O CONTO COMO REFERÊNCIA NO TRABALHO PSICOPEDAGÓGICO
Marisa Regina Rost
O CONTO DENTRO DA PSICOPEDAGOGIA Ou
O conto como referência no Trabalho Psicopedagógico
Apontando a razão de ser da educação, veremos que formar leitores significa preparar indivíduos para o exercício da cidadania, o convívio em sociedade e consigo mesmo e a imaginação criadora. Acredito que a leitura de textos literários acrescenta significado a vida do estudante, estimulando a autoestima e valorizando o emocional, na apropriação do sentido e na transferência simbólica de identificação, a partir do texto. Relato aqui parte da Monografia apresentada como requisito para a obtenção do título de especialista em Psicopedagogia Clínica e Institucional.
Este capítulo apresenta reflexões e teorias sobre a aprendizagem e como ela se processa no veículo escolar. O trabalho psicopedagógico busca estabelecer um vínculo entre o conhecimento e a criança em insucesso escolar, trata de despertar o desejo de aprender e de saber, desvendando as dificuldades de cada um. O uso do conto e a significação do mágico e do simbólico que nele atuam serve como ferramenta que facilita o despertar para o desejo e o prazer de aprender. Suas funções terapêuticas e mediadoras podem ser utilizadas tanto no atendimento clínico como institucional, como por exemplo, em sala de aula, à criança em situação de insucesso escolar.
A narrativa literária sustentada pelo conto serve como um apelo à motivação da criança à leitura e à criatividade em produzir textos.
A narrativa ou a leitura de contos tanto o tradicional como os modernos faz brotar nos leitores a imaginação e a busca incansável de elementos no contexto do texto que se assemelhem a sua realidade. Assim surge a referência e a solução de dificuldades no significado do texto literário. Cabe ressaltar que essa referência é encontrada dentro do texto pelo receptor, o ouvinte ou o leitor, o qual se identifica com o momento crucial da narrativa, o que lhe proporciona um envolvimento emocional. Assim, trata-se de atingir a criança em seu desenvolvimento cognitivo, afetivo e comunicativo A psicopedagogia tem como objeto de estudo as dificuldades de aprendizagem, portanto qualquer dificuldade no aprender o sujeito encontra auxílio no trabalho psicopedagógico.
O conto tradicional apresenta conflitos entre heróis e fadas e tenta conciliar essas situações na busca do equilíbrio com a intervenção do maravilhoso pelo casamento ou pela riqueza, então se cumpre o retorno ao real. O trabalho psicopedagógico faz a mediação entre a realidade da criança com o irreal do conto, buscando a reconciliação da criança consigo mesmo e com suas aprendizagens culturais, através do simbólico presente na narrativa, facilitando o acesso ao desejo e ao prazer de aprender.
Este estudo apresenta uma forma de como se pode utilizar o conto no trabalho psicopedagógico, de forma que ele possa ser um referencial na construção de competências que a escola espera da criança e um mediador entre o imaginário e o mundo real, auxiliando na sua valorização e autoestima. Um mediador entre a ficção e a realidade.
Objetiva proporcionar uma reeducação bem-sucedida, com base no trabalho psicopedagógico direcionado com o conto, para tornar possíveis e prazerosos objetos que pareciam fora do alcance e com isso, atingir a renovação do prazer e do desejo de aprender na criança. Digo como objeto o conhecimento a ser adquirido pelo aluno na escola.
1.1Aprendizagem e o trabalho psicopedagógico
Sara Pain (1992, p. 11), postulando fundamentos para a noção de aprendizagem, descreve a “aprendizagem como um processo que se inscreve na dinâmica da transmissão da cultura”, que constitui na definição mais ampla da palavra educação.
