O DESENVOLVIMENTO DO PSIQUISMO NA PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL: CONCEITOS BÁSICOS E CRITÉRIOS DE DEMARCAÇÃO
Edival Sebastião Teixeira
RESUMO: O objetivo deste texto é a apresentação de conceitos básicos da teoria histórico-cultural, os quais são fundamentais para a compreensão do desenvolvimento do psiquismo e, por conseguinte, para uma prática consistente, segundo os pressupostos dessa escola de pensamento. A exposição consiste de dois tópicos. No primeiro são apresentados alguns apontamentos sobre a concepção de ser humano da psicologia histórico-cultural, sobretudo, quanto à natureza educada do psiquismo. No segundo tópico, são mencionados alguns conceitos básicos da concepção vigotskiana acerca do desenvolvimento psicológico, bem como são apresentados os principais critérios de demarcação das etapas ou períodos do desenvolvimento psicológico segundo essa concepção.
Palavras-Chave: desenvolvimento psicológico; psicologia histórico-cultural; Vigotski.
Grosso modo, pode-se conceituar o desenvolvimento como sendo o conjunto dos processos orgânicos e psicológicos que ocorrem ao longo da vida do indivíduo (OLIVEIRA & TEIXEIRA, 2002). E assim, por ser processual, a essência do desenvolvimento é o dinamismo, de modo que podemos afirmar que sua principal marca é o fato de se caracterizar pela constante mudança.
Os processos orgânicos dizem respeito aos aspectos maturacionais, ao passo que os processos psicológicos estão relacionados com a afetividade, com a cognição e com demais aspectos sociais e culturais. Portanto, os processos orgânicos se apóiam na constituição biológica do indivíduo e se manifestam mediante a ocorrência de determinadas condições ambientais. Os processos psicológicos, por sua vez, são enraizados historicamente e somente se manifestam se o sujeito se apropriar deles.
Assim sendo, a compreensão do processo de desenvolvimento em geral, do psiquismo mais especificamente, exige que se leve em conta três fatores: em primeiro lugar, há que se verificar a etapa da vida em que o indivíduo se encontra; em segundo lugar, as circunstâncias culturais, históricas e sociais nas quais a sua existência transcorre; em terceiro lugar, é preciso considerar as experiências particulares do indivíduo que não podem ser generalizáveis. Assim, o primeiro desses fatores introduz certa homogeneidade entre todos os seres humanos que estão em determinada etapa da vida; o segundo introduz certa homogeneidade entre aqueles que vivem em uma mesma cultura, no mesmo momento histórico e dentro de um determinado grupo social; o terceiro introduz fatores idiossincráticos que fazem com que o desenvolvimento psicológico, apesar de apresentar semelhanças de umas pessoas a outras, seja um fenômeno particular, que não ocorre da mesma maneira em dois indivíduos diferentes (OLIVEIRA & TEIXEIRA, 2002). Então, considerando todos esses fatores, é bastante problemática qualquer generalização sobre o desenvolvimento humano, sobretudo para as etapas mais distantes da infância.
Porém, na psicologia do desenvolvimento estamos acostumados a pensar em termos de fases, etapas ou estágios que se sucedem no tempo de forma mais ou menos determinada. Do mesmo modo, tentamos mapear e compreender a estrutura, o significado e o conteúdo de cada uma dessas fases ou estágios, de acordo com as diferentes etapas em que, culturalmente, organizamos nossa vida, como infância, adolescência, vida adulta e velhice, etc. (OLIVEIRA & TEIXEIRA, 2002)
Por isso, o título deste trabalho sugere quase que naturalmente o tema da periodização do desenvolvimento psicológico. E neste caso específico, segundo a concepção de Lev Vigotski e seguidores diretos. Porém, não se trata aqui de apresentar uma periodização “vigotskiana”, embora existam algumas dessas periodizações elaboradas por autores dessa escola, como são os casos dos trabalhos de Elkonin e de Davidov, por exemplo. No máximo, e apenas a título de ilustração, mais adiante no texto é apresentada a periodização vigotskiana.
