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A ÉTICA DA EXCLUSÃO

Jair Antonio de Oliveira

O propósito deste trabalho é refletir acerca do “excluidor” (aquele que afasta e omite) para deslocá-lo da bipolaridade considerada indispensável à compreensão de seus gestos e marcas esquemáticas e situá-lo no devir da alteridade; não para reconstruir a sua identificação, mas a fim de apontar as modalidades de poder que emergem em seu discurso e evitar a nossa própria inserção na lógica da privação. Tendo como base a Pragmática Lingüística, interpretamos textos publicados na web e obtivemos resultados que reforçam a prédica: “não concordo com uma só palavra sua, mas me baterei até a morte para que tenhas o direito de usá-las” (Voltaire).

Palavras-Chave:
Exclusão / Pragmática / Linguagem/Ética.

1 A clausura dos sentidos
Nietzsche (1979, p.71) escreveu que em todo o gênero de história é necessário ter em vista a separação da origem e da finalidade de alguma coisa. Tudo o que é criado no mundo é submetido à potências que as usarão de acordo com os seus propósitos específicos. Nada está livre de uma dominação que implica em sucessiva interpretação e acomodamento das coisas a novos fins. Nesta linha de argumentação, tem-se uma evolução para o conceito de claudére (lat): fechar, cerrar, impedir ou terminar que não objetiva um único fim, apesar das reiteradas tentativas de se fazer pensar o contrário. Desde que os primeiros registros desta palavra aparecem na história, constata-se o seu uso de acordo com propósitos diferenciados que estão sempre convergindo em direção a uma força maior. Em outras palavras, não é mais a origem que passa a dar a razão de existir do fenômeno, mas instâncias éticas que se sobrepujam, cada qual fazendo valer a sua interpretação da realidade e do Ser.

O uso do termo “excluidor” na atualidade implica em adentrar um universo aterrador, onde a simples menção assusta; também qualifica e impõe àquele que é designado o seu enquadramento em uma lógica dual. Pecado algum é maior que o de ser marcado com o “nome”, que hora omito, para não ser tocado pela força que gravita em seu redor. De onde advém tal potência? De D’us? Cuja prescrição nos primórdios da humanidade criou o fruto proibido e assim excluiu Adão de abrir os olhos?  “Poderás comer de toda a árvore do jardim, mas não comerás da árvore do conhecimento do que seja bom ou mal (…) (Gênesis, 2, 16). Jamais saberemos, mas em qualquer momento que o termo seja empregado, alguns fatores estarão sempre presentes: a contradição e a avaliação; as paixões destrutivas e a razão ineficaz.

2 As Hierarquias do nome
Freqüentemente, associa-se a figura do excluidor com ações lingüísticas e não-lingüísticas consideradas “más” para determinado interlocutor ou comunidade. Daí a legitimação social de seu oposto: o incluidor, e o enorme sucesso de todas as políticas em seu nome. Pragmaticamente, como tipificar, como elaborar um perfil para aquele que exclui? Há uma identidade para o mal? Socialmente não é possível estabelecer uma imagem consensual neste caso; embora, tacitamente, estabeleça-se uma hierarquia para o “certo” e o “errado”. O que está no lado superior é bom; o contrário é mau. Neste viés, toda uma estrutura de valores é consolidada e legitimada de forma tão natural que ninguém se dá ao trabalho de definir precisamente o que é isto. Aceita-se a idéia platônica de que o homem se assemelha a um joguete de um Deus; ou seja: embora a história deva a sua existência aos homens, obviamente não é feita por eles.

O mal pode ser um desvio (o não-literal), o subjetivo (a paixão), a fissura (o feminino), o diferente (o estrangeiro, o doente) a negação (o estatuto). O mal, explicitado aqui em sinais gráficos, não é o próprio mal, mas o seu arremedo enfraquecido; pois o verdadeiro mal é ação, “put to the test”, diria Wittgenstein. Qualquer tentativa de conceituá-lo esbarra na impossibilidade de traçar um nítido contorno para isto, pois o conceito não é exprimível com palavras. Temos que nos consolar com os clichês… Dostoievski (apud ARENDT, 2000, p. 64) afirma em seu diário que na Sibéria, em meio a multidões de assassinos, estupradores, ladrões, nunca encontrou um único homem que admitisse ter agido mal. O auto-engano é a versão dissimulada do mal? Ou um artifício do próprio demônio que se esmera em fazer crer aos humanos que ele não existe, e assim arrebanhar novos neófitos com os seus desatinos?

