AULA PROUSTIANA
Jorge Claudio Ribeiro
Uma vaga inquietação. Torpor. Já aconteceu de eu entrar apavorado em sala e sair feliz. E vice-versa. Já suportei, ou não, indisciplina, indiferença, já fui desde despreparado até inesquecível, ora torpe, ora sublime. Como será hoje? Vai dar certo? Conseguirei, mais que ensinar, fazer com que aprendam? E, se aprenderem, isso os ajudará na profissão? Ainda restam profissões? Meus alunos farão alguma diferença? Eu faço diferença? Essa vida tem sentido, graça ou beleza? Até quando este planeta vai durar? Deus existe, e isso adianta? Ai minha santa! Tá chegando a hora…
Verificar se está tudo na pasta: papéis, anotações, trabalhos atrasados, livros amassados e encardidos. Outro dia, esqueci os óculos e acabei dando uma aula impressionista. Passar pelo banheiro – sempre sobra alguma coisa na gente. Se Chico Buarque, unanimidade nacional, se apavora antes de pisar no palco, por que eu me sentiria diferente? Esse raciocínio consola, mas não resolve.
Pego a chave, rumo à sala 41. Alguns estão esperando. Boa noite. Abro a sala e se acomodam, mas continuam com seus assuntos “profanos”. Arriscamos algum contato físico. Já troquei mais beijinhos em sala, mas suspendi essa prática pedagógica, no dia em que começaram a me chamar de “senhor”. Arrumo o material sobre a mesa, escrevo na lousa dicas culturais e o plano da aula. Vai começar. “A paixão não é mais do que o ato/ da gente ficar/ no ar antes de mergulhar.” A bênção, Maria Bethânia.
Conseguir atenção, impor silêncio. “Gente, aqui comigo.” Retomar o passo, estabelecer conexões. Vejo gente anotando, fico feliz e vou-me empolgando. Meu olhar vaga: acolhe sorrisos, perscruta tímido e desejante (sem dar bandeira). “Você que fez uma cara inteligente, o que quer comentar?” Risos, provocação bem sucedida, não importa o que se diga: acato e incorporo no fluxo das idéias. Não importa se os comentários são inteligentes: eles precisam participar, falar. Precisam? Silêncio, tensão. O que se passa nessas mentes? Estou entregue. Espantoso poder das palavras de transmitir percepções e sensações tão impalpáveis, só minhas!(?)
Alguém entra. Cumprimentos, beijinhos. Tem cadeira pra mim? Dá pra tirar a mochila da cadeira para eu sentar? Oi, professor. Gente, quem chega atrasado tem de ser discreto; quando dou aula, penso em voz alta e preciso de ajuda. Esse exemplo, por exemplo, que acabo de dar, chegou agora do cosmos, está fresquinho. Escrevo na mal-conservada lousa, invenção maravilhosa que acolhe o pensamento à medida que sai e que deleta elementos antigos. É o registro do próprio processo e ai de quem fica pra trás.
Tão graciosos os corpos delas, todas. Inclusive essa gordinha que provavelmente se acha feia, mas não devia. Sinto o balanço da classe como um mar, uma orquestra. Diz um colega: “Prefiro tocar minha disciplina como quem afina o violino, e me frustro quando a melodia desanda”. Esse instrumento será o conteúdo da disciplina em seus enredamentos? Será a nossa alma, cujas cordas se modulam à pressão de meus dedos, vibram ao toque do arco dos alunos e emitem a melodia do mistério, sempre um tanto desafinada?
Sei que não me reduzo a ser transmissor de informações. Sou isso também, e para tanto me preparo. Mas sei que não há relação direta entre o que ensino e o que a classe aprende: pode ser muito mais, ou muito menos. Meu papel é abrir caminhos, surpreender, abrir uma porta para mais saídas. Já ouvi que minhas aulas (ou eu…) mudaram a existência de alguém. A custo, relativizei. O máximo que se consegue é, de dentro da banalidade cotidiana, abrir os ouvidos dos alunos para algo que a vida já sussurrava. Quando cai a “ficha da descoberta”, o olhar se torna mais rico, abre-se para a alegria, é-se simplesmente si-mesmo. Epifania, insight.
Pressinto que algo está para nascer no universo. Então, improviso um exemplo, faço uma conexão inesperada. Me espanto comigo mesmo. Para minha surpresa, ela dá uma risada alta, completamente entregue. Tiro-a do isolamento e provoco: “Só ela entendeu?” Vários aderem, com leve sorriso. Sigo transmitindo informações, tecendo reflexões. Olho para mim, “estou feliz”. Sinto-me relaxado, ousado, hormonioso – uma alegria menina me invade. “Estado de graça deve ser isso.” Agradeço. A aula “aconteceu”, para todos nós. Será assim na próxima? Até lá.
Publicado em 17/11/2008
Jorge Claudio Ribeiro – Professor, Doutor Departamento de Teologia e
Ciências da Religião da PUC/SP
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