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O BRINCAR E A CRIANÇA: IMPLICAÇÕES DA TEORIA DE JEAN PIAGET

Ernany Santos de Almeida

RESUMO
Através dos estudos de Piaget, podemos perceber a importância do jogo para o processo de ensino e aprendizagem. Nesse contexto o jogo é considerado como uma importante atividade na educação de crianças, uma vez que lhes permitem o desenvolvimento afetivo, motor, cognitivo, social e moral, e a aprendizagem de conceitos. Neste artigo, destacaremos os estudos e pesquisas sobre o brinquedo de Jean Piaget e suas respectivas contribuições na área educacional, com o objetivo de enfatizar como se processa na idade escolar a relação entre a ludicidade e a aprendizagem, a afetividade e a socialização. Esperamos que este artigo não sirva simplesmente como mais um trabalho acadêmico, mas como um instrumento de pesquisa capaz de despertar em nós, estudantes e profissionais da educação, uma reflexão a respeito da importância da prática da ludicidade no desenvolvimento da aprendizagem do indivíduo.

Palavras-chave: lúdico, teoria construtivista, criança.

ABSTRACT
Through Piaget’s studies, we can perceive the importance of the game for the teaching and learning process. In this context the game is considered like an important activity in the children’s education, once it allows them the affectionate, motor, cognitive, social and moral development, and the learning of concepts. In this article we will emphasize the studies and researches about Jean Piaget’s toy and his respective contributions in the educational area, aiming to emphasize how the relation between ludicity and learning, affection and socialization happens. We hope this article is not only another academic paper, but mainly a research tool able to lead us, students and professionals of education, to a reflection concerning the importance of the ludicity practice in the development of the individual’s learning.
 
Keywords:  Ludic, constructivist theory, child.

PIAGET E SUA OBRA: BREVES CONSIDERAÇÕES
Jean Piaget nasceu em Neuchâtel, Suíça, em 09 de Agosto de 1896. Estudou Ciências Naturais e, depois de formado, dedicou-se principalmente ao estudo sistemático da evolução mental. Seu interesse voltou-se para a Psicologia e Filosofia e suas pesquisas tornaram-se famosas em todo o mundo. Alguns de seus postulados já tiveram avanços com a teoria de Vygotsky, porém é importante ressaltar a questão de que os referenciais de ambos se completam.
As conclusões do psicólogo Jean Piaget sobre a evolução da inteligência infantil provocaram uma revolução nos antigos conceitos relacionados à aprendizagem e à educação. Com ele, restaura-se no processo de aprendizagem, a primazia da inteligência que as teorias mecanicistas  haviam negado ao reduzirem a educação à uma aquisição automática de reflexos e de hábitos, onde não existia a menor participação da atividade espontânea, livre e criadora.
Assim, destacou-se entre os estudiosos que preconizaram o respeito à liberdade e à individualidade da criança, defendendo um sistema educativo menos diretivo, menos autoritário e uniforme para o qual a educação devia ajustar-se às leis e etapas do desenvolvimento psicológico da criança.
Graças a seus estudos sobre o desenvolvimento intelectual, devemos a esse pesquisador as informações sobre o processo que fundamenta o progresso do raciocínio humano, que é o movimento dinâmico que conduz desde as primeiras adaptações sensório-motoras até o funcionamento da inteligência em seus níveis mais elevados.
Segundo suas pesquisas, a inteligência é uma qualidade que se expressa pela maneira como o indivíduo se adapta ao meio e o processo de aprendizagem caracteriza-se por modificações, descobertas e inventos a partir da construção de sistemas significativos. Dessa forma, Piaget salienta que a criança está sempre criando e recriando seu próprio modelo de realidade e desenvolve-se mentalmente ao integrar conceitos mais simples em conceitos de nível mais elevado.
(…) o desenvolvimento mental é uma construção contínua, comparável à edificação de um grande prédio que à medida que se acrescenta algo ficará mais sólido, ou à montagem de um mecanismo delicado, cujas fases gradativas de ajustamento conduziriam a uma flexibilidade e uma mobilidade das peças tanto maiores quanto mais estável se tornasse o equilíbrio (PIAGET, 1969, p. 12).