Transformar o mal em categoria e apresentá-lo como atributo do excluidor ou acentuar que as ações do excluidor têm, necessariamente, como parâmetro, o mal, é tão difuso que precisamos inserir tais ações em um quadro de referências concretas a fim de não tergiversar sobre o tema. Arendt (2000), ao cobrir como correspondente da revista The New Yorker o julgamento de Adolf Eichmann em Israel, relata a discrepância entre o que se esperava de um julgamento histórico, o maior depois de Nuremberg, e a figura banal de um funcionário do partido nazista, incapaz de discriminação moral, exemplo da burocratização da vida pública, sentado no banco dos réus. O cenário era de um grande espetáculo, mas para os que esperavam que o próprio diabo se fizesse presente ao tribunal, surge um senhor de terno escuro, óculos de aros de tartaruga, como qualquer pai de família de classe operária, repetindo arengas de que cumpria o seu dever: “(…) ele não só obedecia a ordens, ele também obedecia à lei” (ARENDT, p.152).

Eichmann foi um dos responsáveis pela “Solução Final”, programa sistemático de eliminação dos judeus na Europa ocupada. Embora tenha sido eficiente em seu trabalho, com o deslocamento de milhões de pessoas para os campos de morte, não manifestou nenhum remorso durante o seu encarceramento. Para os nossos padrões de moralidade, Eichmann é a própria “encarnação do mal”; mas à medida  que o seu julgamento prosseguia e as acusações dos sobreviventes iam se avolumando, mostrando toda a tragédia que se abatera sobre o povo judaico, a figura do nazista se apequenava ainda mais, até se tornar medíocre. Aos olhos de Arendt foi surgindo a verdadeira imagem do holocausto: “a banalização do mal”.

Com a transformação do mal em algo trivial, ingressamos na esfera da indiferença, do sarcasmo e do fatalismo que nos coloca à mercê de forças que não controlamos.   Sofisma confortador, pois se o mal é costumeiramente ligado à figura do excluidor, tal associação oblitera a crueldade de nossas próprias ações inclusivas e nos torna cegos à humilhação que causamos quando os nossos interesses políticos e pessoais são considerados imprescindíveis e adequados, em prejuízo de outras formas de entendimento e ação.

Os quadros de referências que usamos na lógica do bem e do mal nem sempre fazem justiça aos nomes, pois temos poetas impiedosos, estetas cruéis, políticos “sanguessugas” e presidentes desonestos que simplesmente transformam as vidas das pessoas sem notar que essas pessoas sofrem. Na divisão polar do mundo podemos tomar estas ações como uma forma de maldade, portanto, de exclusão; mas é preciso observar que não há fatos morais simples diante de nós no mundo, nem verdades independentes da linguagem, portanto, não há qualquer terreno neutro em que se assente e a partir do qual se argumente que tal potência é preferível àquela.

Diante do “indecidível”, a resposta pode ser um apelo, tal fez o Papa Bento XV ao visitar Auschwitz: “Em um lugar como este, as palavras se perdem. Só pode haver um aterrador silêncio – um silêncio que é por si só um franco grito por Deus: por que, Senhor, você permaneceu em silêncio?”

3 Do Interesse da Alteridade
Berlin 1945. Um avô berlinense visita as ruínas da cidade com a neta. Ela aponta um jovem soldado alemão com as duas pernas mutiladas, em seu uniforme desbotado: “Este quis a guerra?” O avô olha, mudo, desiludido. Ela dá de ombros e comenta: “Erst kommt das Fressen dann kommt die Moral” (Antes vem a comida, depois a moral) (MARABINI, 1989, p. 216). O relato nos coloca diante de uma questão quase sempre negligenciada: a dos “interesses” e a convicção de que se trata de aspirações humanas dotadas de um elemento de reflexão e cálculo com respeito à maneira pela qual se busca atingir os seus propósitos.