O conhecimento da periodização do desenvolvimento, o qual tem muitas utilidades para a prática da psicologia, pressupõe de saída o domínio teórico da dinâmica do processo de desenvolvimento psicológico. Por conseguinte, e em sentido inverso, esse domínio é condição necessária para uma prática profissional consistente. Em outras palavras, não basta saber dizer que fases existem no desenvolvimento, como elas se sucedem, se essas fases são universais, etc. com base em determinada teoria. A prática consistente tem de estar firmemente ancorada no domínio teórico; e as teorias, por sua vez, se sustentam em concepções de mundo, de sociedade, de homem.
O que este texto propõe, portanto, é a apresentação de conceitos básicos da teoria histórico-cultural, cujo domínio é fundamental para a compreensão do desenvolvimento do psiquismo e, por conseguinte, para uma prática consistente, segundo essa escola de pensamento.
A exposição está organizada em dois breves tópicos. No primeiro são feitos apontamentos bem gerais sobre a concepção de ser humano da psicologia histórico-cultural, sobretudo, quanto à natureza educada do psiquismo. No segundo tópico, são mencionados alguns conceitos básicos da concepção vigotskiana acerca do desenvolvimento psicológico, bem como são apresentados os principais critérios de demarcação das etapas ou períodos do desenvolvimento psicológico segundo essa concepção.
A concepção de ser humano da psicologia histórico-cultural: alguns apontamentos
Um dos mais importantes pressupostos da psicologia histórico-cultural é que o desenvolvimento do psiquismo, principalmente no que diz respeito à gênese e evolução das funções psicológicas superiores, e a educação, esta tomada em seu sentido mais amplo, são dois processos que estabelecem entre si relações de reciprocidade de modo que não é possível conceber qualquer um deles atuando de forma independente do outro. Ou seja, para a escola vigotskiana as relações que se estabelecem entre desenvolvimento e educação são elementos essenciais do próprio processo de constituição do sujeito.
Desse primeiro pressuposto decorre um outro igualmente importante nessa teoria, segundo o qual a educação é a forma universal do desenvolvimento psíquico humano. Isso implica aceitar que o processo de desenvolvimento do psiquismo é um processo educado e que o indivíduo da espécie humana aprende a se tornar um sujeito humano, no seio de uma prática social determinada.
A concepção vigotskiana de como o psiquismo se origina e se desenvolve assenta-se na concepção de ser humano do materialismo dialético. E tal concepção, por sua vez, encontra-se formulada com clareza nas onze Teses sobre Feuerbach, de Marx. (ENGELS, 1977)
Especificamente na sexta tese encontra-se uma formulação das mais importantes, sobre a qual Vigotski erigiu a psicologia histórico-cultural (PINO, 2000; OLIVEIRA & TEIXEIRA, 2002; TEIXEIRA, 2005). Vejamos: “Feuerbach dissolve a essência religiosa na essência humana. Mas a essência humana não é uma abstração inerente ao indivíduo singular. Em sua realidade, é o conjunto das relações sociais…” (MARX & ENGELS, 1977, p. 12). Continuando, já na sétima tese, esses autores concebem que todo o conteúdo da mente humana, como o sentimento religioso, por exemplo, é um produto social que pertence, tal como o indivíduo, a uma forma determinada de sociedade. (TEIXEIRA, 2005)
Interpretando a sexta tese Vigotski (1995, p. 151) diz textualmente que “a natureza psíquica do homem vem a ser um conjunto de relações sociais trasladadas ao interior e convertidas em funções da personalidade e em formas de sua estrutura”. Aí, sem pretender afirmar que esse é o significado preciso do texto marxiano, esse autor diz que vê nessa tese “a expressão mais completa de todo o resultado da história do desenvolvimento cultural”. (Idem)
Ora, isso implica aceitar que as relações sociais internalizadas expressam na esfera privada a significação que essas relações têm na esfera pública. Em outras palavras, que as funções psicológicas superiores são relações sociais que, ao serem trasladadas ao interior, as mesmas traduzem no mundo privado – no psiquismo – a significação que essas relações têm, ou veiculam, no mundo público (TEIXEIRA, 2005).