Piaget explica que o conhecimento é construído de forma contínua e progressiva, através da interação do indivíduo com o meio. Ressalta que essas interações são ativas e dinâmicas, pois o ser não só age e reage sobre o meio como também, este sofre e exerce pressão sobre o sujeito, constituindo um equilíbrio entre tais trocas.
Nesse processo contínuo de trocas, o sujeito vai adquirindo “estruturas mentais”, ou seja, “esquemas de ação” ou “padrões de pensamento” que determinam a possibilidade de atuar sobre o mundo e a capacidade de compreendê-lo. Logo, o sujeito conhece o mundo através de estruturas mentais.
Esses esquemas de ação que a criança tem a sua disposição proporcionam a incorporação de novos dados do mundo exterior às suas atividades, gerando o desenvolvimento mental. “O desenvolvimento mental aparecerá, então, em sua organização progressiva como uma adaptação sempre mais precisa à realidade” (PIAGET, 1969, p. 16).
Dessa forma, para Piaget, a própria criança constrói o seu conhecimento a partir de conhecimentos anteriores, desde que suas estruturas mentais estejam prontas para relacioná-los, organizando-os de tal modo que chegue a construir um conceito novo ou ampliar um conceito anteriormente construído.
Segundo o pesquisador suíço, para conhecer um objeto é preciso agir sobre ele. Daí ocorre o que ele chama de processo de acomodação, que se dá quando a criança assimila novos conhecimentos por meio do “agir sobre eles”. Ou seja, é a partir da ação sobre o objeto do conhecimento que se produzirá o saber .
Isso representa que o processo de desenvolvimento da inteligência só se efetivará quando a criança compreender a significação dos conhecimentos e hábitos adquiridos, já que a aprendizagem implica sempre discriminação e compreensão daquilo que se aprende. O saber tem de ser construído e reconstruído a partir da ação da criança, da sua atividade, da sua interação consigo mesma, com o outro, com o meio, em situações concretas, pois conhecer não é apenas possuir uma cópia mental do objeto, mas modificá-lo, descobri-lo, inventá-lo, transformá-lo, compreendendo o processo de sua transformação.
Portanto, como diz Piaget, a simples vivência, a simples interação da criança com o meio não garantem que os conceitos sejam construídos. É preciso que ela reflita sobre a ação feita.
Nesse sentido, se o educador compreende que o conhecimento não deriva diretamente das percepções e entende que o saber se constrói na proporção direta das ações e interações, logo ele criará um ambiente e uma atmosfera de trabalho, nos quais as crianças sejam ativas e, conseqüentemente, reflitam sobre suas atividades.
Em razão disso, acreditamos que essa reflexão pode ser feita através de jogos e brincadeiras realizadas com as crianças, nas quais os conceitos vão sendo elaborados pouco a pouco, haja vista, que tais atividades, por serem essencialmente ativas desenvolvem a natural capacidade de aprender, inerente à criança. Por meio de jogos e brincadeiras, as crianças vão elaborando aos poucos vivências que já tiveram e, então, poderão ir construindo os conceitos espontaneamente.
O próprio Piaget constatou que a atividade da criança na construção das operações  destaca a importância do jogo como trabalho cooperativo, considerando seu efeito sobre a formação do pensamento e sobre o desenvolvimento intelectual. Para ele, a manipulação de objetos (brinquedos) pelo sujeito, a experiência do concreto, em qualquer nível do desenvolvimento, atuam sobre a vida intelectual, na medida em que desencadeiam um processo de pensamento operatório, ocasião em que a criança constrói os conceitos permanentes de espaço, tempo, relações, classes, combinações e outros (RICHMOND, 1981, p.72).
Além disso, Piaget chama a atenção em particular, para a importância das trocas interindividuais que se processam durante os jogos através da confrontação de pontos de vista, considerando essa ocorrência indispensável para a elaboração do pensamento lógico.
Em linhas gerais, Piaget nos faz compreender que pela ação lúdica, a criança explora o ambiente, experimenta-o concretamente, desencadeando o seu desenvolvimento intelectual, sócio-afetivo e psicomotor. Com isso, nos conduz a uma importante conseqüência prática de sua teoria: a aprendizagem se dá pelo relacionamento ativo da criança com o meio e o jogo, por ser essencialmente ativo, contribui para o seu desenvolvimento integral.
Portanto, na concepção piagetiana, verificamos a importância atribuída ao jogo infantil. Jogando a criança apreende o mundo e se expressa, recriando-o segundo o seu nível de desenvolvimento. Por isso, nos ensina Piaget, a criança aprende brincando, “(…) o jogo constitui o pólo extremo da assimilação do real ao eu” (1978, p. 207).