Para isto, a autora destaca quatro funções interdependentes da educação, que podem explicar o papel reprodutor social da escola enquanto espaço do processo educativo. A função mantenedora da educação reproduz em cada individuo o conjunto de normas que regem a ação possível, sendo que a conduta humana realiza-se por meio da instância ensino-aprendizagem. A função socializadora transforma o indivíduo em sujeito, quando ele aprende modalidades de ações, regulamentado por normas, que transformam o sujeito em sujeito social, identificado em um grupo. A função repressora conserva e reproduz as limitações que o poder destina a cada classe e grupo social, segundo o papel que lhe atribui na realização de seu projeto socioeconômico. Por fim, a função transformadora da educação, que nas contradições do sistema opera mudanças que se transmitem por meio de um processo que revela formas peculiares de expressão.
Deste modo, o sujeito que não aprende acaba por não realizar alguma das funções sociais da educação, acusando o fracasso da mesma e submete-se a esse fracasso.
Tomando o viés de que a não-aprendizagem constitui um processo diferente da aprendizagem, nos obriga a prestarmos atenção à maneira singular que cada indivíduo tem de assimilar o processo educativo. Seja no aprender ou no não-aprender cada um tem seu jeito de fazer o que achar necessário para alcançar o melhor. Cabe ao psicopedagogo a tarefa de não marginalizar aqueles que fizerem algo diferente do padrão. A exigência de uma ressignificação do saber sobre a aprendizagem de um ser humano que se relaciona num mundo em constante movimento, requer uma proposta do aprender o aprender do outro, que se concretiza num espaço aberto para uma escuta e um olhar clínico para o seu próprio aprender. Essa é uma atitude psicopedagógica profissional, como enfatiza Fernandez (apud BOSSA, 2000, p.24).
Considerando a não-aprendizagem como dificuldade de aprendizagem, sendo uma perturbação que atenta contra a normalidade do processo educativo, seja no nível cognitivo ou afetivo do sujeito, veremos que os problemas de aprendizagem são aqueles que não permitem aproveitamento de suas possibilidades de aprender.
Cabe ao profissional o diagnóstico para poder intervir. Fernandez (1991, p.23) refere-se ao diagnóstico com uma metáfora “o diagnóstico para o terapeuta deve ter a mesma função que a rede para o equilibrista. O equilibrista desta metáfora é o terapeuta, que necessita do diagnóstico para diminuir seu temor ao caminhar”.
Sobre o diagnóstico e o tratamento Sara Paín diz que:
[…] o tratamento começa com a primeira entrevista diagnóstica, já que o enfrentamento do paciente com sua própria realidade, realidade esta que provavelmente nunca precisou se organizar em forma de discurso, o obriga a uma série de aproximações, avanços e retrocessos mobilizadores de um conjunto de sentimentos contraditórios. Os poucos assinalamentos realizados pelo psicólogo para orientar o motivo de consulta e a história vital, bem como as perguntas destinadas a confirmar ou descartar hipóteses plausíveis, chegam a ser para o paciente descobertas deslumbrantes e desencadeadoras de uma série de lembranças e de esquecimentos injustificáveis ( PAÍN, 1992, p.72).
O tratamento psicopedagógico tem um objetivo a ser alcançado, que é a eliminação do sintoma. Para essa finalidade o olhar e a escuta psicopedagógico precisam estar afinados e atentos às pressões internas e externas do profissional para o paciente. É necessário que durante o processo diagnóstico o terapeuta faça terapia pessoal como recurso para o atendimento psicopedagógico. Para que possa agir sem interferências emocionais no processo do diagnóstico.