Assim, para continuar este relato indaga-se: é possível ou desejável deslocar o excluidor dos gestos e marcas esquemáticas que lhe foram atribuídos ao longo da história e situá-lo no devir da alteridade, como uma contraposta medida virtuosa que o levaria para a inclusão? Colocamo-nos diante de uma aporia. De um lado, os fundamentos do Pacto Social afirmam que é preciso submeter os impulsos agressivos e destruidores dos homens e incliná-los para a paz. De outro, a busca do aprimoramento da arte de governar nos conduz a um maior realismo na análise do comportamento humano e aponta para um mundo governado pelos interesses, que pressupõem exclusão.

Paz e exclusão não têm sido conciliáveis, pois os que concretizam a primeira não têm sido capazes de evitar a segunda. O duplo-gesto, moral e político, necessário para agrupá-las em nome da “Grande Família do Homem” (Barthes, 1993, p.113), resvala para uma retórica predestinada, onde estar juntos, operar em comum, ajudar ou socorrer, tornaram-se valores em si mesmo sem qualquer conexão com as relações pessoais concretas dos indivíduos. E como modelo de  retórica inspirada pode ser usada em qualquer contexto, por qualquer pessoa, por exemplo:

O lobo habitará com o cordeiro; e o leopardo se deitará ao pé do cabrito; o novilho, o leão e a ovelha viverão juntos, e um menino pequeno os conduzirá. O novilho e o urso irão comer às mesmas pastagens; as suas crias descansarão umas com as outras; o leão comerá palha como o boi; a criança de peito brincará sobre a toca da áspide (…) (ISAÍAS, 11, 6-8).

Se considerarmos que há muitos interesses humanos impedindo a equação entre o excluidor e a lógica da alteridade, há, igualmente, inúmeros motivos válidos que nos dizem ser mais útil (em um sentido pragmaticista) o dever de se buscar a utopia ética da proximidade face-a-face. E que tal impulso possa fundar na totalidade semiótica vigente, dominante, uma realidade não-opressiva e não-ex(s)clusiva. Senão, estamos sendo tão céticos em relação às nossas vidas quanto  a alteridade diante da  vontade de poder e dos impulsos da libido humana. O ceticismo reside/resiste mais para o “como” realizar tal deslocamento, isto é: como incluir o excluidor na inclusão, sem cair na própria lógica da privação que o caracteriza.

Rorty (1994, p.19) diz que o processo de se chegar a conseguir ver outros seres humanos como sendo um de “nós” e não como “eles” é uma questão de descrever pormenorizadamente como são as pessoas que não nos são familiares e de redescrevermos a nós próprios. Neste aspecto, ressalta, que o jornalismo (…) tem uma missão que é a de nos fazer reparar nos tipos de sofrimento suportados por outras pessoas e nos fazer reconhecer que também somos capazes de ser cruéis. 

Durante o tempo em que esteve preso em Israel, nas longas sessões de julgamento, Eichmann ouviu centenas de relatos de pessoas que estiveram em campos de concentração. Embora ficasse impassível, numa tentativa de manter o autocontrole, “(…) mostrou sinais de sincera indignação quando as pessoas falavam de crueldade e atrocidades cometidas por homens da SS” (ARENDT, 2000, p. 125). O que Eichmann pensava era mais ou menos o seguinte: “nós os matávamos, sim; mas era uma morte misericordiosa”. Que tipo de  narrativa sobre a crueldade humana o tornaria, novamente, um “ser sentinte” e o exporia a Outro? Lèvinas conta que em seu cativeiro em Stammlager, nas rotinas diárias de ir e vir do campo ao local de trabalho, um cachorrinho se inseriu nessa rotina. “(…) os moradores do povoado vizinho ao campo de concentração os viam como judeus contaminantes, enquanto o cachorrinho os via como seres humanos” (LÉVINAS apud COSTA, 1990, p. 40).

Bastou a presença diária dos prisioneiros em um espaço do mundo, linguagem não-verbal, para que o cão se aproximasse sem nenhum medo daqueles seres. A linguagem em Eichmann não o tornou irracional, ou seja, incapaz de apresentar razões para que as suas crenças se articulassem com outras crenças; mas, enquanto doação e primeiro gesto ético, a linguagem de Eichmann o impossibilitou de conseguir se doar e socorrer. As “regras de linguagem” (Sprachregelung) que os envolvidos na “Solução Final” adotaram mostra uma teia coerente de desejo; formam um quadro de referências claras em que eles se orientaram e que os tornaram refratários a qualquer possibilidade de “experimentar em si a idéia do infinito que é o Outro”.