A EVOLUÇÃO DO JOGO NA CRIANÇA
Como vimos, o processo de desenvolvimento, segundo a teoria de Piaget, leva gradativamente a criança a uma adaptação cada vez maior ao ambiente. A adaptação começa com os primeiros reflexos  do recém-nascido e progride estágio por estágio até chegar ao raciocínio adulto.
Este processo de desenvolvimento é influenciado pelos seguintes fatores: maturação física e do sistema nervoso; exercitação (capacidade de experimentação, de manipulação, de movimentos e de pensamentos sempre em situações concretas); aprendizagem social (interação social no trabalho, na conversa, no jogo com outras crianças e com os adultos) e equilibração, reunindo maturação, experiência e socialização para a construção e reconstrução das estruturas mentais (RICHIMOND, 1981, p.120).
A passagem de um estágio para outro depende destes fatores e acontece graças à contínua atividade criadora da criança em relação ao seu próprio corpo, aos objetos e às pessoas que a rodeiam.
A criança, ao passar pelos vários estágios de desenvolvimento, vai adquirindo novas habilidades que enriquecem o conjunto de suas habilidades anteriores. Seu pensamento vai se tornando cada vez mais complexo e flexível, até atingir o potencial máximo que é do estágio das operações formais.
A respeito dos estágios, Piaget (1969, p. 15) faz a seguinte afirmativa: “Cada estágio é caracterizado pela aparição de estruturas originais, cuja construção o distingue dos estágios anteriores. O essencial dessas construções sucessivas permanece no decorrer dos estágios ulteriores, como subestruturas, sobre as quais se edificam as novas características”.
Os estágios seguem uma seqüência que é sempre a mesma (construtivismo seqüencial). No entanto, as idades em que se alcançam esses estágios variam bastante, pois dependem da motivação, das experiências e do meio cultural da criança. Uma criança pode ter a idade correspondente a um determinado estágio, mas não se encontrar nele por não apresentar as aquisições que o caracterizam.

Piaget distingue três estágios principais no desenvolvimento da inteligência:

– Sensório – motor
– Das operações concretas
– Das operações formais

Durante a evolução desses estágios, Piaget (1978, p. 148) verificou a existência de três tipos de estruturas que caracterizam o jogo infantil (o exercício, o símbolo e a regra), os quais segundo ele, aparecem sucessivamente em consonância com as fases do desenvolvimento cognitivo da criança. Assim sendo, ele distribui os jogos em três grandes categorias, cada uma delas correspondendo a um tipo de estrutura mental:
– Jogo de exercício sensório – motor
– Jogo simbólico (de ficção, ou imaginação, e de imitação).
– Jogo de regras.

Estas atividades lúdicas foram observadas por Piaget em seus filhos Jacqueline, Lucienne e Laurent e em outras crianças que conviviam com eles.
Piaget relatou suas observações em várias oportunidades, especialmente nas obras “A formação do símbolo na criança” (1978) e “Os seis estudos de psicologia” (1969), as quais servem de base, para identificarmos a seguir, as principais características dos jogos apontados por Piaget e sua evolução nos diferentes estágios do desenvolvimento mental da criança.

