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PSICOLOGIA COMO CAMPO DE CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO INFANTIL E A TEORIA DE JEAN PIAGET

Rafael de Oliveira Rodrigues e Soraia Georgina Ferreira de Paiva Cruz

Psicologia como campo de constituição do sujeito infantil e a teoria de Jean Piaget: apontamentos sobre a “naturalização” do desenvolvimento infantil

Resumo
O artigo visa problematizar o saber criado com a Psicologia, dar uma rápida passagem pelos discursos desta ciência desde seu nascimento e interrogar qual seria a implicação deste saber para a constituição dos sujeitos infantis. Para isso, iremos remontar qual o contexto em que ele foi forjado e quais revoluções nos modos de se conceber a vida tornaram-se possíveis após o advento da Psicologia como um campo de saber autônomo. Além disso, como forma de exemplificar o que entendemos por uma psicologia eu constitui a infância, iremos abordar alguns aspectos presentes na teoria de Jean Piaget numa tentativa de elucidar como esse dito foi (e está) amplamente difundido, aplicado e “naturalizado” de tal forma que nos dias de hoje é comum falar em “fases de desenvolvimento” quando nos referimos à crianças. Para que essa problematização seja possível, iremos nos apoiar nos estudos de Michel Foucault sobre a produção de saberes e, em especial, dos saberes “psi”, e qual a sua importância para a constituição dos sujeitos infantis.

Palavras-chaves: Psicologia; Constituição da Infância; Enunciados Científicos;

Abstract
This article aims to question the knowledge created with psychology, taking a quick passage through the discourses of this science since its birth and questioning what is the implication of this knowledge to the children constituition. Then, we will reassemble the context in which it was forged and what revolutions in the ways of conceiving life became possible after the psychology advent being estabilished as a field of autonomous knowledge. Furthermore, as a way to illustrate what we understand about the psychology constituition of childhood we will discuss some aspects of Jean Piaget’s theory in an attempt to elucidate how this speach was (and is) widely applied and “naturalized” in such way, that nowadays it is common to speak of “stages of development” when referring to children. To realize that problem, we will support the studies of Michel Foucault about the production of knoledge and especially of knowledge “psy” and what is its importance for the children

Key-words: Psychology; Constitution of Childhood; Scientific Statements.

Introdução
Surgida no último quarto do século XIX, tendo por marco histórico de criação o ano de 1879 (SCHULTZ & SCHULTZ, 1992. p. 19), a Psicologia trouxe importantes contribuições para a consolidação do projeto de modernidade e, numa inspiração iluminista, promove o “(…) nascimento do homem […] na qual o indivíduo estava associado à razão e ao rigor do pensamento” (CASTRO, 1996, p. 313), além de uma idéia associada à noção de progresso e evolução (idéias, como já assinalado anteriormente, de cunho Iluminista).
Essa nova ciência surgiu de um desdobramento de outros campos de saber, – as ciências físicas e biológicas – além da herança que os aspectos filosóficos de pensamento arrastaram consigo, tornando-se mais uma influência à nascente psicologia. Duane Schultz e Sydney Ellen Schultz afirmam que entre os séculos XVII e XIX (muito fértil para a consolidação da psicologia como uma nova ciência):

Enquanto os filósofos […] preparavam o caminho para a abordagem experimental do funcionamento da mente, os fisiologistas atacavam independentemente os mesmo problemas a partir de outras direções, e davam largos passos rumo à compreensão dos mecanismos corporais que estão na base dos processos mentais. (SCHULTZ & SCHULTZ, 1992. p. 19).

