o Corpo Humano (ALTMANN, 2003, p.306).
Vitiello (1995) almeja uma educação sexual que favoreça a socialização e diz que a ela deveria ajudar o indivíduo a viver em determinada sociedade, mas também permitir que ele lute pelas mudanças culturais necessárias, aumentando sua capacidade crítica, para que ele seja capaz de, quando preciso, abandonar padrões e recriar a sociedade. Por isso ele precisa ser esclarecido e dotado de informações, mas também é necessário que elas sejam fornecidas de modo que se possa compreendê-las no seu sentido histórico, a partir de reflexões, debates grupais e apreensão de conteúdos, utilizando técnicas adequadas ao nível de desenvolvimento e às características das pessoas envolvidas.
A Declaração Internacional dos Direitos da Infância e da Juventude deixa explícito que todo ser humano tem direito ao respeito à totalidade do seu corpo, a receber uma educação na família e fora dela, adaptada aos diferentes níveis de desenvolvimento psicossexual, a ter a sexualidade reconhecida como parte integrante de todos os aspectos de sua vida (saúde física e mental, relações interpessoais, vida familiar e de trabalho, por exemplo), assim como o direito à igualdade entre os sexos e, também podemos incluir, o direito a uma sexualidade vivenciada de forma que lhe dê prazer e contribua para uma vida social satisfatória (GOLDBERG, 1988).
Considerações Finais
Após essas constatações algumas reflexões são necessárias:
Por que temos que lutar para garantir os direitos e a igualdade com relação à nossa vida sexual? Por que o pensamento de que a sexualidade se refere apenas às práticas sexuais, como se elas não sofressem influência social, nos restringe a viver sob regras e normas rígidas? Por que essa visão estreita da sexualidade nos coloca sob a dimensão do normal e do não-normal? Talvez porque vivemos numa cultura, numa dada sociedade, que tem expectativas de papéis sociais determinados e que, portanto, prevê comportamentos, valores e sentimentos dentro de certos padrões definidores de normalidade, como já discuti em outra ocasião (MAIA, 2008) e esses padrões regem o que devemos ou podemos aprender, também sobre nossa sexualidade.
Assim, devemos entender que saúde sexual implica em assumir as responsabilidades pelas próprias atitudes em relação à própria vida sexual e à do outro; o desenvolvimento de atitudes reflexivas, conscientes, distantes daquelas que reproduzem os padrões ora vigentes e que espelham uma repressão que se torna um mecanismo de controle social, estabelecido e mantido pela própria sociedade ao longo da história humana, depende de ações educativas que sejam, essencialmente, reflexivas, e que visem ao desenvolvimento de uma consciência verdadeira sobre o vasto campo de problemas sociais, históricos e pessoais envolvidos no exercício da sexualidade.
Entender a sexualidade como um conceito amplo é um pressuposto essencial para ações educativas eficazes, uma vez que é necessário pretender abarcar no processo reflexivo as mediações sociais, históricas e individuais presentes na educação sexual, se queremos contribuir para a emancipação dos educandos também nesse campo.
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Publicado em 28/10/2010 17:17:00
Ana Cláudia Bortolozzi Maia – Psicóloga; Mestre em Educação Especial (UFSCar) e Doutora em Educação (UNESP/Marília)
Instituição de Origem: Departamento de Psicologia/ Faculdade de Ciências/ UNESP/Bauru
Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento e da Aprendizagem/UNESP/Bauru
bortolozzimaia@uol.com.br
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