O JOGO DE EXERCÍCIO SENSÓRIO-MOTOR.
No estágio sensório-motor, que vai do nascimento ao momento em que se inicia a linguagem (0 a 2 aproximadamente), a criança estabelece relações com o ambiente através de percepções e movimentos. O próprio nome sensório-motor origina-se de percepção (sensório) e movimento (motor). A partir de reflexos neurológicos básicos, o bebê começa a construir esquemas de ação para assimilar mentalmente o meio. A inteligência é prática. As noções de espaço e tempo, por exemplo, são construídas pela ação. O contato com o meio é direto e imediato, sem representação ou pensamento. Como conseqüência, surge então, o jogo de exercício, também conhecido como jogo prático ou brinquedo funcional, que não tem outra finalidade se não o próprio prazer do funcionamento.
No início, o bebê brinca com o seu próprio corpo: faz movimentos com as pernas, os braços e os dedos; balbucia; agarra e sacode objetos, mostrando grande prazer nesses brinquedos motores. Observando tais condutas, Piaget constatou que a repetição incessante das mesmas tem o objetivo de realizar o prazer de exercitar estruturas já aprendidas, o que dá à criança a sensação de eficácia e poder.
Esses exercícios motores consistem na repetição de gestos e movimentos simples, com um valor exploratório. Por exemplo, a criança atira um brinquedo à distância e ouve seu ruído. Repete isto várias vezes, pois a ação lhe é agradável. A criança estica as pernas para atingir com pontapés um boneco suspenso sobre o berço, a fim de vê-lo dançar.
Piaget atribui a origem desses jogos de exercícios à imitação que surge da preparação reflexa. Imitar consiste em reproduzir um objeto na presença do mesmo. É um processo de “(…) assimilação funcional ou exercício no vazio, acompanhadas do prazer de ser causa ou de um sentimento de poderio” (1978, p. 149).
Por volta de um ano, o desenvolvimento da criança permite maior exploração e experimentação do meio ambiente. O jogo funcional, em que a criança busca apenas satisfação sensorial, começa a se transformar num jogo de habilidades à medida que ela começa a conhecer e usar objetos. Quando, por exemplo, lhe dão um brinquedo novo, usa-o, experimentando o brinquedo e seus esquemas. Ela deixa cair um objeto apara observar a sua queda, traz os brinquedos até si, puxando pelos cordões, e usa outros instrumentos para empurrar ou atrair objetos.
Com um ano e meio, a criança está no final da fase sensório-motora e seu pensamento se caracteriza pelo aparecimento da capacidade de reagir e de pensar sobre objetos e acontecimentos que não pode observar imediatamente, assim como inventar novos meios para atingir os objetivos. Contudo, a prática dos jogos de exercício não será abandonada nas fases seguintes. A cada nova aprendizagem eles voltam a ser utilizados, até mesmo na vida adulta. Esta forma de jogo não objetiva a aprendizagem em si, mas a formação de esquemas de ação, de condutas, de automatismo, necessários ao bom desempenho do indivíduo.

O JOGO SIMBÓLICO
Entre os 18 e 24 meses, as atividades sensório-motoras começam a tomar um novo aspecto: o da representação. Começa aí o estágio pré-operatório  (2 a 7 anos aproximadamente), com o qual surge também o jogo simbólico ou egocêntrico. A criança começa a manipular simbolicamente seu universo, por meio de representações internas ou pensamentos sobre o mundo exterior. Ela aprende a representar os objetos por meio de palavras e manipular mentalmente as palavras, tal como anteriormente manipulara os objetos físicos.
A criança torna-se capaz de evocar situações passadas e antecipar situações futuras. No início desse estágio, é muito comum a criança representar situações de jogos simbólicos em que ela faz de conta que lê ou telefona, copia modelos e, na cópia, é preciso usar gestos já aprendidos, mas separando gestos que anteriormente lhe eram contíguos. Quando a criança se vê capaz de imitar outrem, quer representar sucessivamente diferentes papéis – ela é ela própria e aquele com quem brinca.
Esse tipo de jogos caracteriza-se pela assimilação deformante (Piaget, 1945), porque nessa situação a realidade é assimilada por analogia, como a criança pode ou deseja. Isto é, os significados que ela atribui aos conteúdos de suas ações, quando joga, são deformações dos significados correspondentes na vida social ou física. Em outras palavras, os significados das brincadeiras podem ser, por intuição, inventados pela criança. Essas construções realizadas nos contextos dos jogos simbólicos e as regularidades adquiridas nos jogos de exercício serão fontes das futuras operações mentais. Isso favorece a integração da criança a um mundo social cada vez mais complexo.
Enfim, através dos jogos simbólicos a criança está se desenvolvendo intelectualmente; está consolidando a capacidade de simbolizar  situações que são a base do desenvolvimento da linguagem. Para Piaget, o jogo simbólico é uma forma de a criança pré-exercitar a sua imaginação, concebida como uma faculdade a desenvolver a maneira da inteligência.
A brincadeira de faz-de-conta, em que a criança interpreta cenas da vida cotidiana, é a atividade preferida numa fase em que ela confunde os dados da realidade com a fantasia: julga que pode influir magicamente sobre os fatos com a sua vontade, representa a realidade como desejaria que fosse, substituindo e corrigindo experiências desagradáveis ou frustrantes.
 Assim, a função dos jogos simbólicos, de acordo com Piaget (1969, p. 29) consiste em:
(…) satisfazer o eu por meio de uma transformação do real em função dos desejos: a criança que brinca de boneca refaz sua própria vida, corrigindo-a à sua maneira, e revive todos os prazeres ou conflitos, resolvendo-os, compensando-os, ou seja, completando a realidade através da ficção. Em suma: o jogo simbólico não é um esforço de submissão do sujeito ao real, mas, ao contrário, uma assimilação deformada da realidade ao eu.