Assim, a visão de homem que então estava em construção para a prática psicológica estaria associada fundamentalmente a dois aspectos distintos: tratando-se de um ser vivo a psicologia inicialmente concebe o homem como parte integrante de uma natureza, incorporando conhecimentos biológicos à sua constituição. Por outros lado haveria na tradição filosófica alguns pontos que colocariam o homem e suas construções (científicas e de existência) como únicos e singulares frente à esta idéia biologicista. Homem biológico versus homem filosófico (do pensamente): eis as duas grande influências que a psicologia vê diante de si.
A despeito de inúmeras tentativas de consolidação da psicologia enquanto um saber autônomo   (temos abertura de laboratórios experimentais, criação de revistas científicas para divulgação de conhecimento em psicologia, redefinições e rearranjos por parte dos primeiros estudiosos sobre o assunto), encontramos no ano de 1908 o psicólogo britânico William McDougall que afirma ser a psicologia, como encontramos em Schultz & Schultz, uma ciência do comportamento. Dessa forma o saber psicológico:

(…) conseguia a sua independência em relação à filosofia, desenvolvia laboratórios de pesquisa nos quais aplica[va] métodos científicos, formava sua própria associação científica e definia-se formalmente como ciência – a ciência do comportamento. (SCHULTZ & SCHULTZ, 1992, p. 19).

Resolvida esta primeira etapa de seu desenvolvimento, ou seja, incorporando tanto aspectos biológicos (o comportamento apresentaria relações com instintos primordiais) como filosóficos (o comportamento nos homens se fazem a partir de relações: pessoais, subjetivas e sociais), a psicologia impõem-se como a ciência que se ocuparia dos comportamentos do homem.
Nesse sentido, dentre as linhas em psicologia mais conhecidas, temos a Psicologia do Desenvolvimento (essencial para se compreender esta pesquisa) que se ocupa, segundo a autora Lúcia Rabelo de Castro: “(…) em descrever e sistematizar as mudanças ao longo do tempo biográfico, o chamado ‘ciclo vital’” (CASTRO, 1996, p. 312). Desta co-relação surgida a partir da idéia de desenvolvimento como uma expressão cíclica, estaria ancorada as bases que afirmam que o homem, em seu desenvolvimento, seria um fruto das diversas etapas e fases desenvolvimentistas, iniciada com o nascimento e encerrando com a morte.
Dessa forma, o saber psicológico concentra suas pesquisas em descrever com minúcias o que seriam essas fases, e, principalmente, quais seram as etapas consideradas “normais” e quais seriam os “desvios” desta norma de desenvolvimento. Nesse sentido, a ênfase desses estudos recairá sobre o chamado “ciclo vital” e em alguns de seus segmentos principalmente a chamada infância e adolescência, que seriam as primeiras etapas do desenvolvimento e, portanto, as mais importantes, pois estaria aqui a formação do homem adulto. Desse modo, esta concepção de desenvolvimento teorizada pela psicologia têm como característica fundamental tomar o homem adulto como ponto de chegada e termo eminente da série de transformações que têm lugar na cognição da criança em desenvolvimento (KASTRUP, 2000).
Ainda sob influência da biologia, encontramos a afirmação de que essas “fases” da vida (criança/infância e adolescência) estariam: “(…) mais perto da ‘natureza’ não corrompida pela civilização” (CASTRO, 1996, p. 313), conforme verificamos nas práticas da Psicologia do Desenvolvimento.
Conforme encontramos em Castro, esta aproximação com o que seria um “estado mais natural”, leva os cientistas do desenvolvimento, numa inspiração darwinista, a buscarem em suas observações e estudos realizados com crianças/infância, o que seriam as origens das características adultas. Buscando o adulto nas primeiras manifestações das crianças/infância, a Psicologia do Desenvolvimento faz uma tentativa à fórceps de compreender a natureza do homem, equiparando as crianças/infância aos povos considerados primitivos e selvagens. Dessa forma, ainda de acordo com a autora:

(…) o estudo da criança e do selvagem, ambos tidos o como imaturos e não-desenvolvidos, fornecia uma linha de base imaginária para se poder detectar as características posteriores do estágio adulto. (CASTRO, 1996, p. 313 – grifos da autora).

