Uncategorized

Artigo Entrid 1085

Para imprimir este artigo sem cortes clique no ícone da
impressora >>>

 

CHUTARAM MAMÃE

Jorge Claudio Ribeiro

O inesquecível episódio ocorrido no dia 12 de outubro/1995, em que o pastor Sérgio Von Helde praticou uma abstrusa sessão de kickboxer televisivo com a imagem de Nossa Senhora Aparecida, precipitou uma avalanche de emoções e trouxe à tona algumas reflexões.
Afinal, o que Von Helde teria chutado, exatamente?

Às vezes, em minhas aulas na PUC de São Paulo, provoco a classe: “Como é o Deus que o brasileiro adora?”. Em geral as primeiras respostas são sacadas de empoeirados catecismos de longínqua infância, não dos alunos, mas de seus pais e avós. Para eles, Deus é Jesus, ou então um espírito perfeitíssimo, eterno, criador do céu e da terra. Alguns mencionam o Pai, aquele da oração que pede o pão de cada dia para todos. Deus Pai?! “Tudo errado”, brinco.

Para fazer a descrição daquele que melhor canaliza a sede de transcendência, as esperanças e as angústias de grande parte de nosso povo, digo que a aparência de Deus por estes trópicos é: mulher, negra, vestida com uma coroa e um manto azul de gosto extravagante. Mataram a charada? Se Deus é mesmo brasileiro, nós o chamamos Aparecida, Cida. Deus Mãe?! Claro, e não se trata de blasfêmia ou heresia pós-Teologia da Libertação.

Na sociedade brasileira, a figura paterna, sobretudo nas camadas pobres, está muito desprestigiada. É comum o pai, humilhado e embrutecido no trabalho, chegar em casa bêbado, bater na mãe, passar a mão nas filhas e, depois de se engraçar com as vizinhas, “abandonar o lar” nas mãos da ex-companheira. Nessas condições, a expressão “Deus Pai” soa como pouco menos que uma ofensa. Com quem as crianças se pegam, qual a sua última, real esperança? Quem as nutre e, mal ou péssimo, as sustenta e tenta dar um rumo na vida? A mãe, chefe de família. Nada mais natural que a experiência materna sirva de base para a imagem social sobre Deus, que esculpimos.

Até aí, nenhuma originalidade. Em toda a Bíblia, Deus é descrito como alguém que tem carinhos de mãe para com seus filhos; Boff ensina que a palavra “espírito”, em hebraico, é feminina; no candomblé, as imagens e as festas mais prestigiosas têm como centro a mulher, Iemanjá, mãe que ostenta em suas formas uma perpétua e bem-vinda sensualidade. Tudo isso dá pra entender.

No entanto, a Deus ninguém conhece, só Ele/Ela a si mesmo. Tudo o que falamos de Deus parte de experiências de sociedades e indivíduos no contato com a Totalidade da vida e do mundo. Aproximamo-nos de Deus (e Ele/Ela de nós) através de memórias e rituais que sedimentam nosso amor e nosso temor mas que não esgotam seu mistério. Deus é maior que as religiões e que as imagens que fazemos dEle/Ela. Da mesma forma você, eu, não nos resumimos aos dados do RG. Perguntado pelo libertador Moisés, no deserto, qual era seu nome, matreiramente o Altíssimo se negou a fixá-lo num substantivo. Preferiu o movimento, o verbo: “Eu sou aquele que sou, que fui e que serei”. No entanto, nós, seres carnais, precisamos dEle/Ela em latitudes mais baixas, a nosso alcance. Assim, qualquer encarnação é boa, porque nos ajuda a materializar o que sentimos. Tal como a Deus-Mãe-Aparecida, chutada na televisão, tal como tem sido na vida real. E sempre resistindo.

Publicado em 07/10/2008


Jorge Claudio Ribeiro – Professor, Doutor Departamento de Teologia e
Ciências da Religião da PUC/SP

Dê sua opinião:





Clique aqui:
Normas para
Publicação de Artigos