9 Os Caminhos Da Psicopedagogia No 3 Milenio

* Texto de abertura da comemoração dos 15 anos do CEPERJ (Centro de Estudos Psicopedagógicos do Rio de Janeiro). Rio de Janeiro, dez. 1997.

Os estudos futuros, necessariamente, facilitarão a distinção do objeto de estudo da Psicopedagogia dos objetos de estudo da Psicologia e da Pedagogia e, ao mesmo tempo, a complementaridade dessas três áreas do conhecimento.

Introdução

Ao escrever sobre o tema Os caminhos da Psicopedagogia no terceiro milênio, vivenciei um duplo desafio: o de pensar sobre o que deveria acontecer no campo psicopedagógico nos anos vindouros, para o qual se faz necessário efetuar previamente um balanço do que foi feito até agora nesse domínio do conhecimento, de forma tal que o referido balanço traga uma visão de conjunto, e o de permitir uma previsão para depois do ano de 2000.

Por isso, esta exposição foi organizada em duas partes: a primeira implica uma visão retrospectiva que denomino “O balanço”; a segunda, que pretende ser uma reflexão sobre o futuro, chamo de “Os caminhos”.

No meu entender, a análise do passado pode ser realizada segundo três dimensões: a teórica, a técnica e a institucional, enquanto que o projeto para o futuro está constituído por um conjunto de ideias que podem formar um programa de revisão de conceitos e técnicas já estabelecidos, como também a construção de novos conceitos e novas técnicas.

O balanço

Cabe assinalar que, embora estes três domínios –   o teórico, o técnico e o institucional – venham a ser comentados separadamente em função de se tentar ser o mais claro possível, a realidade é que os três desenvolvem-se simultaneamente, realimentando-se de forma recíproca.

A revisão da evolução teórica permite determinar distintos momentos. Um anterior à constituição do modelo em que se baseia a Instituição que nos convida para a comemoração do seu aniversário; e outro momento em que se desenvolve a Epistemologia Convergente, sobre o qual me centrarei mais precisamente, sem ignorar que também se desenvolveram outras linhas.

Anterior à Epistemologia Convergente, é possível reconhecer vários momentos.

Um período pré-científico, que vai aproximadamente até o Século XVIII, quando   não existia um claro conceito de aprendizagem e de dificuldades de aprendizagem, visto que as mesmas eram tidas como doença mental, a qual, por sua vez, era explicada por uma concepção demonológica ou sobrenatural.

O período seguinte, que vai o final do Século XIX e começo do Século XX, é uma etapa de transição entre as explicações pré-científicas e as científicas. Nesse período, Itard, por um lado, e Pinel, por outro, propuseram, respectivamente, uma explicação ambiental e outra biológica para a parada do desenvolvimento, apresentado pelo “menino selvagem” de Aveyron. Ambos os determinismos – o ambiental e o biológico – respondem a concepções naturais da doença.

A etapa posterior começa com o nascimento de um sem número de escolas psicológicas contemporâneas: o Estruturalismo de Wundt e Titchner; a Psicanálise de Freud; o Funcionalismo de Dewey e Woodwort; a Reflexologia de Pavlov; a Gestalt de Wertheimer, Koehler e Koffka; a Topologia de Lewin; o Behaviorismo de Watson; e os subprodutos psicológicos da escola piagetiana. Todas essas escolas consideravam que sua “causa” – o inconsciente, o estímulo, a estrutura etc. – era a causa única e suficiente.

O último período inicia-se, aproximadamente, durante a década de 1930 e pode ser chamado de período de integração de ideias.  Assim chamado, o mesmo se caracteriza dessa forma porque alguns cientistas abandonam suas posições irredutíveis e mergulham no conhecimento de outros, o que permite a tomada de consciência das limitações, das descrições e das explicações das distintas correntes, com a qual se gera um movimento integracionista.

A Argentina, mais precisamente a cidade de Buenos Aires, foi um lugar privilegiado tanto para o desenvolvimento da integração de teorias, como da Psicopedagogia.

Três fatos, embora lamentáveis, contribuíram para o desenvolvimento da Psicopedagogia na Argentina: a Guerra Civil Espanhola, a Segunda Guerra Mundial e a repressão militar.

A Guerra Civil Espanhola, ocorrida na década de 1930, motivou a emigração de um grande número de intelectuais; entre os quais, cabe mencionar José Ortega y Gasset, que residiu, durante sua peregrinação, entre outros lugares, em meu país. Trouxe consigo sua visão humanística com a qual sensibilizou os círculos mais renomados, produzindo uma renovação de conceitos e métodos intelectuais que prepararam terreno para o passo seguinte: as consequências intelectuais da Segunda Guerra Mundial.