Convém, todavia, notar que a função do contexto social no desenvolvimento do psiquismo não deve ser entendida apenas como um conjunto de condições materiais objetivas que exercem pressão sobre o material genético. É por essa razão que Vigotski (1996), por exemplo, afirma que diferentemente de Piaget concebe que o desenvolvimento psíquico consiste num processo de conversão de relações sociais, ao invés de um processo de socialização. Nessa mesma linha de raciocino, para o autor “não se pode aplicar à teoria do desenvolvimento infantil a mesma concepção de meio, desenvolvida na biologia com respeito à evolução das espécies animais.” (Vigotski, 1996, p. 264)
O mecanismo que explica a conversão do social em pessoal, mas sem subtrair ao sujeito sua singularidade, é a mediação semiótica, a qual, por sua vez, sugere diferentes sistemas de representação e significação da realidade (PINO, 2000; TEIXEIRA, 2005). Por conseguinte, tendo em vista que são os própios sujeitos humanos que criam e operam os mediadores das suas relações sociais, então o desenvolvimento do psiquismo é, em última instância, um processo cultural, ou, dizendo-se de outro modo, um processo artificial.
Ora, no processo de desenvolvimento filo e ontogenético do homem, o domínio da natureza e o domínio do comportamento sempre estiveram – e ainda estão – reciprocamente relacionados. Então, como o homem nunca age sozinho, foi em sociedade que se criaram e se desenvolveram os sistemas de relação psicológica que estão na base da atividade laboral e da vida social. Por conseguinte, não se deve ignorar a existência de um elo entre um sujeito e outro sujeito porque na interação social uma pessoa influencia outra; e essa influência social que é primeiramente externa, passa a ser uma influência interna.
Finalmente, vou concluir estes breves apontamentos sobre a concepção de ser humano da psicologia histórico-cultural, com duas citações do próprio Vigotski. A primeira, refere-se a um texto no qual esse autor aplica o esquema hegeliano sobre as diferentes formas do ser para justificar porque entende que o desenvolvimento psicológico passa por três etapas principais. A segunda, trata-se de uma passagem de A consciência como problema da psicologia do comportamento, na qual o autor critica as teorias que defendem a incognoscibilidade do Outro ou que postulam a possibilidade de conhecê-lo a partir do Eu:
[…] passamos a ser nós mesmos através de outros; essa regra não se refere unicamente à personalidade em seu conjunto mas a toda a história de cada função isolada. E nisso radica a essência do processo do desenvolvimento cultural expressado em forma puramente lógica. A personalidade vem a ser para si o que é em si, através do que significa para os demais. Este é o processo de formação da personalidade […] Se faz evidente aqui, como já dissemos antes, o porquê todo o interno nas formas superiores era forçosamente externo, quer dizer, era para os demais o que agora é para si. Toda função psíquica superior passa ineludivelmente por uma etapa externa de desenvolvimento porque a função, em princípio, é social […] quando dizemos que um processo é “externo” queremos dizer que é “social”. Toda função psíquica superior foi externa por haver sido social antes que interna; a função psíquica propriamente dita era antes uma relação social de duas pessoas. O meio de influência sobre si mesmo é, antes de tudo, o meio de influência sobre outros, ou o meio de influência de outros sobre o indivíduo. (VIGOTSKI, 1995, p. 149-150)
Na realidade, seria mais correto dizer precisamente o contrário. Temos consciência de nós mesmos porque a temos dos demais e através do mesmo procedimento pelo qual conhecemos os demais, porque nós mesmos com respeito a nós mesmos somos o mesmo que os demais com respeito a nós. Tenho consciência de mim mesmo só na medida em que para mim sou outro. (VIGOTSKI, 1991, p. 57)
Conceitos básicos e critérios de demarcação do desenvolvimento psicológico
A morte prematura impediu que Vigotski tivesse tempo de elaborar um sistema completo de periodização do desenvolvimento psicológico. No entanto, esse autor lançou as bases de um sistema e muitas de suas teses foram desenvolvidas por Leontiev e Elkonin (DAVIDOV, 1988; ELKONIN, 1996).
Davidov considera que esses autores adotam uma posição comum no seu enfoque sobre o problema do desenvolvimento. Em primeiro lugar, todos consideram que muitas das periodizações são inconsistentes porque se concentram em traços externos do desenvolvimento em detrimento da essência interna desse processo. Em segundo lugar, todos consideram que a periodização deve levar em conta as mudanças na atividade da criança, porque sua personalidade muda como um todo integral em sua estrutura interna durante o processo. Em terceiro lugar, os autores da escola vigotskiana concordam que o exame das fontes de desenvolvimento deve realçar a ligação de cada um dos períodos com um tipo principal de atividade que caracteriza o período dado. Finalmente, em quarto lugar, todos eles consideram que são as atividades integrais da criança, específicas para cada idade, que determinam ao mesmo tempo, as transformações psíquicas, a consciência e suas relações com o meio.
