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A CRIANÇA: UMA AUTORA DE TEXTOS EM FORMAÇÃO

Mônica de Souza Serafim e Rose Maria Leite de Oliveira

Resumo: Este trabalho tem por objetivo analisar a reescrita como estratégias de autoria. A fundamentação teórica deste trabalho está baseada, principalmente, nas contribuições de Ginzburg (1989), Bakhtin (1992, 1997), Abaurre, (1992), Geraldi (1992, 2003), Possenti (2002), Oliveira (2004) e Lagazzi-Rodrigues (2006). Para que possamos analisar como a reescrita configura-se como uma estratégia de autoria nas produções escritas das crianças, utilizamos um corpus que consiste na reescrita da história Chapeuzinho Vermelho feita por crianças de uma escola particular de Fortaleza-CE. Analisados qualitativamente, os dados demonstraram que, ao reescreverem textos narrativos, as crianças atem-se mais às marcas metalinguísticas. Os resultados levam-nos à conclusão de que o uso dessa estratégia, como marca de autoria, indica reflexões linguísticas do autor sobre o texto.

Palavras-chave: autoria, narrativas infantis, reescrita.

Abstract: This study aims to analyze the rewriting strategies of authorship. The theoretical foundation of this work is based mainly on the contributions of Ginzburg (1989), Bakhtin (1992, 1997), Abaurre, (1992), Geraldi (1992, 2003), Possenti (2002), Oliveira (2004) and Lagazzi-Rodrigues (2006). For we can analyze how the rewriting is configured as a strategy of authorship in the written productions of children, we used a corpus which consists of rewriting the story Little Red Riding Hood made by children in a private school in Fortaleza-CE. Analyzed qualitatively, the data showed that the rewrite narrative texts children are attached more brands metalinguistic. The results lead us to the conclusion that the use of this strategy, as a mark of authorship, indicates the author’s language reflections on the text.

Keywords: authorship, children’s stories, rewrite.

1. Introdução
Desde cedo a criança convive com outras pessoas e é dessas relações que surge a linguagem; é por meio de sua interação com o outro que modela aspectos semânticos, sintáticos e pragmáticos da língua – um dos instrumentos com os quais se comunica com o mundo ao seu  redor, entendendo e respondendo mensagens de forma apropriada. Assim sendo, compreende-se que o entendimento e as habilidades linguísticas da criança refletem as experiências partilhadas com a própria língua e com o outro; é utilizando-se da língua que ela revela suas necessidades e desejos e expressa suas ideias e sentimentos. 

A aquisição de uma língua implica, consequentemente, o domínio de diferentes aspectos de um sistema multifacetado: fonologia, morfologia, sintaxe, semântica e pragmática. Esses componentes, por fazerem parte de um todo, interpenetram-se, ocorrendo, portanto, influências mútuas, embora cada um possua identidade própria e funcionamento independente. Isto é, mesmo que um termo da língua tenha existência própria e possa ser analisado de forma desvinculada do conjunto em que aparece, muitas vezes seus significados não podem ser bem delineados, pois, por se encontrar inserido em um determinado contexto, possui relações com os outros termos. Em geral, o modo como é empregado traduz uma função comunicativa.
Considerando que a criança, em fase de aprendizagem da linguagem, está constantemente exposta a situações de uso da língua, temos de reconhecer que, à medida que ela se desenvolve, expande seu repertório, acrescentando novas palavras, criando novos efeitos de sentido. À proporção que usa continuamente a língua em diversas situações e com diferentes finalidades, vai elaborando, testando e refinando hipóteses sobre o funcionamento da língua, assumindo, assim, um papel ativo enquanto constrói sua linguagem.

Ao produzir seus textos, representando acontecimentos reais ou fictícios, é provável que o autor-aprendiz inicialmente tateie, experimentando muitos elementos, que lhe permitirão construir bem seus textos. É certo que, à medida que a criança avança em seus conhecimentos, a qualidade na organização da sua produção passa a ser percebida. Daí acreditarmos na importância de estudos que analisem a evolução no emprego de elementos da língua, o que nos fez optar por um estudo longitudinal. Neste estudo, os dados da escrita inicial das crianças constituem-se como ponto de partida para se delinear o percurso geral de aquisição de uma língua.
Reconhecemos também que um estudo longitudinal, como esse que nos propomos a fazer, apresenta exigências tanto para a criança como para o pesquisador. Deste, requer sorte para que não ocorra abandono por parte delas e daquele, paciência e tolerância, uma vez que deverá participar da experiência várias vezes.
Entretanto, do ponto de vista científico, um estudo desse tipo apresenta algumas vantagens, como: permitir a visualização de diferenças individuais na aquisição da língua escrita, identificar comportamentos semelhantes entre as crianças, constatar a linearidade no desenvolvimento ou mesmo, se for o caso, a ocorrência de regressões.
Sabendo que, ao produzir um texto a criança faz escolhas léxicas para compor enunciados, por meio dos quais produzirá efeitos que revelarão propósitos comunicativos, interessa-nos investigar como ela caminha no processo de aquisição das estruturas linguísticas, isto é, interessa-nos observar, por exemplo, que elementos linguísticos utiliza para manifestar a autoria em suas produções escritas e quais os efeitos de sentido causados pela escolha desses elementos.

