OS ROSTOS JOVENS DE DEUS
Jorge Claudio Ribeiro
Uma certa juventude percebe Deus sobretudo como um ser superior; menos como uma forma de energia; pouco importante, como um ser pessoal. O que significam esses resultados? Como decifrá-los? A primeira providência é acautelar-se, porque tais representações envolvem polissemias, o que impõe precisar os termos.
“De qual Deus se trata?” Depende. A palavra “Deus” – que sempre deveria ser escrita entre aspas, tamanha a sua diversidade – resulta do amálgama de significados produzidos em cada sociedade, derivando de acontecimentos e idiossincrasias geracionais e individuais. A flexibilidade da idéia de Deus a torna uma das grandes idéias humanas, diz Karen Armstrong, historiadora das religiões. Ela acrescenta que as imagens elaboradas por uma geração podem não fazer sentido para outra. O hermeneuta John-Dominic Crossan anota que os deuses acumulam uma bagagem histórica, assim como os humanos. Portanto, Zeus, Júpiter e Iahweh não são apenas nomes diferentes para uma realidade suprema, mas consolidam experiências humanas diversas. Assim, a imagem do transcendente é fruto do ramo religioso na frondosa árvore da experiência humana, enraizada no húmus da história.
A segunda polissemia refere-se à própria juventude, uma categoria escorregadia – “a juventude é apenas uma palavra”, provoca Pierre Bourdieu. Um enigma, pois. Atualmente, esse grupo já não é mais definido a partir de referências biológicas ou etárias, mas é encarado como entrecruzamento de determinações culturais, sociais e econômicas, e de trajetórias singulares. Assim, não existe “a” juventude, e sim “juventudes”, cada qual com suas histórias, seu potencial e desafios. Forças gigantescas, que regem a globalização econômica e cultural, se abatem sobre os vários tipos de jovens e moldam diversamente suas experiências, inclusive religiosas. Como características gerais, essas pessoas são apontadas como entes liminares, sequiosos de experiências, que oscilam entre o excesso e a incerteza, que passam por rupturas e por um segundo nascimento.
Um olhar “de microscópio” sobre a alma de uma juventude imersa em aceleradas mudanças ilumina processos que, em outras idades, se instauram mais lenta e imperceptivelmente. O ponto de partida da presente análise é um segmento dotado de expressivo grau de empoderamento. Foram pesquisados universitários, oriundos de famílias com alto capital cultural e com renda pelo menos média, que partilham uma weltanschauung mundializada, vivem na metrópole e têm boas perspectivas de emprego. Essas condições interferem na experiência religiosa, pois fornecem alto grau de autonomia. Conduzido desde 1997 por uma equipe docente, o estudo de um caso particular (aqui, a PUC-SP) pode ajudar na compreensão de outras situações, não de forma literal, mas ao revelar dinâmicas presentes em outras juventudes.
O que nossos jovens teriam a dizer de tão importante? Até que ponto procede a observação de que parte deles perdeu as crenças, mergulhou no niilismo, no consumismo e, de quebra, afastou-se das práticas religiosas? Nossa pesquisa detectou que, pelo contrário, os sujeitos desenvolvem uma intensa religiosidade que provê a energia para seus experimentos, inaugurações e a passagem para a vida adulta. O conceito de religiosidade ainda não atingiu plena consolidação semântica e disputa espaço com “espiritualidade” ou “sacralidade”, palavras com outras conotações. Entendemos que a religiosidade é uma capacidade humana, histórica e culturalmente determinada, que elabora sentidos para a totalidade da existência. Nossa concepção se nutriu das reflexões de Georg Simmel (1858-1918), que a descreve como uma disposição fundamental da alma, uma energia sem forma que confere cor e grandeza aos altos e baixos da vida, estabelece um relacionamento espiritual contínuo em relação ao conjunto da existência, e a conforma com o destino interno da alma. Para o autor, uma pessoa erótica é sempre erótica em sua natureza, mesmo que não tenha criado, ou se venha a criar, um objeto de amor; assim também uma pessoa é sempre dotada de religiosidade, mesmo que não acredite em Deus. Entendemos que, tal como uma glândula, a religiosidade “secreta” sentidos para a vida e, por isso, está na origem das religiões, das artes, da política e do conhecimento.
A religiosidade sintetiza tanto materiais quanto dinâmicas derivadas da vida social e de cada etapa da vida. Atualmente, um poderoso fornecedor desses materiais tem sido a modernidade secularizada e globalizada, que se proclama reino da razão e na qual declinou a hegemonia da religião. Quanto às dinâmicas, a socióloga Danièle Hervieu-Léger sugere duas: a subjetivação, que situa na biografia pessoal o locus da elaboração de sentidos; a individualização, ou o direito irrestrito do indivíduo à escolha de crenças e à bricolagem religiosa (do francês “bricolage”, corresponde a “do it yourself” e se aproxima de “gambiarra”, em português). Essas tendências penetraram tão fundamente na cultura que o sociólogo Alain Touraine observa, com finesse, que até o catolicismo se protestantizou.