Na teoria vigotskiana, as etapas do desenvolvimento psicológico são chamadas de “idade”. Uma idade corresponde a determinados períodos, mais ou menos prolongados, caracterizados pela existência de uma formação psicológica específica (ou uma atividade dominante, conforme Leontiev). Essa formação psicológica, por sua vez, define os limites e as possibilidades do sujeito em sua relação com o mundo. Então, nessa teoria o termo “idade” não corresponde a um período cronológico de um ano, sendo, assim, um nome alternativo para estágios, períodos ou etapas do desenvolvimento.
A formação psicológica de cada idade, que é chamada por Vigotski de neoformação, caracteriza-se como um tipo de estrutura da personalidade e da atividade da criança, produzidas na interação social e que determina, no aspecto mais importante e fundamental, a consciência da criança, sua relação com o meio, sua vida interna e externa, todo o curso de seu desenvolvimento no período dado (VYGOTSKI, 1996). Assim, as neoformações são, ao mesmo tempo, a estrutura (atual) da personalidade e as guias do processo de desenvolvimento.
Para Vigotski, a dinâmica do desenvolvimento infantil alterna momentos em que as transformações no processo ocorrem de maneira lenta e gradual, com momentos em que as mesmas ocorrem de modo crítico e violento.
Em algumas idades o desenvolvimento se processa de um modo em que as mudanças na personalidade ocorrem muito lentamente, quase imperceptíveis. Durante um lapso de tempo, mais ou menos longo, não se produzem mudanças bruscas nem desvios capazes de reestruturar a personalidade inteira da criança. As transformações que se originam nessas idades estáveis resultam de um lento e oculto processo, que somente torna visível seu produto após um período de tempo relativamente longo.
Nas idades estáveis, o desenvolvimento se deve, principalmente, às mudanças “microscópicas” que ocorrem na personalidade e vão se acumulando até que, após certo limite, repentinamente se manifestam como uma formação qualitativamente nova.
No esquema geral da periodização vigotskiana, essas idades estáveis compreendem tempos mais prolongados que as idades críticas. São elas: a) primeiro ano (entre o 2o e o 12o mês de vida); b) primeira infância (entre 1 e 3 anos); c) idade pré-escolar (entre 3 e 6 anos); idade escolar (entre 8 e 12 anos); adolescência (entre 14 e 18 anos). Assim, analisando-se a infância pelo critério cronológico, observa-se que sua quase totalidade corresponde a períodos estáveis. Mas se a análise recair sobre o término de uma idade estável e início de outra, aí se verá que ao longo do processo de desenvolvimento enormes e importantes transformações na personalidade da criança são operadas.
As passagens de uma idade a outra são marcadas por crises mais ou menos violentas. Vigotski denomina esses períodos como: a) crise pós-natal, período de transição e de conexão entre os últimos meses do desenvolvimento intra-uterino e as primeiras semanas após o nascimento; b) crise do primeiro ano; c) crise dos três anos; d) crise dos sete anos; e) crise dos 13 anos.
Para Vigotski, as crises, que são mais ou menos localizadas nos momentos de viragem de uma idade a outra, são parte inseparável do processo de desenvolvimento psicológico. Os períodos de crise apresentam algumas peculiaridades e por elas se distingue das idades estáveis. Durante uma crise, num lapso de tempo relativamente curto, mudanças bruscas e rupturas acontecem no psiquismo da criança, de modo que sua personalidade muda por completo.
As crises surgem de forma quase imperceptível, o que torna bastante difícil determinar seu começo ou seu fim em relação às idades contíguas. Esses períodos críticos claramente apresentam um momento de agudização, sendo isso que os diferencia sensivelmente das idades estáveis. Essas duas características, o surgimento “repentino” e a agudização constituem uma primeira peculiaridade dos períodos de crise.