2. Algumas palavras sobre a autoria
A noção de autor está bastante vinculada à de autoria. De modo geral, a noção de autor refere-se à instância institucional ou humana a quem se atribui a responsabilidade por um texto. Já autoria diz respeito às estratégias utilizadas por um sujeito para manifestar seu ponto de vista enquanto produtor de texto. Assim, a noção de autoria pode ser considerada como uma intenção produzida socioculturalmente por meio dos gêneros textuais.
A autoria, segundo Foucault (1970), não coincide com o sujeito real, pois o autor é somente uma das funções do sujeito. Assim, o nome do autor não aponta para um indivíduo, mas, sim, à função do sujeito a qual se atribui a propriedade de um conjunto de textos.  Desse modo, a autoria significa também entender quais estratégias podem ser utilizadas para a construção de um texto. Nesta acepção, a autoria abarca uma heterogeneidade e uma unidade: para o autor é importante saber mobilizar as diversas posições enunciativas que, combinadas com o texto, produzem um efeito de unidade do autor, utilizada pelo leitor como uma ferramenta para a compreensão do texto.
Foucault (1970; p. 46) acredita ainda que a função-autor não está presente em todos os textos, como por exemplo, um texto anônimo ou um contrato, pois, esta função se realiza por meio de certas condições que dão suporte à “existência, circulação e recepção dos discursos no interior de uma sociedade”.
Tal fato nos leva a pensarmos sobre a produção textual na escola e sua relação com os modelos aludidos, na medida em que esta se volta para a imitação ou originalidade. Considerar os textos escolares imitações, supõe uma primazia dos modelos que obedecem a padrões linguísticos e formais. Considerá-los originais, implica a supremacia de um produto conteúdo por um sujeito original e criativo.
Desse modo, nosso olhar nas produções escolares não se dirigirá para a imitação, nem para a originalidade no sentido platônico, ou seja, como uma possessão criativa, uma paixão do sujeito dono de sua palavra e de seu sentido. Interessa-nos, portanto, a noção de singularidade pelo fato de entendermos a escrita escolar como espaço de ação e intervenção do sujeito, assim, um campo propício para observarmos a construção da autoria. Desse modo, o sujeito autor não é nem imitador nem original, é singular, pois, segundo Foucault (1994; p. 37), como “o sujeito está sempre em construção, sua relação com a linguagem é singular e exige um grau de intimidade com o próprio processo de constituição”.
Segundo Scholze (2007; p. 124), (2007; p. 124) há diferenças entre os textos produzidos dentro e fora da escola, e, como há diferenças entre as condições de produção nas quais os textos foram realizados, há também diferentes singularidades. A principal diferença é que a produção de textos no espaço escolar é mais controlada, previsível, pois a instituição escolar é mais cautelosa em relação a eventuais mudanças. Assim, os textos que circulam na escola assumem um caráter uniformizante, “que nos quer iguais a todos, uma vez que são veiculados nos meios de comunicação que atingem a maioria da população, ainda que as audiências sejam diferenciadas. O singular de cada um acaba sendo um projeto uniformizante de linguagem.
A pluralidade na produção de textos, segundo Baptista (2005), nos ajuda a pensar a autoria como uma instância heterogênea que evidencia como os sujeitos se singularizam nas diferentes posições que assumem, em nosso caso na posição de alunos, já que se trata de textos produzidos no ambiente escolar.  
Eco (1979, 1992) acredita que a autoria se funda quando o autor procura conduzir o processo de construção dos sentidos por parte dos interlocutores. Ou seja, quando o autor se imagina como um leitor, ele acaba marcando sua presença no texto. Isto porque o leitor faz este mesmo percurso: ao ler um texto supõe, a partir do texto e da situação comunicativa, que o autor teve alguma intenção comunicativa ao escrever este texto.      
No entanto, apesar de o autor querer transmitir alguma intenção em suas produções escritas, ele não é de todo original. Para Bronckart (1999), a impossibilidade de ser original ocorre porque ele está marcado pelas histórias de leitura e pelo mundo social que o cercam.  
Segundo Possenti (2002), a autoria pode ser percebida por meio das vozes que o autor cede aos outros e da distância que estabelece entre eles, autor e os outros, leitores/interlocutores.  
Apesar de termos apresentado todas essas definições de autoria, considerá-la-emos como sendo de caráter interacional de modo que estão envolvidos nela o produtor do texto, o leitor e o próprio texto. No entanto, para nós, este caráter interacional reveste-se de um viés individual, portanto, interessa-nos como trabalha o autor no interior do texto, uma vez que este trabalho advém de diversas escolhas individuais, o que indica a presença de um autor para o leitor.
Segundo Calkins (1989), a autoria ainda não seria apenas um produto de criação, mas também um processo que ajuda as crianças, em fase de aprendizagem da língua escrita, a encontrar novas camadas de significado no trabalho escrito como autoras. 
Baseando-nos em tudo o que foi dito, assumiremos que o autor é aquele responsável pela produção da linguagem, mas que está submetido a forças externas, como as sociais e internas, como as psicológicas, e que a autoria é um conjunto de estratégias que o autor utiliza para mostrar-se como responsável pelo ato de dizer.
Neste trabalho a autoria será estudada em reescritas infantis. Neste caso temos a produção de um texto “novo” a partir de um “velho”. Carreira (2000) acredita que nestes tipos de atividade escrita há autoria e justifica isso se baseando na análise do discurso (o acontecimento trabalha a estrutura) e na psicanálise (a marca da singularidade do discurso advém do atrelamento entre os significantes primordiais de um dado sujeito com o pré-construído da história).  Isto é, como cada sujeito é resultado de uma combinação particular dos seus significantes com o pré-construído da história, não é possível existirem dois sujeitos iguais.
Assim, a este ponto de vista, será acrescido também aquele no qual observamos a autoria nos casos em que, mesmo circunscrito sócio-historicamente, o sujeito marca a sua intenção singular no texto, pois estamos buscando justamente os indícios do trabalho textual do sujeito em criar textos.   