Paín (1992, p.28) considera o problema de aprendizagem como um sintoma, ”no sentido de que o não aprender não configura um quadro permanente, mas ingressa numa constelação peculiar de comportamentos, nos quais se destaca como sinal de descompensação”. Podemos entender esse sintoma como não – aprendizagem, ou ainda uma dificuldade de aprendizagem, que se configura no modo como a criança consegue ser ouvida no seu grupo social. É como um fio que se desenrola e se perde do eixo. Para que se estabeleça novamente será preciso uma investigação e um tratamento acompanhado de intervenção psicopedagógica. A autora destaca quatro fatores fundamentais que devem ser levados em consideração no diagnóstico de um problema de aprendizagem. Os fatores orgânicos, que está na integridade da anatomia e de funcionamento dos órgãos do sistema nervoso central; os fatores específicos que são ligados a lateralidade do sujeito; os fatores psicógenos, que estão ligados ao modo como é captado pelo ego a operação de aprender, a inibição do significante; e por fim os fatores ambientais que se referem mais diretamente sobre os problemas escolares da criança, o meio em que ela vivencia o conhecimento. Partindo dessa perspectiva multifatorial, é necessário que se investigue os dados para compreender o significado, a causa de dificuldade que em cada caso motiva a procura assistencial (PAÍN,1992,p.29-33)
Um das principais causas da reprovação escolar tem sido destacado como sendo a dificuldade de aprendizagem de algumas crianças, ou seja, a criança que não acompanha o processo escolar com sucesso para muitos dos envolvidos, deve ter um problema. Então, a escola transfere o problema para o psicopedagogo. A questão não é simples, como descreve Sara Pain “é necessário uma investigação diagnóstica para que se possa ajudar essa criança a redescobrir ou descobrir o desejo e o prazer de aprender”(1992, p.28).
É nesta busca de descobrir ou redescobrir o desejo e o prazer de aprender que o trabalho com o conto vai estabelecer um vínculo entre o desejo e o objeto de estudo que é o aprender. Buscando mediar o real e o imaginário. A seguir será aprofundado o estudo da leitura literária do conto, destacando-se não só o conto de fadas, como também o conto contemporâneo infantil.
1.2 Leitura Literária e o conto
Richard Bamberger (1977, p.12) apresenta o conceito do ato de ler definida por pesquisa, como “um processo mental de vários níveis, que muito contribui para o desenvolvimento do intelecto”. Acrescenta que o ato de ler em voz alta desperta no ouvinte a expectativa para que continue lendo e para que queira ler por si mesmo. A arte de contar histórias na escola estabelece um vínculo entre aquele que conta e aquele que ouve, permitindo que a emoção provocada pela história entre em comunicação com as crianças.
A aquisição da leitura perde seu valor quando o que se aprendeu, ou o que se lê não acrescenta nada de importante à nossa vida. É a busca incansável do significado que já, na mais tenra idade, a criança deve aprender, à medida que se desenvolve, a se entender melhor, no auto-conhecimento, identificando-se com as situações, para poder relacionar-se melhor com o outro e com o conhecimento atingindo o significante de forma significativa.
Sobre a importância dos contos de fada sua leitura e seu significado, Bruno Bettelheim afirma que:
Estas histórias falam ao ego em germinação e encorajam seu desenvolvimento, enquanto ao mesmo tempo aliviam pressões pré-conscientes e os contos transmitem importantes mensagens à mente consciente, a pré-consciente, em qualquer nível que esteja funcionando no momento. Lidando com problemas humanos universais, particularmente os que preocupam o pensamento inconsciente. (BETTELHEIM, 1980, p.13).