Uma outra peculiaridade desses períodos consiste em que muitas crianças, quando vivenciam o momento agudo, tornam-se muito reativas à educação. Quando se trata de escolares, observa-se queda no rendimento e no interesse pelas aulas e diminuição geral de sua capacidade de trabalho. Nos períodos de crise, ainda, muitas crianças podem entrar em conflito mais ou menos agudos com as pessoas de seu entorno, bem como sofrer dolorosas vivências e conflitos íntimos. Todavia, isso tudo não se trata de regra com poucas exceções; muitas crianças “em crise” não apresentam dificuldades educativas, tampouco de rendimento escolar e de trabalho.
Os elementos determinantes do caráter concreto da manifestação das crises devem ser buscados não nas disposições internas da criança, mas nas condições materiais, concretas de seu contexto externo. Por isso, dadas as múltiplas conformações contextuais nas quais as crianças, como um todo, estão inseridas, encontram-se muitas possibilidades díspares e multiformes de manifestação das idades críticas. E mesmo que se considerem crianças inseridas em contextos muito parecidos do ponto de vista social e de desenvolvimento, ainda assim as diferenças entre elas serão muito mais agudas nos períodos críticos do que nas idades estáveis.
Uma terceira peculiaridade das idades críticas consiste em que as crianças, ao entrarem nesses períodos, perdem o ímpeto com que antes se entregavam às atividades que lhes despertavam o interesse ou que ocupavam a maior parte de seu tempo e atenção. Pode ser observado, ainda, nessas crianças como que um vazio em suas relações externas e em sua vida interior.
Mas, em que pesem essas peculiaridades, Vigotski não considera as etapas críticas como essencialmente negativas. Na verdade, o fato de o complexo percurso em direção ao crescimento conter em si processos de redução e de extinção, é indicativo do caráter dialético do processo de desenvolvimento psíquico. Então, se desenvolvimento significa avanço, mesmo os momentos críticos seriam de criação, por mais contraditório que isso possa parecer. Com efeito, o desenvolvimento nunca interrompe sua obra criadora e os processos involutivos, na verdade, subordinam-se e dependem dos processos positivos de construção da personalidade, formando com eles um todo indissolúvel. Sucede, portanto, que o trabalho destrutivo que se realiza nos períodos críticos é parte de um processo de crescimento e, em sendo assim, trata-se de elemento indispensável da criação do novo.
Enfim, o essencial dos períodos críticos é o surgimento de formações novas peculiares, ainda que transitórias e que não se conservem na personalidade tal e qual o são nesses períodos, como acontece com as formações novas das idades estáveis. As formações novas das etapas críticas são assumidas pelas formações novas das idades estáveis seguintes, incluindo-se nelas como instâncias subordinadas. Dessa forma, as mesmas deixam de ter existência própria, tornam-se dependentes e desaparecem como tais, embora continuem participando do desenvolvimento em estado latente.
Para Vigotski, o processo de desenvolvimento em cada idade constitui um todo único, uma formação global como uma estrutura determinada, apesar da complexidade de sua organização e composição e da multiplicidade de processos parciais que o integram. A estrutura da idade – ou da personalidade – é essa formação global, que, por si mesma, determina o destino e o significado de cada uma de suas partes constituintes; as quais atuam, por sua vez, de modo coordenado. Por isso, em cada período do desenvolvimento, as mudanças na estrutura interna da personalidade ocorrem como um todo e as leis que regulam, esse todo determinam a dinâmica de cada uma de suas partes. Isso significa que essas estruturas específicas para cada idade – que, afinal, são as neoformações – são como que elementos que guiam o desenvolvimento. E essas estruturas, por serem específicas, nunca se repetem durante todo o tempo do desenvolvimento psicológico.
Vigotski distingue entre linhas centrais e/ou principais de desenvolvimento e linhas acessórias de desenvolvimento. As linhas principais dizem respeito aos processos mais imediatamente relacionados com a neoformação principal de determinada idade; as linhas acessórias são os processos e mudanças parciais que ocorrem nessa mesma idade. Na dinâmica do processo de desenvolvimento, as linhas principais numa idade se convertem em linhas acessórias noutra, uma vez que o significado e o peso específico de cada uma dessas linhas se modificam na nova estrutura.