Neste trabalho concebemos a autoria como um trabalho produtivo de nossa relação de sujeitos com a linguagem. Nessa concepção, segundo Lagazzi-Rodrigues (2006), a autoria não é ensinada, mas praticada.
Aventadas algumas reflexões sobre a autoria, procuraremos, a seguir, estabelecer um elo entre autoria e a produção de textos na escola.  

2.1. Autoria e produção escrita no contexto escolar: algumas reflexões
Bakhtin (1997), refletindo sobre a interação verbal, destaca a importância do papel do “outro” nestas relações. Para ele, a língua (oral ou escrita) como fato social, supõe, para qualquer enunciado, um direcionamento, isto é, a necessidade de orientar-se sempre para um outro. Sem este outro, um enunciado não pode existir, pois não há diálogo entre elementos abstratos da linguagem, quer dizer, entre sentenças, mas somente entre pessoas, conforme ressaltam Jobim e Souza (1994).
Deste modo, a avaliação de um autor sobre seu texto escrito leva em consideração o outro, que molda o seu discurso, determina a escolha das unidades lexicais e gramaticais e também a escolha das unidades de comunicação, como o estilo e o gênero textual. O outro é, portanto, um definidor da configuração textual.   
O texto escrito, nesse liame, constitui uma forma de relação dialógica que é representada não apenas pelas relações linguísticas e cognitivas, mas, sobretudo, pelas sociais. Ele exige a compreensão como resposta, sendo que esta compreensão configura a dimensão dialógica da ação, pois é parte integrante de todo o processo da escrita, que tem no outro(s) um suporte. A esse respeito, Araújo (2001, p.109) faz uma breve reflexão:

O sentido de um texto não se firma de maneira estável e definitiva na literalidade do tecido textual. Ele é construído pelo leitor, que processa o texto a partir dos elementos que o autor arranja e re-arranja na sua escrita em busca de uma textualidade. Melhor dizendo, é na interação entre autor e o leitor, mediados pelo texto, que se produz o sentido, considerando-se não apenas variáveis lingüísticas, mas também variáveis contextuais. Porque os enunciados são sempre orientados para um interlocutor, mesmo ausente, o leitor é voz presente no texto, ele está de alguma forma, desde já previsto e considerado, desde a tessitura da escrita. Ora, para que esse malabarismo dialógico se elabore, eu preciso, ao escrever, tomar um distanciamento do meu próprio dizer, colocando-me como leitor(a) de um mesmo(a), do meu próprio texto, dos fragmentos de meu dizer em curso.

A produção de textos no ambiente escolar mostra um destinatário, um outro exclusivo para as crianças: o professor, que tem objetivos bem definidos em relação à produção escrita: ensinar, corrigir e avaliar.
Segundo Geraldi (1991), as “redações” dos alunos, não suas “produções” textuais, têm sempre como leitor a função-professor, não o sujeito professor.
Cardoso (2007, p. 44) amplia o pensamento de Geraldi (op. cit.) e nos diz que o texto produzido no ambiente escolar resume-se, essencialmente, ao “exercício de aplicação de conhecimentos gramaticais e estéticos, isso porque a função principal de seu leitor é ensinar e o aluno-autor deve mostrar que aprendeu”.
Acrescentamos ainda que a produção dos textos escolares visa à homogeneização e procura construir no aluno a ideia de que escrever um texto é uma tarefa escolar obrigatória e vigiada, que privilegia o modelo em detrimento a criatividade, para que se possa atender às expectativas do professor. A este quadro modular de práticas de escrita na escola Coracini (1999) denominou “roteirização”.
Uma outra observação sobre a produção textual escolar mostra-nos ainda que o exercício da escrita é visto como se não evolvesse sujeitos ativos, como se fosse necessário para produzir um texto apenas os elementos estruturais da língua, o que reduz a dimensão linguística da produção textual  à esfera cognitiva.
No entanto, os estudos sobre a produção escrita de crianças nos mostram que desde muito cedo a criança tem consciência do texto enquanto unidade formal-conceptual, espaço funcional e social de comunicação (KATO, 1998). Escrever para a criança significa estabelecer elos sociais para se expressar e para se comunicar com pessoas importantes para ela. A escrita é, assim, arena de eventos dialógicos, materializados através das palavras, que a permitem ampliar e elaborar seu mundo de significações. Nesse sentido, partilhamos da ideia de que escrever demanda, além do suporte dos sistemas cognitivos e linguísticos, a compreensão da linguagem como forma de interação social e como um produto de um trabalho coletivo, singular e histórico, conforme defendem Vygotsky (1998) e Bakhtin (1992, 1997). Quando escreve seu texto, a criança está imersa nessa interação, coletividade, singularidade e história, percebendo que a escrita não é um evento isolado e descontextualizado.
Acreditamos que o foco não deve ser único e exclusivamente os elementos estritamente linguísticos, mas sim devemos acrescentar a eles as diferentes possibilidades de dizer, já que estas estão associadas ao funcionamento de diferentes estratégias de autoria.
Escrever um texto, portanto, é um processo essencialmente paradoxal, pois, segundo Bakhtin (1997), a língua é um sistema simultaneamente aberto e fechado, isto é, gramatical e lexicalmente sedimentado, mas indeterminado e, por isso mesmo, essencialmente criativo, pois, conforme Geraldi (2003):

A linguagem, enquanto atividade, implica que até mesmo as línguas (no sentido sociolinguístico do termo) não estão de antemão prontas, dadas como um sistema de que o sujeito se apropria para usá-las segundo suas necessidades. Sua indeterminação resulta apenas de sua dependência dos diferentes contextos de produção e recepção. Enquanto instrumentos próprios, construídos nesse processo contínuo de interlocução com o outro, carregam consigo as precariedades do singular, do irrepetível, do insolúvel, mostrando sua vocação estrutural para a mudança.    