O autor em sua experiência como terapeuta e educador no trabalho com crianças gravemente perturbadas afirma que sua tarefa principal foi a de restaurar um significado na vida delas. Assim explica:
Para mim este trabalho deixou claro que se as crianças fossem criadas de um modo que a vida fosse significativa para elas, não necessitariam ajuda especial. Fui confrontado com o problema de deduzir quais as experiências na vida infantil mais adequadas para promover sua capacidade de encontrar sentido na vida; dotar a vida em geral de mais significados. Com respeito a esta tarefa, nada é mais importante que o impacto dos pais e outros que cuidam da criança; em segundo lugar vem nossa herança cultural, quando transmitida à criança da maneira correta. Quando as crianças são novas é a literatura que canaliza melhor este tipo de informação. (BETTELHEIM, 1980, p.12)
O autor acrescenta que a criança está exposta à sociedade em que vive e assim sujeita a aprender a enfrentar a realidade com as condições que lhe são própria, desde que seus recursos interiores o permitam. De modo que suas emoções, imaginação e intelecto se ajudem e se aprimorem mutuamente. Ele reforça que:
Para ser bem sucedida nesse aspecto, a criança deve receber ajuda para dar sentido coerente ao seu turbilhão de sentimentos. Necessita de idéias para colocar ordem em sua casa interior, e com base nisso ser capaz de colocar ordem na sua vida. Necessita – e isto mal requer ênfase nesse momento da nossa história – de uma educação moral que de modo sutil e implícito, conduza-a as vantagens do comportamento moral, não através de conceitos éticos abstratos, mas daquilo que lhe parece tangivelmente correto, e, portanto significativo. (BETTELHEIM, 1980, p.13).
Nesse aspecto a criança pode ganhar com a experiência da leitura de textos literários, tendo acesso ao significado e ao que é significativo no seu estágio de desenvolvimento. Bettelheim enfatiza que “para que uma história realmente prenda a atenção de uma criança, deve entretê-la e despertar sua curiosidade”. Mas se é para realmente ter valor significativo na sua vida, essa ajuda deve proporcionar estimulo a criança. Esse estímulo enfatiza Bettlheim encontra-se na leitura de contos de fadas. A leitura deve estimular-lhe a imaginação da criança e ajudá-la a desenvolver seu intelecto, tornando claras suas emoções e também deve estar harmonizada com suas ansiedades e aspirações.
Sabe-se que a leitura do conto desde o surgimento da Literatura Infantil, no século XVIII, se constitui na sua forma, a preferência da maioria. A extensão curta e estrutura simples do gênero tornam sua leitura agradável e apropriada para os leitores iniciantes, e parte do sucesso que os contos de fada alcançam ainda hoje se deve a esses dois fatores.
Também entre os leitores adultos o conto tem demonstrado enorme força, já que sua origem pode ser rastreada até os princípios da literatura, estando presente em todas as épocas e civilizações. E se até o século passado era considerado um gênero menor, hoje, é consagrado definitivamente.
Portanto, é visível o motivo que leva os leitores juvenis e infantis na escolha do conto e por isso ele ocupa lugar privilegiado dentro da literatura.
Bamberger salienta que “o jovem leitor lê não porque reconhece a importância da leitura, mas por várias motivações e interesses que correspondem à sua personalidade e ao seu desenvolvimento intelectual”(1997, p.34). Os interesses dos jovens são reflexos do mundo que os rodeia, e por isso interferem em seu modo de vida, e isso, por sua vez, poderá influenciar nas suas escolhas de leitura.
O que parece ser fundamental no desenvolvimento da leitura é saber o que deseja o leitor. Os impedimentos quanto ao ato de ler ou de práticas de leituras nem sempre são de natureza cognitiva, que diz respeito à capacidade de aprender a ler, muitas vezes, têm relação com o desejo de aprender. Estando, assim, a leitura diretamente relacionada com a valorização do estudante e com sua autoestima. Nesse contexto o conceito de autoestima se refere à qualidade de quem se valoriza de quem se contenta com seu modo de ser e demonstra confiança em seus atos.
Alinhavando-se uma ideia a outra, parece ser tanto na dificuldade para valorizar-se como no despertar para o desejo de aprender que a literatura vem auxiliar no insucesso escolar.
A leitura literária na instituição escolar como constata Barthes (1980, p.18) “Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto uma, é a disciplina literária que deveria ser salva, pois todas as ciências estão presentes no monumento literário”. Sinaliza que a literatura deve ser colocada em destaque no currículo escolar e em acesso dos jovens leitores. É preciso que os professores resgatem a paixão que os textos literários permitem aos leitores, mas para que isso aconteça o mediador deve ser o próprio professor. Enfim, é na paixão dos mestres que os pupilos se espelham.