Por exemplo, no primeiro ano de vida, a nova formação básica caracteriza-se pelo incremento gradual dos recursos energéticos da criança, sobretudo do sistema nervoso, como premissa indispensável para todas as linhas de desenvolvimento superiores e a mudança na dinâmica da relação do bebê com o mundo. Assim, embora seja a comunicação a via preferencial, através da qual a criança “comunica” suas necessidades, no primeiro ano a criança está privada do seu meio mais essencial: a linguagem humana. Por essa razão, a comunicação pré-lingüística é visual e ativa. No entanto, mais que uma comunicação baseada no entendimento mútuo, “trata-se de manifestações emocionais, de transferência de afetos, de reações positivas ou negativas ante a mudança do momento principal de qualquer situação em que se encontra o bebê – o aparecimento de outra pessoa” (VYGOTSKI, 1996, p. 304). Quer dizer, ainda que a criança obtenha aquisições importantes na comunicação no primeiro ano de vida e a linguagem se constitua como um dos mais importantes elementos de mediação, esta é acessória em relação aos ganhos de natureza biológica; porque, nessa etapa da vida, a “linguagem” está muito mais ligada a necessidades de natureza vital ou afetiva.
Mas, na medida em que o desenvolvimento progride, na primeira infância a linguagem adquire o status de principal meio de comunicação e de compreensão da linguagem dos outros. Assim, pois, nessa etapa a linguagem liga-se firmemente com o processo de gênese da consciência. Desse modo, representa a linha central sobre a qual se assenta o desenvolvimento infantil e sob cuja interferência as relações entre a criança e seu meio na primeira infância se transformam substancialmente. Por conseguinte, a linguagem se torna a linha principal do desenvolvimento e a que leva a mais importante nova formação dessa etapa: a consciência. E assim, sucessivamente vão se modificando as linhas de desenvolvimento: o que é o acessório numa etapa, noutra pode vir a ser o principal.
Para Vigotski, uma compreensão plena do desenvolvimento psicológico exige, ainda, que se leve em conta a dinâmica do processo de transformação das formações globais que são as estruturas das idades. Ou seja, é preciso compreender o mecanismo através do qual as neoformações aparecem, se consolidam e novamente se transformam, uma vez que essas estruturas das idades não são estáticas. E para se compreender esse processo, a condição essencial e primeira é considerar que as relações que se estabelecem entre a criança e seu entorno, sobretudo o social, são dinâmicas, específicas e únicas para cada idade. Então, os modos de relação entre uma determinada criança da idade escolar e seu contexto não se repetirão quando essa mesma criança estiver na adolescência, por exemplo.
Na análise que faz da dinâmica da idade, Vigotski introduz o conceito de situação social do desenvolvimento, que, em rigor, significa o contexto no qual a criança se insere – e o modo como se insere – em cada idade específica. O autor considera a situação social do desenvolvimento como ponto de partida para todas as transformações dinâmicas que se produzem no desenvolvimento durante o período de cada idade. Com efeito, é nesse contexto relacional que se determinam “as formas e a trajetória que permitem à criança a aquisição de novas propriedades da personalidade, uma vez que a realidade social é a verdadeira fonte do desenvolvimento, a possibilidade de que o social se transforme em individual” (VYGOTSKI, 1996, p. 264).
Para Davidov (1988), o conceito de situação social do desenvolvimento tem relação direta, e constitui o ponto de partida para o conceito de atividade dominante, desenvolvido por Leontiev. Esse autor considera esses dois conceitos, o de Vigotski e o de Leontiev, como sinônimos.
Partindo da concepção vigotskiana, Leontiev desenvolveu a idéia de que em cada etapa do desenvolvimento existe uma atividade principal que domina todo o processo de constituição do psiquismo. Mas a atividade principal (atividade dominante), segundo esse autor, não deve ser simplesmente compreendida como aquela que é mais observada do ponto de vista quantitativo, ou como aquela à qual a criança dedica mais tempo. Da mesma forma, não se trata de que a atividade dominante exclua outras possibilidades. Por exemplo, na primeira infância a atividade dominante é o jogo, a brincadeira, mas isso não significa que outros tipos de atividade sejam totalmente ausentes nesse período.