Teberosky (1995) atribui à escritura de textos uma tarefa única e que passa por três etapas: a inventio (geração de ideias), a compositio (operação em que as ideias são colocadas em palavras) e a scriptio (o escrever propriamente dito). As duas primeiras etapas dependem das experiências vividas dentro e fora da escola e a última relaciona-se com a aprendizagem formal do sistema.
Tal fato nos mostra que escrever engloba conhecimentos específicos sobre a língua escrita, mas também competências para lidar com o tratamento das informações, de forma que o outro possa compreender. De todo modo, a escrita pressupõe e estimula a relação do sujeito-autor com o mundo. 
Rojo (2003), enfocando a dinâmica da produção textual, acredita que os pólos de negociação interna do autor coexistem em relação articulada, dinâmica e dialética, o que valoriza na produção escrita as possibilidades de dizer e é a partir dessas possibilidades que os significados se constroem rumo a uma produção singular.  
Traçadas algumas questões sobre a produção textual na escola e a autoria, a seguir, discorreremos sobre a reescrita de histórias pela criança.
2.2. A reescrita de histórias pela criança: considerações no processo de aquisição da escrita
Reescrever uma história exige uma atitude diferente de produzi-la. Enquanto escrevê-la significa gerar ideias e transformá-las em um texto, reescrevê-la consiste em contar uma história já produzida com tramas, cenários e personagens já conhecidos e definidos. Isto exige do escritor uma atenção maior, pois ele tem que estar atento a uma estrutura já existente, obedecer à sequência dos fatos e ser coerente com as informações.

A reescrita, conforme Van Dijk e Kinsh (1977), não é mera reprodução. Ela é uma atividade essencialmente construtiva, baseada na racionalização de diferentes tipos de textos e de conhecimento, interesses e atitudes emocionais do sujeito em relação ao conteúdo da história, além de ser determinada cognitiva e socialmente, pois ao reescrevemos uma história acrescentamos a ela novas informações, o que mostra uma reorganização na memória do esquema básico da narrativa.       
Segundo Morrow (1989), a reescrita consiste em uma recordação posterior à leitura ou à audição de uma história, na qual os leitores ou ouvintes recordam a matéria narrada de modo oral ou escrito.
Durante esta atividade, a interação dá-se de forma interpsicológica, pois adultos e crianças (e mesmo entre elas) reconstroem juntos o significado daquilo que está sendo narrado, e de forma intrapsicológica:, já que as crianças adquirem a capacidade de realizar a tarefa de reescrita independentemente.   
A tarefa de reescrita de uma narrativa, conforme Morrow (1989), favorece a assimilação e a reconstrução de informações textuais, e, embora as crianças tenham dificuldade para realizar essa tarefa, ao mesmo tempo elas são beneficiadas quando seus primeiros contatos com histórias são intermediados por adultos e, ainda, a prática de reproduzir histórias melhora não apenas a qualidade das reproduções como também a naturalidade com que os alunos encaram essa tarefa. O autor emprega o termo re-narración, utilizado por nós como reprodução.
Essas reescritas correspondem às recordações posteriores à leitura ou à escuta da história nas quais os leitores ou ouvintes dizem o que lembram de forma oral ou escrita, exigindo que estes integrem as informações, relacionando as partes do conto e as personalize ao relacioná-las à sua experiência. Essa atividade ainda permite medir o produto e o processo de compreensão de um conto; diagnosticar a capacidade de lembrança literal de uma criança, revelando, assim, o sentido da estrutura do conto que a criança possui, a capacidade de inferir, organizar, integrar e classificar informações que estão implícitas no conto e também sua capacidade em generalizar, interpretar e relacionar sentimentos ou ideias com suas próprias experiências.
Morrow (1989) concluiu que a reescrita de histórias corresponde a um valioso instrumento de avaliação e sua análise pode ajudar o professor a identificar problemas de aprendizagem.
A interação das crianças com o texto narrativo é percebida, particularmente, nas atividades de reescrita de histórias. Em seus textos podemos encontrar elementos que foram retirados da história original, permitindo que reconheçamos a importância da experiência com textos narrativos no desenvolvimento da “linguagem de livros”. De acordo com Tompkins e McGree (1989), é na prática desta atividade que as crianças aprendem que os contos têm convenções específicas, como aberturas formalizadas (“Era uma vez”) e finais retóricos (“e viveram felizes para sempre”); possuem personagens de comportamento bastante previsível, por exemplo, as bruxas fazem coisas más e as princesas coisas boas; têm um desenvolvimento previsível, ou seja, uma linda garota está em perigo, chega um moço forte e a salva ou então uma princesa é capturada, um príncipe a resgata, e os dois se casam.   
Para Bakhtin (1992), a reescrita de um texto pelo sujeito não é de modo algum uma atividade, como se poderia pensar, cansativa, pois “é um acontecimento novo, irreproduzível na vida do texto, é um novo elo na cadeia histórica da comunicação verbal” e, para nós também, uma nova conquista rumo à apropriação de novas habilidades textuais.   
Góes (1993, p. 62) corrobora a ideia de Bakhtin sobre a reescrita ao afirmar que a criança ao reescrever histórias de medo, por exemplo, evoca cenários, características e ações típicas deste tipo de história, incorporando, assim, outros discursos. Trata-se, na verdade, de uma incorporação que implica iniciativa do sujeito e re-criação, já que “as relações novas e elaborações mais autônomas vão emergindo, num processo de individuação do sujeito que enuncia.