A importância da obra literária está no ato de ler que encerra toda a complexidade do texto, ou seja, é adentrando nas páginas do livro que o leitor processará os conhecimentos do contexto do texto com o seu contexto de mundo. O leitor só seguirá lendo se o texto atingir o ápice da sua imaginação. E nesse entorno, reflete-se o elemento mágico da literatura, que é o simbólico atraindo o real. É o encantamento proporcionado pelo texto que auxilia o leitor a enfrentar a sua realidade, a emoção e o conhecimento se unem para no tempo histórico melhorar a identidade do ser.
A leitura vai além da interação texto e resposta para ser a busca do significado contido no texto. Nessa leitura a criança pode construir respostas significativas e descobrir o prazer de ler, apropriando-se do conhecimento comunicativo contido no texto. A seguir apresento dados e teorias da estrutura do conto por ser importante conhecimento prévio para o profissional que desejar utilizar o conto como recurso psicopedagógico.
1.3 Estrutura do conto
O conto é uma narrativa curta e de rápida leitura para o entendimento do leitor. Os elementos composicionais da narrativa estão voltados para objetivos bem determinados, trata de uma situação específica e não de várias, pois quer que o leitor alcance seu desfecho, que coincide com o clímax da história, com o máximo de tensão e o mínimo de descrições.
Constitui-se de três partes perfeitamente diferenciadas, apresenta um estado inicial de equilíbrio, segue com a aparição de um conflito, que dá origem a uma seqüência de episódios, e geralmente, encerra com a resolução desse conflito, finalizando com a retomada do equilíbrio perdido. Refiro geralmente porque em alguns contos modernos ou contemporâneos a seqüência pode estar invertida, por exemplo, começando pelo conflito e depois relatando como era a situação inicial. Todo conto apresenta ações centrais que estabelecem entre si uma relação causal, cuja função é manter o suspense. Utiliza uma linguagem descritiva para a apresentação dos personagens, das quais o diálogo é freqüente com sinais indicativos. O tempo e o espaço são aspectos importantes para que o leitor situe a história dentro da trama narrativa.
Essa forma narrativa possui as suas próprias leis internas, que a singularizam diante das outras formas narrativas.
Um bom conto é a Glória! Toda a literatura começa com o conto. O conto resulta de uma necessidade básica das pessoas, que é a de contar histórias. Quando alguém se aproxima de nós e diz:” Você não imagina o que me aconteceu hoje”, ou então “Isto me lembra uma coisa que me ocorreu quando era criança”– podemos ter certeza de que ali há um conto em potencial, como também em uma notícia de jornal, em uma cena de rua, em um sonho, até.Os relatos dos povos antigos são contos. Trechos da bíblia são também contos. E as crianças adoram as histórias que os pais narram na hora que elas têm que ir para a cama. As histórias podem ser narradas de maneira mais longa ou mais curta. Quando se trata de um personagem, ou de poucos personagens, e quando há um acontecimento central, de preferência com um final surpreendente ( ou pelo menos que faça pensar), então estamos diante de um conto. Particularmente, comecei como contista, talvez influenciado pelos meus pais, que eram grandes contadores de histórias – e que também me estimularam muito a ler. Tiro material para meus contos de qualquer lugar – de notícias para jornal, de histórias que ouço, de personagens que conheço, ou da simples imaginação. O conto é um gênero extremamente fascinante. E é um desafio. Acho o conto uma grande forma literária. […] Agora, quando há uma boa idéia, e quando o próprio escritor se emociona com o que está fazendo, aí o conto é a glória! ( SCLIAR, 2002, p.61)
Nesta citação supracitada Scliar dá um depoimento sobre o gosto e a paixão de escritor de contos, que faz pensar na importante tarefa de contar ou narrar fatos e também remete ao momento da gênese do conto. Tarefa absorve e surge a partir das narrativas religiosas e mais tarde com elementos oriundos do folclore. A fonte mais rica de enredos populares e folclóricos está presente nos contos de fadas e fábulas. Proveniente dessas narrativas orais, que faziam parte das rodas de amigos e parentes, surge a “hora do Conto”, que nada mais é que contar histórias para crianças pequenas da educação infantil. Nesta atividade pode-se conhecer o fascínio que as histórias exercem sobre as crianças, como veremos na próxima parte.