Jean Piaget: a psicologia do desenvolvimento
Sobre esses estudos, Castro ressalva que a criança, entendida como uma ponte entre um mundo “natural” (natureza) e desenvolvido (adultos), era considerada apenas como um organismo biológico, sendo completamente abstraída do seu contexto material e social.
Assim, dentre os estudiosos sobre o desenvolvimento humano, em especial dos aspectos cognitivos presentes nas crianças/infância tomadas por sua apresentação em fases pré-definidas, temos Jean Piaget como um dos nomes mais expressivos dentre esses estudiosos, que notamos exercer sua influência ainda nos dias de hoje.
Piaget, nascido em Neuchâtel, Suíça, em 9 de agosto de 1896, desde muito cedo se interessou pelas ciências  . Autor de inúmeros artigos científicos licenciou-se e doutorou-se pela Universidade de Neuchâtel, realizando estudos iniciais com moluscos. No entanto sua maior contribuição, influenciando até os dias de hoje, foi no campo da psicologia do desenvolvimento.
Em seus estudos em biologia (notamos que o autor alinha-se com os processos biológicos como mencionado), Piaget suspeita: “(…) de que os processos de conhecimento poderiam depender dos mecanismos de equilíbrio orgânico” (OS PENSADORES, 1983, p. IX). Além disso, há outra suspeita quanto à aquisição dos conhecimentos. Segundo ele: “(…) tanto as ações externas quanto os processos de pensamento admitem uma organização lógica” (OS PENSADORES, 1983, p. IX).
Baseando seus estudos com humanos entre uma aproximação biológica e um encadeamento lógico, Piaget então escreve uma das suas obras mais lidas pela comunidade científica das últimas décadas: Seis Estudos de Psicologia. Esse estudo, que vê na Psicologia uma aproximação entre as aquisições de conhecimento com aspectos da vida orgânica, chamou a atenção dos especialistas em educação de todo o mundo pela ênfase dada ao estudo do processo de construção do conhecimento e por sua descrição pormenorizada da evolução intelectual da criança/infância até a fase adulta.
Além disso, no livro citado Piaget escreve já no primeiro capítulo, que o desenvolvimento psíquico: “(…) começa quando nascemos e termina na idade adulta, é comparável ao crescimento orgânico: como este, orienta-se, essencialmente, para o equilíbrio” (PIAGET, 1993, p. 11).
Mais uma vez notamos a aproximação entre o desenvolvimento psíquico e aspectos orgânicos. Assim, da mesma forma que o desenvolvimento psíquico, para ele acontece por uma evolução, o corpo orgânico também desenvolve-se por etapas a serem cumpridas, cronologicamente, que vai do nascimento à maturidade dos órgãos. Essa idéia de desenvolvimento por fases, com início, meio e fim, encontrará nas crianças/infância grande repercussão, pois, como notaremos, será nesta fase inicial de vida que encontraremos a noção tão cara de desenvolvimento normal. Assim, atrelando-se ambos desenvolvimentos (psíquico e orgânico) como uma idéia de evolução, Piaget conclui:

O desenvolvimento, portanto, é uma equilibração progressiva, uma passagem contínua de um estado de menor equilíbrio para um estado de equilíbrio superior. (1993, p. 11).