Segundo Pontecorvo e Morani (1996), o uso das expressões escritas dos contos são mais facilmente internalizadas pela lembrança de narrativas reescritas ou pelas histórias lidas por adultos.
Teberosky (1996) afirma que as atividades de reescrita de histórias são excelentes para que as crianças escrevam. Esta tarefa possibilita à criança uma série de manipulações do texto que as estimula a ir além da interpretação, liberando-as, por alguns instantes, de qualquer propósito comunicativo. Indiretamente, a imitação permite a repetição de formas em que a informação de texto-base foi codificada, mostrando que é um procedimento que coloca em jogo a adesão aos elementos textuais. Além disso, nas reescritas de textos, o estabelecimento de autoria é particularmente interessante, pois revela os graus e mecanismos pessoais de apropriações do texto fonte:
A atividade de reescrita cria um espaço intertextual interessante entre o texto-modelo ou o texto de referência e os textos reescritos, permitindo uma dupla comparação: entre as escritas resultantes e entre cada uma das escritas individuais e texto-modelo. A metáfora de “apropriação” serve para analisar o que existe em comum entre os textos reescritos, bem como a conservação, perda ou acréscimo de elementos com relação ao texto-modelo (Teberosky, 1996 ; p. 17)

Na caminhada rumo a construção do texto escrito, a criança, certamente, melhora sua “performance textual” inserindo elementos que contribuem para a textualidade. Para Rocha (1999), o “dizer mais” da criança constitui a primeira representação infantil em torno da textualidade da língua escrita, sendo então constitutivo do “dizer melhor”. Conforme assinala Vygotsky (1991; p. 51-52),
(não há recuo em citação longa)As operações com signos aparecem como resultado de um processo prolongado e complexo, sujeito a todas as leis básicas da evolução psicológica. Isso significa que a atividade de utilização de signos nas crianças não é inventada e tampouco ensinada pelos adultos, ao invés disso ela surge de algo que originalmente não é uma operação com signos, tornando-se uma operação desse tipo somente após uma série de transformações qualitativas. Cada uma dessas transformações cria as condições para o próximo estágio e é, em si mesma, condicionada pelo estágio precedente, dessa forma, as transformações estão ligadas como estágios de um processo e são quanto à sua natureza, históricas.             

Esse “dizer a mais” da criança também sinaliza, segundo Orlandi (1987), não apenas uma mudança estilística, mas uma pista para a observação de algo que vai além de um jogo formal: mais do que uma combinação de um advérbio e de um adjetivo há uma intenção a ser transmitida.
Assim, segundo Colello (2007), na reescrita de textos narrativos em ambiente escolar, o conteúdo não se materializa por meio de um processo de completa submissão, isto é, o bom texto não deve ser aquele que capta o texto-fonte ipse literis, mas aquele no qual se pode ver um trabalho ativo dos sujeitos.
Depois de termos mostrado alguns aspectos sobre a reprodução de histórias do ponto de vista da aquisição da linguagem, vejamo-la agora sob a perspectiva textual-estilística, pois se faz necessário também acrescentarmos que o papel da escola no tocante ao estilo que vai, muitas vezes, na contramão desse processo, pois, ao trabalhar a produção de texto, ela parece incutir um “estilo escolar” que visa à homogeneização.
Acreditamos que este breve percurso teórico tenha contribuído para elucidar algumas questões sobre a autoria no contexto escolar e, igualmente, sugerir outras. Além disso, muito do que foi exposto ao longo desses dois pontos teóricos, servirá para explicitar, no item seguinte, os procedimentos metodológicos de investigação.  

3.Procedimentos Metodológicos de Investigação
O objeto deste trabalho é investigar o modo como a criança constrói a autoria em seus textos. Para que possamos relatar essa construção, faz-se necessário optarmos por uma análise das produções textuais de crianças alfabetização, 1ª e 2ª séries. Para realizarmos este trabalho, selecionamos10 dentre os 121textos escritos por crianças de uma escola particular. Estes textos foram produzidos em quatro diferentes momentos: junho e novembro de 1997; junho e outubro de 1998. No primeiro ano da coleta, a atividade foi aplicada com as crianças da alfabetização e da 1a série e no ano seguinte a atividade foi dirigida às crianças da 1ª e 2a séries , de forma que foi garantida a escrita dos textos pelas mesmas crianças.  
A produção dos textos seguiu as mesmas orientações observadas para a produção dos textos em português, espanhol e italiano (Ferreiro, 1996). Para que escrevessem a história  Chapeuzinho Vermelho, as crianças receberam uma folha branca (formato A4) e uma caneta esferográfica preta. Os textos foram escritos em sala de aula, tarefa que durou, em média, uma hora.  
A escolha por um conto tradicional baseia-se em dois argumentos principais. Segundo Ferreiro (1996), o primeiro seria a utilidade pedagógica e o interesse psicológico da atividade de reescrever contos da literatura universal e, depois, porque essas histórias além de serem de domínio coletivo, possuem, pelo menos, duas partes bem diferenciadas, a narrativa e o diálogo direto, o que nos permitiriam analisar também o contexto mais propício para a criança manifestar-se enquanto narrador.        