4 O Lugar do Não-Lugar
Que ato é este, a “inclusão”, que paradoxalmente garante o não-fechamento do excluidor mas também nos conduz à clausura de um lugar? É, porventura, o nosso deslocamento para o outro lado da hierarquia ou um ato de bondade, culpa, piedade, temor? Tal gesto não pode ser nomeado em sua totalidade, pois qualquer tradução permanecerá ligada às interpretações passadas; embora, enquanto gesto, tenha uma história, um rastro pleno de dotações e investimentos. Incluir é dotar de lugar, investir uma voz àquele que não a tem; embora também seja submeter, pois não há destino sem ritual e todo rito comporta o sentido de um lugar político.

Há um oposto para o incluidor? Será o excluidor a justa medida para esta dicotomia? O excluidor é aquele que reporta palavras que não são suas, que imita gestos que não são seus; é aquele cujo lugar-político não se edificou: é o não-lugar. O ato da exclusão é “em si” a busca de um lugar próprio, um domínio (em seu duplo sentido) que jamais será alcançado pelo excluidor. Assim como Ahasverus – O Judeu Errante que, segundo a lenda, impediu Jesus de se deter diante de sua tenda para descansar quando se dirigia para a crucificação. Ao dizer para o Cristo: “Vá andando!”, transmutou-se na maldição de uma trajetória sem rumo.

Ahasverus carrega o fardo de ser, ao mesmo tempo, excluidor e excluído. A lenda diz que era “sapateiro”, atividade que o associa aos “pés”, ao deslocamento, à mudança, à incerteza. Profissão que também o liga à impureza, pois manuseia couro de animais mortos.  Na ordem social da época sua posição é periférica e Ahasverus empregará as mesmas regras políticas que o condenam a ser um subalterno a fim de não se aproximar de um condenado, de um estigma maior, aquele que será crucificado. Ahasverus, o excluído, torna-se o seu anverso, um não-lugar, tão logo emite o performativo: “Vá logo!” Ao que Jesus responde: “Eu vou e tu ficarás até a minha volta”.

A presença de uma promessa nas palavras de Jesus (eu voltarei) é suficiente para não caracterizá-lo também como um excluidor. A promessa não se extinguiu, já que se espera o retorno do filho de D’us e toda purgação é vista como uma purificação. Cristo não exclui Ahasverus, mas o quer dignificado, ou seja: capaz de experimentar em suas andanças o encontro sem mediações com o Outro estando face-a-face com ele; experimentar o recebimento do Outro em si, Outro que vem a si assimetricamente pela estrada e de mãos vazias.

Dotar Ahasverus com um lugar próprio simbolicamente representa a inclusão de todos os excluidores, uma vez que a remissão de suas ações viria após a “caminhada”, o gesto político e ritualístico na direção da alteridade. A “caminhada” depura, é o gesto ético de pôr em comum um mundo até agora meu. Consiste em dizer o mundo ao Outro. Lévinas, em suas caminhadas diárias como prisioneiro até o seu local de trabalho fora do campo de concentração, teve o seu momento de iluminação. Percebeu que a relação entre os entes humanos não é posse, objetivação, exploração, mas ética. E daí pretende que a Ética seja a filosofia primeira, anterior a toda filosofia possível.

Referências:
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. São Paulo: Cia das Letras, 2000.
COSTA, Márcio Luis Costa. Lévinas: uma introdução. Petrópolis: Vozes, 2000.
DERRIDA, Jacques. Khôra. Campinas: Papirus, 1995.
FARACO, Carlos Alberto. Linguagem e Diálogo. Curitiba: Criar, 2003.
HIRSCHMANN, Alberto. As Paixões e os Interesses. Rio: Paz e Terra, 1979.
MARABINI, Jean. Berlin no Tempo de Hitler. São Paulo: Cia das Letras, 1989.
NIETZSCHE, F. A Genealogia da Moral. Rio: Tecnoprint, 1979.
RORTY, Richard. Ironia, Contingência e Solidariedade. Lisboa: Editorial presença, 1994.

Publicado em 26/08/2010 11:18:00


Jair Antonio de Oliveira – Professor do Departamento de Comunicação Social (UFPR).  Mestre em Lingüística (UFPR). Doutor em Ciências da Comunicação (USP)

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