No interior do religioso-em-movimento, uma possível “estátua pós-moderna” de Deus não seria de bronze ou de mármore, materiais que resistem a milênios: seu escultor usaria partículas ou fluidos e a tornaria alternadamente luminosa e obscura, interativa e orgânica. O Templo contemporâneo não seria projetado de antemão, mas inventado a cada passo, podendo ser refeito no instante seguinte.
Universitários – Em meio a tudo isso, a fase juvenil se apresenta como um kairós. Quem a vive, não pode dar-se ao luxo de desperdiçar energias. Imersa num mundo secular, a juventude encontra em sua religiosidade, crente ou laica, uma preciosa fonte de alento. Entendemos que essa capacidade é totalmente adequada ao “ser jovem”, visto instilar confiança para a pessoa tomar distância do familiar e empreender sua busca pelo novo. Nossa pesquisa identificou um ambiente vital que se manifesta nas maiores e nas menores médias atribuídas a sentenças ponderadas (uma parte do questionário).
Obtiveram maior aprovação: “Para mim, a vida tem sentido; Não se deve usar a religião com objetivo político; Cabe principalmente a mim definir os rumos da minha vida; Lutar pelo que acredito é um de meus rituais; Ter fé é mais importante que ter crenças e religiões; Às vezes converso em profundidade com outra pessoa e isso me traz energia; Sinto-me feliz com freqüência; Percebo Deus como um ser superior; Sinto muita alegria em reuniões em que todos estão alerta para a realidade; Vejo Deus na natureza”.
Com maior discordância: “Apenas a minha religião é a verdadeira; Tenho medo de Deus; Já pensei em suicídio; Concordo com as orientações de minha igreja em questões sexuais; A maldade e a pobreza me fazem duvidar da existência de Deus; As pessoas devem ter só uma religião e seguir suas orientações; Deus pode me dar tudo; Preciso da ajuda de outras pessoas na definição dos rumos de minha vida; Há diretrizes perfeitamente precisas para se saber o que é bem ou mal”.
Esses resultados, somados a depoimentos e a outros dados, apontam para quatro balizas. Primeira: a afirmação de que a vida tem sentido é a mais enfática. Ela se ancora numa confiança de base e se apóia em boas condições familiares e expectativas favoráveis. O segundo marco é a alteridade: ao se aproximar do “mundo grande”, o ego se expande e se alia a amigos e a amores para, espelhadamente, “treinar” novos comportamentos, valores e possibilidades. A terceira baliza é a fé. Por que esses jovens têm fé? Eles têm fé porque precisam. Aqui, nova polissemia. Para eles, a fé precede postulados religiosos e é vivida como atitude humana, de confiança – nas suas origens, em si mesmo, num futuro viável, nos companheiros e no transcendente. Simmel (1998, p. 169) já definia a fé como religiosidade em forma fluida, a base da natureza humana: “Considere-se quantas coisas se pode fazer pelo simples motivo de que se acredita que se pode fazê-las. A fé prática é uma qualidade fundamental da alma… concretiza-se como uma relação com alguém exterior ao eu”.
A quarta baliza é a relação com as religiões. Nosso estudo verificou que 32% dos respondentes estão na categoria dos “sem-religião” (19,8% de crentes-sem-religião mais 6,1% de agnósticos e 6,1% de ateus), num percentual superior ao de outras juventudes brasileiras. Também 87,8% desses universitários têm fé em Deus, índice bem inferior a outras faixas de nossa população. Nossos jovens respeitam as religiões, mas criticam agudamente as igrejas concretas.
Os materiais e dinâmicas (seculares e religiosas) acima confluem para representações do divino. À semelhança de juventudes globalizadas, a maioria de nossos universitários percebe Deus como um ser superior, menos como uma forma de energia e muito pouco como um ser pessoal. Para entender isso, uma primeira hipótese sugere que nosso jovem quer, e pode, ter espaço para suas experimentações e, assim, se distancia de um Deus que lhe ensinaram ser próximo, e interferidor, demais. Outra sugestão: em jovens envolvidos num ambiente de conhecimento científico, a percepção de um ser superior acompanha sua cosmovisão ampliada. Já a metáfora da “energia” aponta para algo que move o universo e é experimentado no íntimo de cada um, que sintetiza a realidade empírica e a subjetividade, o ethos científico e a religiosidade. Enfim, com Bauman, a pouca aceitação da imagem de um Deus pessoal (originária do ambiente judeu-cristão) talvez derive de um padrão “líquido” das relações humanas, em sociedades urbanizadas e competitivas, e que não propicia a formação de laços próximos, inclusive com o transcendente.
Concluindo, reproduzo o depoimento, quase um credo, de uma jovem: “Acredito num Deus único, numa força espiritual que comanda o mundo. Portanto a religião é apenas uma manifestação criada por cada povo que possui uma forma de enxergar esse Deus de acordo com sua cultura. Por isso, valorizo mais a fé que a obediência aos mandamentos”.
Publicado em 27/10/2009
Jorge Claudio Ribeiro – Professor, Doutor Departamento de Teologia e
Ciências da Religião da PUC/SP
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