Esses jogos têm também importância no desenvolvimento da afetividade na criança. Ela relembra situações dolorosas ou agradáveis e através deles, alivia sua angústia, realizando desejos insatisfeitos (a boneca faz um passeio que lhe é proibido), ou revive momentos agradáveis (transfere para a boneca a carícia recebida). Assim sendo, é o transporte a um mundo de faz-de-conta que possibilita à criança a realização de sonhos e fantasias, revela conflitos interiores, medos e angústias, aliviando a tensão e as frustrações.
Nesse contexto, é comum a criança dessa idade atribuir vida a objetos inanimados. Essa característica do pensamento infantil – um aspecto importante do brinquedo – é chamada animismo. “O animismo é a tendência a conceber as coisas como vivas e dotadas de intenção” (PIAGET, 1969, p. 31).
As coisas são animadas e vivas porque a criança confunde-se ainda com a realidade exterior e seu pensamento é bastante ligado somente ao seu próprio ponto de vista, ou seja, a sua própria maneira de perceber as coisas . Essa centração da criança nela mesma, Piaget chama de egocentrismo, o que nos leva a entender o porquê da criança na fase inicial do jogo simbólico brincar sozinha, falar mais consigo mesma (solilóquio), ligando-se à sua atividade e comunicando-se pouco com as outras pessoas. Seu egocentrismo está, portanto, ligado ao pensamento (à compreensão do mundo) e não à sua relação física com as coisas, como ocorre no início do período sensório-motor.
Sobre este aspecto, vale invocar a constatação de Wood:
Segundo a análise piagetiana do pensamento pré-operatório, as crianças pequenas tendem a formar seus juízos sobre a natureza das coisas a partir de atos únicos de centração. Diz ele que sua percepção é, por isso, “dominada” por aquilo a que elas estão prestando atenção. Elas não conseguem “descentrar” o próprio pensamento ou coordenar as próprias ações mentais para chegar a juízos estáveis e lógicos. Só mais tarde, ao construir as operações lógicas, é que elas desenvolvem a capacidade de pensamento racional e análise perceptiva continuada e sistemática (1996, p.95).

Dessa forma, é interessante observar que todas as características do pensamento da criança, apresentadas nesse estágio, são fruto do caráter pré-lógico do seu pensamento. Suas explicações sobre o mundo não obedecem a uma lógica, mas a uma forma egocêntrica de pensamento em que as coisas agem e pensam como ela própria. Assim como o bebê assimilava os objetos a seus esquemas de ação, a criança da fase pré-operatória assimila o mundo a seus esquemas de pensamento e atividade. Os movimentos das nuvens e da lua, por exemplo, são dirigidos para um fim (finalismo) porque os próprios movimentos da criança são dirigidos para um fim, as coisas são animadas e vivas porque a criança compreende-se em pensamento com elas (animismo), os objetos obedecem as leis e obrigações (“os barcos flutuam porque devem flutuar”).
No conjunto, vê-se o quanto as diversas manifestações deste pensamento em formação são coerentes entre si, no seu pré-logismo. Consistem todas em uma assimilação deformada da realidade à própria atividade. Os movimentos são dirigidos para um fim, porque os próprios movimentos são orientados assim; a força é ativa e substancial, porque tal é a força muscular; a realidade é animada e viva; as leis naturais têm obediência, em suma, tudo é modelado sobre o esquema do próprio eu (PIAGET, 1969, p. 33).

Piaget salienta que é importante respeitar esta forma de assimilação da realidade pela criança, tanto pela linguagem quanto pelos jogos simbólicos, já que a criança não compreenderá logicamente o mundo, enquanto seus esquemas de pensamento não forem capazes disso.
Os jogos simbólicos e a atividade do pensamento egocêntrico vão provocando, através da assimilação das coisas aos esquemas da criança, uma ampliação desses esquemas para que cheguem a acomodações mais precisas à realidade.