Com isso, notamos que há uma diferenciação entre adultos e crianças/infância, já que àqueles encontram-se no topo dos processos de maturação (mental, orgânica, psíquica), enquanto os últimos estão em vias de aquisição das capacidades cognitivo-comportamentais, de forma lenta e processual e correndo-se o risco de “desviar-se” do curso normal das fases de desenvolvimento. Dessa forma, nas palavras do próprio autor: (…) do ponto de vista da inteligência, é fácil se opor a instabilidade e incoerência relativas às idéias infantis à sistematização de raciocínio do adulto. (PIAGET, 1993, p. 11).
E essa aquisição cognitiva de conhecimento realizado pela criança/infâcia faz-se por uma interação desta com o mundo que a rodeia. Ou seja, nesta idéia de aquisição de conhecimentos através de uma interação, podemos concluir: os processos do “pensar” brotam de uma ação sobre um meio, segundo Piaget. Assim é que a inteligência não é nem um fator exclusivamente hereditário, tampouco influenciados apenas pelo meio. Quer dizer, Piaget não é nem inatista, nem empirista exclusivamente: acredita na noção de interação desses dois fatores e que somente assim ocorrerá normalmente o desenvolvimento. Assim, dessa interação entre a criança/infância e um meio (seja ele social ou físico) o Piaget identifica uma necessidade que moveria, então, a crianças/infância a interagir com o meio em questão.
Essa interação não é somente movido por um desejo ou uma vontade individual: para ele há que haver certo desequilíbrio nas forças interativas em que o corpo das crianças/infância encontram-se sob influência. Isso fica claro quando o autor afirma: “Pode-se dizer de maneira geral […] que toda ação – isto é, todo movimento, pensamento ou sentimento – corresponde a uma necessidade” (PIAGET, 1993, p. 14). Quer dizer, manusear um alimento levando-a à boca, seria a expressão das forças que agem de modo retornarem ao equilíbrio inicial: da fome (desequilíbrio) há a interação entre a criança/infância com o alimento.
Piaget, ancorado nestas bases e pautados pelos conceitos de equilíbrio – necessidade – interação com o meio – aquisição de conhecimentos, irá afirmar, então, que se a criança/infância realiza uma ação por uma necessidade, esta será sempre a manifestação de um desequilíbrio, e uma tentativa de retorno ao estado de equilíbrio inicial
Esta manifestação de um processo de desequilíbrio será encarado por Piaget como uma mudança interna ou externa ao organismo (a causa do desequilíbrio), que impulsionará, assim, à busca de algo que restabeleça o equilíbrio de outrora, desencadeando uma necessidade de manipulação ou, nas palavras do autor, necessidade de interação criança/infância com o meio que a cerca. Segundo Piaget:

Comer ou dormir, brincar ou conseguir suas finalidades, responder a perguntas ou resolver problemas, ser bem sucedido na imitação, estabelecer um laço afetivo, sustentar seu ponto de vista, são […] satisfações […] que […] darão fim à conduta específica suscitada pela necessidade. (1993, p. 14).

No entanto, a cada etapa de desenvolvimento que um organismo esteja, suscitará alguns tipos de interesses, mesmo quando confrontados com uma necessidade e o mesmo tipo de objeto de satisfação. Ou seja, as necessidades e os interesses não são universais, irão depender de cada estágio de desenvolvimento atingido por este ou àquele organismo. No entanto, há dois aspectos comuns de necessidades e interesses à todas as idades e que será um fator extremamente relevante na produção de conhecimento pelo autor. Segundo ele:

Pode-se dizer que toda necessidade tende: 1º, a incorporar as coisas e pessoas à atividade própria do sujeito, isto é “assimilar” o mundo exterior às estruturas já construídas, e 2º, a reajustar essas últimas em função das transformações ocorridas, ou seja, “acomodá-las” aos objetos externos. (PIAGET, 1993, p. 15).