Na quantificação dos dados, utilizaremos alguns procedimentos do Sistema Textus. Assim, para a inclusão dos textos no sistema será necessário seguir suas normas de transcrição, codificação e categorização morfossintática e estrutural dos textos, o que envolve segmentação do texto em enunciados, codificação das hipo e hiper segmentações, normatização ortográfica, categorização morfológica, categorização dos episódios e categorização dos tipos de discurso (HIDALGO, 1996).

Cada criança, conforme dissemos, escreveu quatro textos. Estes, para serem introduzidos no sistema, receberam uma identificação de seis dígitos. Os dois primeiros correspondem à série da criança: 00 para a alfabetização, 01 para a 1a série e 02 para a 2a série; o terceiro dígito indica a versão do texto: 1 para a 1ª versão, 2 para a 2ª versão, 3 para a 3ª versão e 4 para a 4ª versão; os três últimos dígitos correspondem ao número de identificação do aluno. Por exemplo, no texto 011021, os dois primeiros números (01) significam que a criança está na primeira série, o número seguinte (1) significa que é a primeira versão do texto e os três últimos números (021) mostram o número que será dado à criança. Assim a seqüência numérica 012021, significa que a criança está na 1a série (01), mas já está na segunda versão do texto (2); no texto 023021, mostra que esta mesma criança (021) está na segunda série (02), e escreveu a terceira versão do texto (3), finalmente, o texto 024021, indica que a criança está na segunda série (02) e que esta é a quarta versão do texto (4).      

A análise desses textos dar-se-á de forma qualitativa. Ao procurarmos investigar os aspectos comuns presentes nos textos produzidos pelas crianças, procuraremos também traços idiossincráticos de suas produções, pois segundo Abaurre (1992), um único exemplo expressivamente eficaz de uma forma linguística que encontra seu lugar significativo na configuração do texto em que aparece, evidencia mais acerca de sua contribuição para a construção do texto do que a mera descrição de contextos em que estas formas aparecem mais frequentemente. 
Os indícios de autoria deixados pelas crianças em seus textos, analisados qualitativamente, terão como suporte os construtos de Ginzburg (1989), a fim de depreendermos as particularidades inerentes a cada criança na atividade reflexiva e dialógica da escrita. Podemos inferir, de acordo com as postulações de Ginzburg (1989), sobre a importância dos indícios deixados pelo sujeito na maioria das atividades humanas, que as marcas deixadas pelas crianças no processo de regulação da linguagem apontam muito mais do que um conjunto de estratégias de autoria. Na verdade elas representam um salto qualitativo da criança em relação à aquisição da linguagem, pois o manuseio dos signos linguísticos reflete seus anseios interativos, dialógicos, históricos e culturais enquanto sujeito real da aprendizagem.
A seguir, mostraremos os indícios de autoria deixados pelas crianças em suas produções textuais escritas.

4.A autoria nas (re)escritas textuais infantis: resultados de um trabalho dialógico
Analisando qualitativamente os textos, pudemos perceber que diversos foram os níveis linguísticos tomados como caminhos para modificar o texto, visando prover a escrita de uma melhor adequação discursiva. Acreditamos que, por trás destes caminhos, ou seja, por trás de suas rasuras, indícios e refacções, escondem-se motivações que são interpretadas quando percebemos a relação do sujeito-autor com o outro.
O texto 014001 mostra uma reflexão da criança diante de certas convenções gráficas, como o uso de maiúsculas no início de orações. Percebendo que havia iniciado um período com letra minúscula, a garota trata logo de apagar o  “q”  de “quando” para escrever “Quando” maiúsculo:

Ele disse: – vá pela florestas, ele não eta lá. Ele foi pela direita e ela pela esquerda.  .  q   (A criança risca o “q” minúsculo e insere  a mesma letra maiúscula)   Quando chegou o lobo comeu ela. ( 014001)

Essa necessidade de 014001 escrever “Quando” com letra maiúscula parece indicar o atravessamento de um discurso normativizado, o discurso pedagógico, que produz no sujeito a obrigação de se cumprir as normas. Segundo Oliveira (2004, p.74), “o uso da letra maiúscula na escola possui um estatuto formal e a-histórico”. Mais interessante seria resgatarmos no ensino o aspecto discursivo do uso da letra maiúscula, considerando os possíveis efeitos de sentido que ela produz em um texto. Com isto não estamos querendo dizer que o ensino desta norma (e de tantas outras!) não seja válido, no entanto, a forma como ela é tratada na escola dá-nos a impressão de uma falsa homogeneidade.    

Segundo Orlandi (1987, p.80), esta obrigação do discurso pedagógico nos mostra que ele dilui seu objeto ao mesmo tempo em que se cristaliza como metalinguagem: as definições são rígidas, há cortes polissêmicos, encadeamentos automatizados que levam a conclusões exaustivas(…) As questões não são verdadeiras nem falsas, pois a representação em torno do referente se reduz ao é-porque-é. O que se explica é a razão do é-porque-é e não a razão do objeto de estudo.   