A luta armada que aconteceu entre os anos 1940 e 1945 fez com que um número significativo de psicanalistas europeus buscassem na América do Sul um novo lar, beneficiando novamente a Argentina, ao difundir entre nós suas práticas e seus conhecimentos. Pouco tempo depois, começou a se conhecer a teoria piagetiana, produzindo-se uma significativa oposição entre os seguidores de ambas as escolas.  

As décadas de 1970 e 1980 foram testemunhas da mais crua repressão e intimidação que sofrera a Argentina. É importante lembrar que desapareceram 30.000 pessoas, das quais 4.400 foram jogadas vivas no mar. Isso produziu, simultaneamente, uma dispersão e um enclausuramento de intelectuais, em particular todos aqueles cuja profissão começava com “psi”: Psiquiatra, Psicologia, Psicopedagogia etc.

Enquanto os colegas que emigraram saciaram-se de outras fontes, ao mesmo tempo em que levaram seus conhecimentos a inúmeros lugares, aqueles que ficaram enclausurados dedicaram-se à reflexão, à investigação clínica e à produção de escritos. Entre estes últimos, encontra-se quem lhes fala, o qual elaborou um paradigma denominado Epistemologia Convergente, consistindo na assimilação recíproca de contribuições da Psicanálise, da Escola Piagetiana e da Psicologia Social.

A revisão da dimensão técnica permite lembrar, dentro dessa linha, a elaboração de instrumentos conceituais, recursos diagnósticos, assistenciais e preventivos, individuais e grupais.

Entre os instrumentos conceituais que se elaboram, cabe mencionar: o esquema evolutivo da aprendizagem, o processo diagnóstico, a matriz do pensamento diagnóstico individual, o quadro nosográfico das dificuldades de aprendizagem e os critérios de seleção para a inclusão em grupo de tratamento psicopedagógico. Por outro lado, quanto aos instrumentos concretos, encontram-se, entre outros: a entrevista operativa centrada na aprendizagem, as técnicas projetivas psicopedagógicas, a caixa de trabalho individual, a caixa de trabalho grupal e os recursos diagnósticos e terapêuticos, individuais e grupais.

É importante mencionar que, além dos trabalhos com as unidades de análise indivíduo e grupo, começaram as primeiras tentativas de sistematizar  , conceitual e tecnicamente, outras duas unidades de análise: a instituição e a comunidade. Aproximadamente até 1996, eu acreditava que a Psicopedagogia possuía somente duas unidades de análise: o indivíduo e o grupo, ambas como unidades funcionais; ou seja, que o grupo, apesar de possuir heterogeneidade estrutural – por seus diferentes integrantes –, tinha homogeneidade funcional e aprendia como um todo, e não como uma soma de indivíduos.

Algumas circunstâncias colocaram-me frente a trabalhos com outras duas unidades: a instituição e a comunidade. Trabalhos que me permitiram realizar aproximações preliminares sobre as mesmas. O trabalho de nível institucional consistiu no Estudo da Universidade de Buenos Aires, a pedido da Reitoria dessa Alta Casa de Estudos, e os trabalhos a nível comunitário foram realizados para o Estado de Neuquen (na Argentina), cujo governo desejava desencadear o processo de industrialização, e para a Prefeitura de Santo André (no Brasil), cuja Secretaria de Cultura, Educação e Desporto queria estudar os mecanismos de aprendizagem da comunidade desfavorecida que não se sentia – entre outras coisas – com o direito a usar os lugares públicos. A população pertencia às favelas e, por um obstáculo emocional,   não se sentia com direito a usar praças, passeios etc.

O desenvolvimento institucional – novamente restrito às instituições vinculadas à Epistemologia Convergente – começou, em 1977, com a criação do Centro de Estudos Psicopedagógico em Buenos Aires. Neste, organizaram-se quatro departamentos: docência, assistência, investigação e publicações. Cada um dos quais alcançou distintos graus de desenvolvimento em função de diferentes fatores internos e externos. O departamento que mais se desenvolveu foi o de docência; logo em seguida, o de assistência; finalmente, os de publicações e investigações.

O Departamento de Docência, dedicado à formação de pós-graduação, oferece essa formação a todo graduado em Pedagogia, Psicologia, Fonoaudiologia, Medicina etc., como também a psicopedagogos que se interessam pela linha teórico-técnica desse Centro de Estudos Psicopedagógicos. Os três anos de formação – 1) teoria e técnica psicopedagógica; 2) contribuições da escola psicanalítica e de Genebra; 3) prática assistencial: diagnóstico e tratamento – são trabalhados com uma exposição teórica que serve de disparador, seguida de grupos operativos e/ou dramatizações. Também oferece a formação em núcleos, no interior do país, além de se fundarem Centros de Estudos Psicopedagógicos no Brasil, que seguem a linha do Centro de Estudos Psicopedagógicos de Buenos Aires.