Pelos processos de assimilação e acomodação, operando em conjunto com os níveis de aquisições de conhecimentos adquiridos no decorrer dos dias, meses e anos, é que há passagens de níveis menos elevados de conhecimentos e capacidades cognitivas aos mais elevados e complexos. Para Piaget, assimilando os objetos por meio da interação, obtêm-se certa acomodação entre uma ação e um pensamento, isto é, a cada nova ação há um reajuste do pensamento/conhecimento por ocasião de cada variação exterior ao corpo: da ação, erige-se um conhecimento sobre suas causas na relação equilíbrio-desequilíbrio.
Nesse sentido, ainda conforme Piaget pode-se chamar de “adaptação” esse pêndulo constante que oscila entre assimilação e acomodação. Desse modo: “O desenvolvimento mental aparecerá, então, em sua organização progressiva como uma adaptação sempre mais precisa à realidade. (PIAGET, 1993, p. 16).
Após o esclarecimento desses preceitos forjados no interior de sua hipótese, Piaget caracteriza o que seriam as etapas destas adaptações e que seriam comuns aos progressos adquiridos por todos os seres humanos em fases de desenvolvimento.
Dito isso, encontramos nos estudos piagetianos referentes à aquisição da inteligência uma distinção de quatro fases que, reunidas e vividas pelas crianças/infância, conduziriam à fase adulta considerada normal. Segundo o autor, há o chamado período “sensório-motor”, compreendendo crianças/infância de 0 a 2 anos; após, encontramos o segundo período, conhecido por “pré-operatório”, que vai dos 2 aos 7 anos de idade aproximadamente; no terceiro período, Piaget observou e nomeou a fase de “operações concretas”, compreendendo idades que vão dos 7 anos aos 11 ou 12 anos de idade aproximadamente; por último, encontramos o quarto período, a conhecida fase das “operações formais”, abarcando as idade que vão dos 11 ou 12 anos em diante .
Segundo o autor, a descrição dessas fases é uma referência à idéia de que: “(…) a criança começava sendo ‘pré-lógica’, não no sentido de uma diferenciação fundamental entre a criança e o adulto, e, sim, no da necessidade de uma construção progressiva das estruturas lógicas” (PIAGET, 1993, p. 74).
A passagem de um conhecimento inicial denominado “pré-lógico” para o “lógico formal” é o caráter que nos permite afirmar que as crianças/infância estão em vias de se tornar adultos, mas que necessitarão passar pelas fases nomeadas acima para chegarem a esta etapa considerada final por Piaget. Assim, haveria nos processos de interação, aquisição de conhecimentos e passagens para outras, mais complexas que as anteriores, um caráter de educação contínua que fica implícito a este estudo.

Conclusão
Há na psicologia do desenvolvimento uma hegemonia preponderante da razão como forma de obtenção de conhecimento e de mecanização do mundo e do homem. Essa idéia de que o mundo é mecanizado e de que a razão governa o corpo, criou uma racionalidade burguesa ancorada nos ideais positivistas de obtenção e criação de conhecimento, em que tanto o mundo, as ciências e o próprio homem são constituídos por fases evolutivas e progressivas.
De inspiração pós-darwinista, este período foi o de mais profícua na produção de saberes que circulam (ainda hoje) sobre o desenvolvimento das crianças/infância. Alguns desse saberes considerava o período inicial de vida repleto de fases que vão desde a aprendizagem até sua mensuração e adequação aos padrões tidos como “normais” de desenvolvimento biológico e mental, culminando com a consolidação da fase adulta e sua total autonomia social, como acompanhamos.
Por essa vontade de saber que emana das novas ciências positivistas, a vida tornaria-se mecanizada, reprodutível e constante. Daí a enorme necessidade que se criou de instituições de ensino especializadas: aprender as regras sociais passaria, necessariamente, pelas mãos de especialistas (como psicólogos e pedagogos  ). Essa especialização das formas de ensino e aprendizagem tornaram-se efetivas na medida em que o mundo agora era um mundo “letrado”  , de conhecimentos fixos e operacionalizados pelos saberes científicos.
Mais que isso, esses saberes sobre as crianças/infância a constroem, na medida em que são discursos que produzem uma “política das verdades”, amparada na autoridade de saber de seus porta-vozes e articulada com noção de incontestabilidade imanente aos discursos científicos modernos, dada a legitimação na academia e seus postulados com pretensões universais. Em outras palavras: esses discursos sobre as crianças/infância ganham status de efeitos de verdade.
Nesse âmbito, uma criança/infância que requer discursos científicos para se afirmar não é uma criança/infância qualquer: este discurso “revelador” das ciências é fruto de um projeto maior (o projeto da Modernidade) aos quais os saberes científicos estão submetidos e imbricados com uma forma específica de concepção do mundo, numa relação direta com a “verdade revelada”. Nas palavras de Ewald:

A idéia de uma história das verdades não seria significar que estejamos condenados ao erro. Pelo contrário, vivemos de maneira no elemento da verdade. E a verdade não é sem efeito. Ela é produtora de regimes de identidade que são ao mesmo tempo princípios de exclusão. No próprio movimento em que a verdade unifica, ela separa. (EWALD, 1984, p. 92).