O texto 001003 nos mostra a reflexão que a criança realiza para compreender a relação fonema – grafema, como podemos ver a seguir:
cem (quem) esta aí e a sua netinha entre chapeusinho agora eu te peg e uei vovosinha, disse o lobo devoraNDo a vovo. E fim acabou a eStoriA(…)  (001003)

Note que a criança, ao escrever o verbo peguei, parece sentir falta de alguma letra, provavelmente, porque fez a comparação entre os sons do “g”, em palavras como “geladeira” e “peguei’ e percebeu que não era o mesmo som, então para consertar sua escrita sobrepõe ao segundo “e” a letra “u” e escreve corretamente o restante da palavra. Uma outra dúvida que 001003 ainda parece passar é sobre a  escrita das letras cursiva e de forma e é sobre este tipo de retificação que se preocupou no restante de seu texto: em devorando o garoto trocou as letras “n” e “d” cursiva pela letra de forma, fazendo o mesmo com as letras  s e a na palavra  estória.
Já as retificações que 013008 fez em seu texto são diferentes das de 001003. A criança volta-se para o branco entre as palavras:
Era/uma/vez uma menina que foi entregar doses para sua vovo.  (013008)                                                     
Percebemos com este exemplo que a criança parece lembrar-se de que há um espaço em branco que separa as palavras e, ao escrever “Eraumavez” junto, separa as palavras utilizando duas barras.
Já as retificações feitas no nível textual tiveram três ocorrências no Grupo da Alfabetização. A primeira foi no texto 002019: a criança substitui uma passagem que escreveu da música que Chapeuzinho canta na floresta pela versão cantada na história original:
(…) pela estrada afora eu vou bensosinha para vovosinha levando essis dossis para vovósinha (…)   (002019)

Esta retificação feita no texto 002019 nos leva a crer que a criança, provavelmente, acredita que a versão da história original é melhor que a sua e resolveu substituí-la, tal pensamento é advindo dos exercícios modelos feitos na escola, os quais privilegiam o registro fiel de um texto. Segundo Collelo (2007), este tipo de escrita ocorreria por que o “aluno-função” segue o “jogo da escola”, devolvendo a ela os modelos impostos pelo ensino formal. Tais modelos até preenchem as exigências escolares, mas anulam as palavras do autor. 
Outras duas semelhanças nas operações de retificação apareceram nos textos 013013 e 013021.
A criança 013013, percebendo que a história de Chapeuzinho Vermelho iria ser contada diferente da versão original, substitui a informação e escreve o nome da personagem que recebe a visita da Chapeuzinho, na versão original, a vovó:
um dia minha mãe mechamo para visitar minha mãe avo por que ela estava doente. (013013)

No texto 013021, a criança atenta-se também para a coerência do texto: ao contar o episódio em que a Chapeuzinho bate na porta da casa da vovó, a garota parece não querer revelar que o lobo estava fantasiado de vovó e risca o nome dele, ao fazer isso, a criança proporciona ao leitor um clima de suspense ao texto :
 (…) a chapeusinho chegou na casa da sua vô e bateu na casa da sua vô abrio a porta     o lobo   a chapeusinho perguntou essa boca (…)  (013021)

Por fim nas retificações no nível gramatical, apenas duas ocorrências foram registradas nos textos do GA. A primeira mostra a criança substituindo a expressão “para + infinitivo” pelo gerúndio:
(…) e la muito longe ia um lenhador com uma inspingarda e ele foi ver o que estava para acontecer  acomtecendo la (…)  (014006) 

Tal fato aconteceu, provavelmente, porque o garoto percebeu que o gerúndio aproxima mais os fatos da realidade, dando ideia de continuidade, ao contrário da expressão “para + infinitivo”, que denota futuridade, segundo Haumann (1997).

O outro caso de retificação no nível gramatical do Grupo da Alfabetização diz respeito à referenciação anafórica, em sentido lato, a retomada de um termo antecedente por outro. Em nosso corpus, a criança 013011, ao perceber que a palavra Chapeuzinho Vermelho iria repetir-se muito próxima a outra escrita desta palavra, a substitui pelo pronome ela:
(…)amai da xápeu sinho vermelho mandou xapeusinho ela ir pelo ucaminho mais longo. (013011)

Por meio deste fragmento, pudemos observar ecos do discurso pedagógico, principalmente se considerarmos que uma das formas de intervenção do professor sobre a repetição nos textos de seus alunos é por meio de atividades, por exemplo, que fazem com que os alunos substituam nomes já repetidos por pronomes ou outros termos.
A questão da referenciação como norma pedagógica que controla a escrita parece ser resolvida por meio da não repetição, ou seja, basta substituir uma expressão ou um nome por um pronome ou similar que tudo se resolve. Esse tratamento dispensado ao texto privilegia apenas as marcas linguísticas, diluindo o lado discursivo da relação sujeito/sentido. Essas normas pedagógicas, conforme Oliveira (2004, p. 90), “atuam sobre uma espécie de apresentação do linguístico, a partir de uma concepção de língua normativa que tenta ignorar os aspectos discursivos do texto”.  
Observamos ainda que na substituição de “Chapeuzinho” pelo pronome “ela”, a criança defrontou-se com a questão da conservação/progressão de informações, isto é, em como introduzir, retomar e diferenciar os elementos no texto. Em linguística o uso dos pronomes anafóricos são tidos como um dos mecanismos de textualização, visto que funcionam como um substituidor lexical e contribuem para propiciar estabilidade e continuidade ao texto. 
Schneuwly (1998), revisando pesquisas sobre o uso dos anafóricos por crianças, hipotetizou que por volta dos nove anos as crianças aprenderam a usar o pronome anafórico como meio de criação de coesão, meio que serve para indicar ao leitor que nada muda, que se continua com os mesmos atores/elementos que antes. O uso dos anafóricos, ressalta Schneuwly (1998), mostra uma relação mais distanciada e reflexiva sobre a produção textual.
Enfim o uso do anafórico pela criança mostrou, mais uma vez, sua capacidade em se colocar no lugar do interlocutor/leitor e, a partir daí, refletir sobre seu próprio discurso, percebendo que uma repetição tão próxima não é boa para o texto.
Analisadas as retificações como estratégias de autoria nas crianças do Grupo da Alfabetização, vejamos agora essas estratégias feitas pelas crianças do Grupo da 1ª série.  
O texto de 024036 é um exemplo do trabalho com os níveis gráficos e gramaticais, bem como do ajustamento textual, revelando um sujeito-autor preocupado com as exigências de um leitor atento à significação e à estruturação do texto.