O JOGO DE REGRAS
Finalmente, só dos 7 aos 11 anos aproximadamente, a criança irá adquirir um pensamento mais socializado, isto é, não passará mais a brincar ao lado do outro, mas brincar com o outro. Esse é o período das operações concretas , no qual o pensamento da criança evolui para situações cada vez mais concretas. Ela começa a utilizar algumas operações lógicas, como a reversibilidade, a classificação dos objetos por suas semelhanças e diferenças, e também a compreender os conceitos de número e tamanho. Introduz-se, assim, a lógica no processo de pensamento da criança. “Para a inteligência, trata-se do inicio da construção lógica, que constitui, precisamente, o sistema de relações que permite a coordenação dos pontos de vista entre si” (PIAGET, 1969, p. 44).
Esse período coincide também com o começo da escolaridade da criança e com a diminuição do egocentrismo. Ela adquire a capacidade de realmente cooperar, isto é, operar em conjunto; consegue coordenar suas atividades com a das outras crianças e conversar, admitindo e entendendo o ponto de vista dos outros. Isto porque a reversibilidade  dá maior amplitude à sua linguagem, que, de egocêntrica que era na fase anterior, passa a ser socializada.
Em virtude desse aspecto, é nessa fase que a criança consegue brincar com as outras, obedecendo às regras. Assim, surge a terceira categoria, considerada jogo de regras, que marca então, a transição da atividade individual para a socializada.
Os jogos de regra contêm como propriedades fundamentais de seu sistema, as duas características herdadas das estruturas dos jogos anteriores. Em síntese, se os jogos de exercício são a base para o ‘como’, os jogos simbólicos são a base para o ‘porque’. Mas, a coordenação entre o como e o porquê só se dará com a estrutura dos jogos de regras, graças à assimilação recíproca.
Na condição de invariante do sistema, a regularidade do jogo deve ser levada em consideração por todos os participantes, sendo a transgressão das regras uma falta grave, que perturba o sentido do jogo. Os jogos de regra são combinados arbitrários, criados pelo inventor do jogo ou por seus componentes, que os jogadores aceitam livremente.
Assim, os jogos de regras são, na definição de Piaget (1978, p.185): “(…) combinações sensório-motora (corridas, jogos de bola de gude ou com bolas etc.) ou intelectuais (cartas, xadrez etc.), com competição de indivíduos (sem o que a regra seria inútil) e regulamentados quer por um código transmitido de geração em geração, quer por acordos momentâneos”.
Neste jogo, há regras comuns que devem ser seguidas por todos e quem, não as segui-las é punido ou sai do jogo. Isso acontece porque as crianças, segundo Duska e Whelan (1994, p. 22) “(…) crêem que as regras do jogo foram feitas pelos adultos; algumas crêem até que foram ditadas por Deus desde o inicio e qualquer modificação é considerada como uma transgressão”. Dessa forma, as regras cumprem a função de organizar o grupo e igualar os direitos de cada um.
É bom aqui registrar que, com o advento dos jogos de regras, as crianças não abandonam totalmente os jogos simbólicos, mas estes se adaptam, cada vez mais, à realidade, embora muitas vezes haja uma evolução no sentido do seu aperfeiçoamento, sem que haja diminuição do seu aspecto subjetivo, isto é, a criança aperfeiçoa sua capacidade de expressar seu mundo.
Em resumo, os jogos simbólicos contêm como parte, as características dos jogos de exercício, e os jogos de regras contêm também como parte, as características de ambos. O mesmo ocorre no sentido oposto. Os jogos de exercício supõem regras e símbolos como elementos de sua estrutura..

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir dessas idéias, aqui levantadas, cujo objetivo central era mostrar a evolução do jogo nas várias fases do desenvolvimento cognitivo da criança, podemos concluir que a tarefa do educador não é a de mero transmissor de conhecimentos, mas, sim, a de um guia no processo de descoberta do mundo pelo aluno. Sua função é propiciar situações para que seu aluno construa seu sistema de significação, o qual, uma vez organizado na mente, será estruturado no papel ou oralmente. Daí a necessidade de oferecer-lhe materiais que o absorvam, que despertem sua curiosidade, que provoquem sua atividade e solicitem a sua criatividade.
Assim, como afirma o próprio Piaget:
Os professores podem guiá-las proporcionando-lhes materiais apropriados, mas o essencial é que, para que uma criança entenda, deve construir ela mesma, deve reinventar. Cada vez que ensinarmos algo a uma criança estamos impedindo que ela descubra por si mesma. Por outro lado àquilo que permitimos que descubra por si mesma, permanecerá com ela (apud CUNHA, 1998, p.7).