1.4 O Ato de narrar
É no ato de narrar que o ser humano toma conhecimento de tudo que o cerca, é na interlocução de estar ouvindo um fato que a comunicação acontece. Contar histórias é uma ação humana. Quando as pessoas se dispõem a ouvir ou relatar histórias, transitam pelo mundo maravilhoso da imaginação e relatam junto com os fatos a emoção, e assim aproximam o ouvido atento do parceiro, que recebe com atenção e entusiasmo a narrativa. E nessa interlocução sente-se a mágica da ficção.
Quando um professor em sala de aula vivencia a experiência de contar histórias, olhando diretamente nos olhos das crianças, deixando fluir expressões de gestos e palavras, pode sentir a presença do ouvinte na atenção presa a sua pessoa. E provavelmente, mais gratificante será ouvi-los pedir a repetição da história e de muitas outras também.
Na verdade o ‘contar’ na escola não se improvisa e exige um verdadeiro conhecimento do ritual. Sobretudo porque o contador pedagogo é às vezes a única pessoa que mantém viva, junto à criança, a prática do conto, já que, inclusive no meio rural, os contadores noturnos desapareceram definitivamente e foram substituídos pela televisão. É preciso, portanto, preparar-se para contar, da mesma maneira que se preparam as outras atividades da classe. (GILLIG, 1999, p.84).
O autor defende que, hoje, numa época em que o livro infantil assume por si próprio um lugar relevante dentro da Literatura, a utilização do livro no “contar” sustenta a aproximação do ouvinte, no caso, a criança, com o livro e ajuda para que depois possa procurar pelo livro e ler prazerosamente. Sobre este aspecto do uso do livro no contar os autores confirmam:
Utilizo o livro de histórias com um objetivo preciso: promover também um encontro e uma relação entre a criança e o objeto livro. Essa relação baseada no prazer de desejar me parece importante, até mesmo fundamental com algumas crianças, na perspectiva de servir-se do conto para abrir não apenas as portas do imaginário, mas também as da cultura. O grande prazer provocado pela escuta de um conto tem suas raízes no imaginário. Trata-se da apropriação que a criança faz da palavra do contador, dando sentido a ela e integrando-a em seu universo pessoal psicoafetivo. Mas o escrito do conto também está no imaginário, é simbolizado pelo código convencional alfabético, cuja porta de acesso pode ou não suscitar o desejo de nele penetrar. ( GILLIG, 1999, p.86)
Um bom contador não deve constranger-se com o livro de histórias e utilizá-lo como acessório na sua arte do “contar”. Como ressalta o autor “é importante a presença do conto escrito no “contar” como vetor de transmissão do objeto do desejo/prazer do imaginário para o cultural”(GILLIG,1999, p.85). E também enfatiza que o objeto transicional é o conto escrito, pois a criança pode apalpar manipular, sentir primeiro pelos sentidos, ou seja, integrá-lo em si, apropriar-se dele.