Texto1: produção textual de 024036             

 No primeiro período, percebe-se uma preocupação com a coerência textual. Ao refletir sobre o que acabara de escrever (… a mãe dela chamou para ir deichar uns doces na casa dela…), a criança parece atentar para o fato de que o termo dela não retoma o elemento vovó, mas mãe, realizando uma operação de substituição de na casa dela por para a casa da avó, provavelmente, com o intuito de manter a coerência textual e de se livrar da falta de clareza. No segundo período, opera novamente uma substituição, ai foi por e foi. Neste caso, parece que Ítalo apostou numa melhor redação para sua oração ao se desfazer de uma estrutura comum ao discurso falado (aí), em detrimento de uma conjunção aditiva que unisse suas orações e oferecesse uma aproximação da língua padrão (… o lobo vio e foi pelo bosque…). No terceiro parágrafo, a criança insere no discurso direto sinais de pontuação para esclarecer turnos de fala em textos narrativos. No caso do texto produzido, Chapeuzinho Vermelho, parece saber que as vozes de Chapeuzinho, da vovó, do lobo e do caçador ganharão destaque em dados momentos, por isso ele suprime, depois dos dois pontos, o pronome interrogativo (que), sabendo que este vai representar um turno de fala e que deve receber um travessão antes de sua escrita, numa nova linha.

O texto de 023031 apresenta marcas bem semelhante às deixadas por 024036
Texto 2: Produção textual de 023031 

No sexto e sétimo parágrafos, a criança revela reflexão quanto ao uso do verbo dizer. Provavelmente, por se questionar sobre usar ou não tal verbo, sugere atenção ao sentido e a manutenção da continuidade narrativa. Parece que a criança está ansiosa para que Chapeuzinho fale logo, mas ele sabe que antes de ela se manifestar, deve realizar algumas ações como chegar, bater na porta, dizer algo, e, depois, entregar a cesta à vovozinha. A pressa é inimiga da perfeição! Por isso, a criança resolve, então, realizar substituições (disse por chegou; disse por bateu; disse por entregou) para que sua pressa não comprometa os detalhes de sua história. No oitavo parágrafo, a criança , finalmente, “dar voz” à Chapeuzinho: Chapelzinho dise para que eses olhos tão grande …
As retificações feitas nos textos da criança, como pudemos observar, encontram-se, principalmente, no nível da palavra, o que, segundo Oliveira (2004), estariam relacionadas à uma ordem grafemática que disciplina a forma do escrito através de uma imagem gráfica. Esta necessidade de escrever corretamente está marcada por um discurso que atravessa este momento da relação aluno-escrita: como estão na 1ª série, as duas crianças são cobradas ainda mais pelo domínio das convenções da escrita.
Assim, as retificações funcionariam como uma espécie de barreira, que produz um efeito homogêneo à grafia e que indicam, segundo Oliveira (2004, p.79), “um caráter de apropriação de um modo de escrever autorizado e imposto por um certo efeito-sujeito inscrito no discurso pedagógico, no qual todos têm que escrever do mesmo jeito”.        
Enfim, a retificação como estratégia de autoria mostra a interação da criança com o texto, permitindo-a vê-lo de um outro lugar, sob uma outra perspectiva e sob o olhar de vários outros, o que permite conceber a escrita sob uma perspectiva dialógica.

5. Considerações Finais
Neste trabalho ao olharmos o que foi modificado pela criança em seu texto, atividade que demonstrou não apenas um trabalho normativo e cognitivo, mas uma preocupação com a compreensão do texto e, conseqüentemente, com o outro, podemos ver, segundo Rey-Debove (1987), que as marcas de reescrita indicam o que seria inacessível no texto, isto é, o que o autor pensou antes de escrever e como gostaria de adequar seu material linguístico para o leitor.
Todas essas observações, sobre a reescrita como estratégia de autoria, revelam um autor preocupado com os possíveis efeitos de sentidos de seus textos, apesar de haver certa influência do discurso pedagógico, produzindo restrições homogêneas sobre a produção textual.   

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Publicado em 10/09/2010 12:50:00


Mônica de Souza Serafim e Rose Maria Leite de OliveiraMônica de Souza Serafim: Doutora em Linguística e professora do Departamento de Letras Vernáculas na Universidade Federal do Ceará
Rose Maria Leite de Oliveira: Doutora em Linguística e professora do Departamento de Letras da Universidade Federal de Campina Grande

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