A atividade dominante é aquela “cujo desenvolvimento governa as mudanças mais importantes nos processos psíquicos e nos traços psicológicos da personalidade da criança, em certo estágio de seu desenvolvimento” (LEONTIEV, 1998, p. 65). Em outras palavras, a atividade dominante é o critério que marca o (principal) modo como a criança se relaciona com sua realidade num determinado estágio, decorrendo daí sua enorme importância para a constituição do psiquismo.
Enfim, o que caracteriza uma idade é a atividade dominante. Mas cada idade tem também um conteúdo específico dado na cultura. Então, considerando que o desenvolvimento ocorre porque o sujeito se apropria das formas de cultura socialmente elaboradas, e que essas formas são mutáveis, então devemos concordar que o conteúdo de cada estágio do desenvolvimento é também mutável, embora esses estágios obedeçam a uma seqüência precisa. Quer dizer, apesar do caráter periódico do desenvolvimento, o conteúdo dos estágios é dependente das condições concretas nas quais ocorre o desenvolvimento. Desse modo, afirma Leontiev, “não é a idade da criança, enquanto tal, que determina o conteúdo do estágio de desenvolvimento; os próprios limites de idade de um estágio, pelo contrário, dependem de seu conteúdo e se alteram pari passu com a mudança nas condições histórico-sociais” (LEONTIEV, 1998, p. 66).
Se aceitarmos esses critérios para a periodização e para a delimitação temporal de cada idade como válidos, e que esses limites dependem das formas de atividade social encarnadas nas formas da cultura, então teremos de admitir a impossibilidade de uma periodização válida para todos os tempos e lugares. E disso resultará termos de admitir que qualquer periodização só pode fazer sentido num determinado contexto, ainda que amplo, como por exemplo a sociedade ocidental escolarizada do início do século XXI.
De todo modo, o fato é que as pessoas vão avançando em seu desenvolvimento ao longo da vida. Isto é, as idades vão sendo superadas, as atividades dominantes vão se substituindo, enfim, o domínio da realidade objetiva vai se efetivando sob outras bases na medida em que o sujeito cresce e experimenta o mundo. Portanto, ainda que o conteúdo de uma idade dependa da realidade material objetiva, há que se considerar a existência de algum mecanismo que provoca e desencadeia a mudança da atividade dominante.
Esse mecanismo começa a evidenciar-se a partir do momento em que a criança começa a se dar conta de que o lugar que costuma ocupar no mundo das relações humanas que a circunda não corresponde mais às suas potencialidades e se esforça para modificá-lo (LEONTIEV, 1998). Isto é, o que desencadeia a viragem é a percepção de que existe uma contradição entre o modo de vida da criança e suas potencialidades, que, em tese, nesse momento já o superaram.
Enfim, a compreensão de uma determinada idade exige que se leve em conta a neoformação característica da mesma e a dinâmica da passagem de uma idade a outra. Ou, dizendo-se de outro modo, as mudanças na atividade dominante e o jogo de alternância entre idades estáveis e momentos de crise. Então, o modo como Vigotski teoriza sobre o problema da periodização do desenvolvimento psicológico exige, sobretudo, que consideremos um ponto: tendo em vista que o conteúdo de cada estágio subordina-se aos modos de relação social, que são mutáveis, os momentos de início e término dos estágios são variáveis, inclusive dentre as pessoas de um mesmo grupo etário. Isto é, embora os estágios sejam mais ou menos semelhantes em diferentes pessoas, não há nenhuma possibilidade de um esquema universal que represente a dinâmica entre o interno e o externo no processo e desenvolvimento.
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MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã (Feuerbach). 6.ed. São Paulo: Hucitec, 1997.
OLIVEIRA, M. K. & TEIXEIRA, E. A questão da periodização do desenvolvimento psicológico. Em OLIVEIRA, M.K.; SOUZA, D. T. R. & REGO, T. C. (Orgs.). Psicologia, educação e as temáticas da vida contemporânea. São Paulo: Moderna, 2002.
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VYGOSTKI, L. S. Obras Escogidas – tomo IV. Madrid: Visor/MEC, 1996.
Publicado em 20/03/2008 14:41:00
Edival Sebastião Teixeira – Doutor em Psicologia da Educação pela Universidade de São Paulo
Professor de
Psicologia na Universidade Tecnológica Federal do Paraná / Campus Pato Branco .
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