Sobre o trabalho de literatura dentro da sala de aula, especificamente de contar histórias, Amarilha afirma que:
[…]a totalidade dos professores reconhece que ao anúncio de uma história “as crianças se aquietam, concentram-se e ficam extremamente interessadas”. Percebe-se, portanto, que a história, lida ou contada, desempenha uma função catalisadora de interesse e prazer. Ora, se as crianças se mobilizam é porque o mundo organizado na narrativa corresponde a seus interesses e anseios e, por conseguinte, é significativo para elas. (AMARILHA, 2001, p.18)
A autora enfatiza que “do ponto de vista da linguagem de ficção” (2001, p.18) o conto focaliza um momento crucial da história de um personagem com dramaticidade densa e breve para prender a atenção do ouvinte. Sendo assim a função organizadora dos fatos dentro da narrativa, é provavelmente o elemento mais engajado da mesma.
Ao narrar oralmente, o professor está fornecendo à criança a possibilidade de ampliar sua capacidade de antecipação sobre as estratégias da linguagem literária e da construção de sentido. [..] É conveniente lembrar que dominar o processo de antecipação corresponde a desenvolver a expectativa adequada sobre as convenções da linguagem e esta é uma habilidade necessária ao leitor. (AMARILHA, 2001, p.21)
Da mesma forma que a alfabetização representa uma construção de sentido que leva a criança ao mundo convencional dos signos e símbolos, a narrativa estabelece a expectativa de ampliar as estratégias de organização e construção de sentido pelo leitor infantil, antecipando a busca do significado no seu mundo interior.
É relevante lembrar que a oralização tem a finalidade de enriquecer a bagagem antecipatória do leitor, buscando familiariza-lo com as estratégias da narrativa, por conseguinte, com as convenções da escrita. Sendo lido ou narrado, o repertório de histórias disponíveis nas escolas já está devidamente preservado pela escrita. Essa prática, portanto, pode de fato introduzir a criança na leitura da literatura […]. (AMARILHA, 2001, p.22)
Para que o momento do “contar” seja bem receptivo tanto na sala de aula como no consultório, o ambiente deve estar previamente organizado, acolhedor e confortável, uma vez que a atividade pretenda despertar o desejo e o prazer nas crianças. É necessário um canto de leitura com quadros, fotos, livros, cortinas, enfim para que o profissional tenha sua voz elevada no silencio do ambiente. Assim, a criança poderá depreender do que ouve o sentido e o significado, apropriando-se do imaginário para por meio do simbólico atingir sua realidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BAMBERGER, Richard. Como incentivar o hábito da leitura. Tradução de Octávio Mendes Cajado. 1ª ed. São Paulo: Colares, 1977.
BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Colares, 1980. (p.18).
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos Contos de Fadas. Tradução de Octávio Mendes Cajado. 11ªed. São Paulo: Paz e Terra, 1980.
BOSSA, Nadia. Psicopedagogia no Brasil. 2ª ed. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000.
FERNANDES, Alicia. Inteligência Aprisionada. Abordagem psicopedagógica clínica da criança e sua família. Tradução de Iara Rodrigues. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
GILLIG, Jean-Marie. O Conto na psicopedagogia. Tradução: Vanise Dresch. Porto Alegre: Artmed, 1999.
PAIM, Sara. Diagnóstico e Tratamento dos problemas de aprendizagem. Tradução de Ana Maria Netto Machado. 4ªed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.
SCLIAR, Moacyr. Literatura em Minha Casa. v 2. Contos da Escola. São Paulo: Ática, 2002.
SOLÉ, Isabel. Estratégias de Leitura. 6ªed. Porto Alegre: Artmed, 1998.
TERZI, Sylvia Bueno. A Construção da Leitura: uma experiência com crianças de meios iletrados. 3ªed. São Paulo: Pontes, 2002.
WEISS, Maria Lúcia Lemme. Psicopedagogia Clínica: uma visão diagnóstica dos problemas de aprendizagem escolar. Rio de Janeiro: DP&A, 1997.
Publicado em 04/07/2010 13:48:00
Marisa Regina Rost – Licenciada em Letras, especialização em psicopedagogia Clínica e Institucional
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