Em suma, o importante é não esquecermos que todas essas aquisições do pensamento devem ocorrer naturalmente, de forma que a criança chegue a elas através de jogos, manipulação de objetos, em que as soluções para os possíveis problemas não sejam ensinadas à criança. Ela própria os descobrirá, na medida em que for estimulada a executar seus esquemas de ação de maneira livre, afim de que ocorram as necessárias assimilações para consolidar esses esquemas, que na época adequada se acomodará mais a realidade objetiva com a criação de conjuntos novos de esquemas mais aperfeiçoados, coordenados entre si e integrados. Estes novos esquemas partem dos anteriores e os incluem neste novo arranjo de possibilidades de pensar e agir sobre a realidade.
Por fim é bom lembrar que toda essa evolução ocorre gradativamente e há casos de crianças que demoram mais a socializar-se caso apresentem algum problema afetivo, de aprendizagem ou a características de personalidade. Portanto, tais delimitações etárias estão sujeitas a alterações, em função das diferenças individuais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CUNHA, Nylse H. Brinquedo, desafio e descoberta. Rio de Janeiro: FAE, 1988.
DUSKA, Ronald; WHELAN, Mariellen. O desenvolvimento moral na idade evolutiva: um guia a Piaget e Kohlberg. São Paulo: Edições Loyola, 1994.
PIAGET, Jean. Seis estudos de psicologia. Rio de Janeiro: Forense, 1969. 
______. A formação do símbolo: imitação, jogo e sonho, imagem e representação.
3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
RICHMOND, Peter G. Piaget: teoria e prática. 2. ed. São Paulo: IBRASA, 1981.
WOOD, David. Como as crianças pensam e aprendem. São Paulo: Martins Fontes, 1996.


1.  São chamadas de mecanicistas ou reducionistas as teorias empiristas e racionalistas porque reduzem o desenvolvimento intelectual só à ação do homem ou só à força do meio. A concepção construtivista opõe-se tanto à teoria empirista (para a qual a evolução da inteligência é produto apenas da ação do meio sobre o indivíduo) quanto à concepção racionalista (que parte do princípio de que já nascemos com a inteligência pré-formada).
2.  Na assimilação, o indivíduo usa as estruturas mentais que já possui. Se elas não são suficientes, é preciso construir novas estruturas, isso é acomodação. Piaget usa este termo para referir-se às mudanças, freqüentemente pequenas, que têm de ser feitas quanto a esquemas de atividades preexistentes para tornar possível a assimilação de uma nova vivência.
3.  A operação é uma ação mental na qual representações são combinadas para formar novas representações e na qual tais combinações podem ser conseguidas de várias maneiras.
4.  São movimentos inatos que não dependem de intenção. Ocorrem espontaneamente sem a intervenção da memória ou da inteligência. O recém-nascido, por exemplo, movimenta a cabeça em direção ao seio materno e o suga sem ter consciência do que está fazendo. Os atos reflexos, movimentação da cabeça e sucção são, portanto, inconscientes.
5.  É assim chamado porque tem uma estrutura pré-operatória em que a criança começa a preparar e organizar as operações concretas.
6.  Atividade pela qual a criança associa sons e fatos, pessoas e objetos (início da linguagem). Quando ela fala “água” usa o símbolo (palavras, som) para representar o objeto (água). Mas a simbolização não se limita à linguagem. A criança pode simbolizar ações e substituições de objetos e pessoas que pode incluir, ou não, a linguagem.
7.  No caso deste estágio, o que impede a criança de perceber o ponto de vista dos outros é o caráter irreversível do seu pensamento. A criança não tem capacidade de perceber que determinadas ações podem ser realizadas no sentido inverso.
8.  O período chama-se período de operações concretas porque a criança só consegue operar com objetos, manipulados diretamente e pouco a pouco, representados mentalmente.
9.  Capacidade de refazer um trajeto mental, voltando ao ponto inicial de uma situação, isto é, de parar o processo em qualquer ponto e voltar, pelo menos mentalmente, ao seu ponto original.

Publicado em 13/11/2009 16:50:00


Ernany Santos de Almeida – Pedagogo com pós-graduação em psicologia educacional com ênfase em
psicopedagogia preventiva.

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