Devemos esclarecer que segundo um legado proveniente dos estudos darwinistas às ciências humanas forjadas na modernidade, nota-se uma passagem dos estudos que teriam o homem como eixo central, para conceitos básicos de “natureza”, “organismo” e “evolução”, que passam a ser aplicados à todo estudo da realidade humana a partir de então. Dessa forma, existe uma idéia recorrente de que o homem seria regido pelas mesmas leis que a natureza.
Segundo esta concepção “naturalista”, para se compreender o homem, haveria que se estudar os processos da Natureza, comparando-os. Assim, surgiria uma noção que conferiria às ciências humanas uma almejada concepção sistêmica de homem. Segundo Foucault:

Nessas condições, era necessário que o conhecimento do homem surgisse, com seu escopo científico, como contemporâneo e do mesmo veio que a biologia, a economia e a filologia, de tal sorte que nele se viu, muito naturalmente, um dos mais decisivos progressos realizados, na história da cultura européia, pela racionalidade empírica. (FOUCAULT, 1999, p. 477).

Nesta idéia de Foucault, percebe-se que as ciências humanas pretendiam proceder para a compreensão do homem com os mesmos métodos de investigação das ciências naturais e buscar por uma verdade reveladora o que é ser homem e esta revelação seria a peça-chave para a construção desse novo homem, e assim ele seria desvelado, unificado, numa leitura totalizante de seus comportamentos as quais seriam generalizáveis e previsíveis.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CASTRO, Lúcia Rabelo de; O Lugar da Infância na Modernidade – In: Psicologia: Reflexão e Crítica – Porto Alegre, 1996, v.9, n. 2, p. 307-335.
EWALD, François. O fim de um mundo. In: ESCOBAR, Carlos Henrique; Michel Foucault (1926-1984). O Dossier. Últimas entrevistas – Rio de Janeiro: Taurus Editora, 1984.
FOUCAULT, Michel; As Palavras e as Coisas – Trad. Salma Tannus Muchail – São Paulo: Martins Fontes, 1999.
KASTRUP, V.; O Devir-Criança e a Cognição Contemporânea; Universidade Federal do Rio de Janeiro: Psicologia: Reflexão e Crítica, vol. 13, n. 3, p. 373- 382.
Os Pensadores: Piaget – Trad. Nathanael C. Caixeiro, Zilda Abujamra Daeir e Célia E. A. Di Piero – São Paulo: Abril Cultural, 1983.
PIAGET, Jean;  Seis Estudos de Psicologia – Trad. Maria Alice Magalhães D’Amorin e Paulo Sérgio Lima Silva – Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária, 1993.
SCHULTZ, Duane P.; SCHULTZ, Sydney Ellen; História da Psicologia Moderna – Trad. Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves – São Paulo: Cultrix, 1992.

Publicado em 26/08/2010 11:06:00


Rafael de Oliveira Rodrigues e Soraia Georgina Ferreira de Paiva CruzRafael de Oliveira Rodrigues: psicólogo e mestrando pela Universidade Estadual Paulista – UNESP Assis e bolsista Capes.
Soraia Georgina Ferreira de Paiva Cruz: possui graduação em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (1980), mestrado em Psicologia (Psicologia Social) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1989) e doutorado em Educação pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (2001) . Atualmente é Professora Assistente da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. E-mail para contato: socruz@assis.unesp.br.

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