O Departamento de Assistência adotou, ao longo desses anos, três modalidades: assistência individual, assistência grupal e assessoramento. As duas primeiras, além de terem sido implementadas na sede do Centro de Estudos Psicopedagógicos, também foram levadas a cabo em hospitais: Centro de Saúde Mental de La Matanza, Hospital Ramos Mejía, Hospital Infanto-juvenil Dra. Carolina Tobar García e, em nível de assessoramento, na Direção de Inovações Educativas da Secretaria de Educação da Municipalidade de Buenos Aires.

Em 1982, logo depois de alguns cursos, tanto de Psicopedagogia, como de grupo operativo, fundou-se [no Brasil] o Centro de Estudos Psicopedagógicos do Rio de Janeiro – CEPERJ; posteriormente, em 1988, o CEP – Curitiba; em 1992, o CEP – Salvador; recentemente, foi solicitada e concedida a permissão para se criar o CEP – Belo Horizonte, em Minas Gerais.

Cabe mencionar que, tanto na Argentina como no Brasil, algumas tentativas de criar outros centros, um na Argentina e dois no Brasil, foram frustradas.

O Departamento de Publicações, em 1981, em combinação com o Departamento de Docência, convidou a Dra. Elsa Schmid-Kitsikis, titular da Cátedra de Clínica da Universidade de Genebra, para que nos visitasse na Sede de Buenos Aires, onde proferiu seminários, conferências e realizou supervisões. Também, deve-se dizer que o Departamento de Publicações produz cadernos, traduz artigos e elaborou publicações.

Os caminhos

O fazer da Psicopedagogia no terceiro milênio – também visto na perspectiva da Epistemologia Convergente – traz, conjuntamente, dois desafios principais e indissociáveis: aperfeiçoar os resultados alcançados e abordar as eventuais provocações do futuro.

O aperfeiçoamento dos resultados alcançados pode ser generalizado sob a ideia de uma definição mais inclusiva e profunda do objeto de estudo da Psicopedagogia e, vale dizer, da aprendizagem e dos recursos diagnósticos, preventivos e assistenciais utilizados nas quatro unidades de análises já mencionadas.

Mesmo que os resultados pré-citados tragam uma clara dedicação ao sujeito individual, nos quais se privilegiam os aspectos cognitivos e afetivos (como construções sociais), acho indispensável levar a cabo investigações clínicas e experimentais que aprofundem mais especificamente essa interação em situações de aprendizagem.

Até agora, foram estudados três fenômenos: os da dimensão cognitiva, os da dimensão afetiva e os da interação entre ambos.

Inter-relações das dimensões cognitiva e afetiva na conduta do aprendiz (VISCA, 1993, p. 36)

O que falta estudar é a influência que a aprendizagem produz em ambas as dimensões e na interação, o que poderia ser apresentado como o gráfico que se segue.

Inter-relações das dimensões cognitiva e afetiva na interação entre aprendizes

Também é necessário aprofundar-se nos conceitos de aprendizagem grupal, institucional e comunitária. Indivíduo, grupo, instituição e comunidade são, sem dúvida alguma, organismos vivos que aprendem.

Unidades de análise

Unidades de análise do processo de aprender

Cada uma delas influi na precedente, condicionando-a.

Influência de umas unidades sobre as outras

A influência das unidades de análise da aprendizagem umas sobre as outras

Também se conhecem, até certo ponto, os elementos constitutivos de cada unidade e sua interação dentro da unidade. Contudo, esses conhecimentos não bastam.

Os elementos constitutivos de cada unidade são:

Relações entre âmbitos da aprendizagem, estratégias e aprendizagem

Assim mesmo, cabe mencionar que, muito provavelmente, a Psicopedagogia deva incorporar, ao estudo dos mecanismos de aprendizagem, uma nova e quinta unidade de análise: “a cultura”.

Embora as unidades de análise, comunidade e cultura apareçam confundir-se, e não seja fácil realizar uma clara distinção entre ambas, seguindo o critério de maior inclusão, anteriormente utilizado, pode-se dizer:

  1. que as culturas contém em seu seio comunidades;
  2. que uma cultura possui um conjunto de valores e respostas compartilhadas;
  3. que a interação entre culturas produz fenômenos que podem alcançar ou não um grau de estabilização.

Entre tais fenômenos, cabe mencionar a difusão, quase no mesmo sentido da física, ou seja, a integração do novo; a desintegração de uma das culturas; o estorvo cultural, ou seja, uma parte da cultura evolui rapidamente e outra não.

As culturas são organismos vivos que se assemelham ao indivíduo; no entanto, tem uma maior complexidade que se poderia bem dizer: é de 5ª potência (indivíduo = 1ª potência; grupo = 2ª potência; instituição =  potência; comunidade =  potência; cultura =     potência) e, ao mesmo tempo, é a mais inclusiva.

Organismos que aprendem e sua complexidade

As culturas, como o indivíduo, para sobreviverem, abrem-se e fecham-se ante os estímulos do meio, ou seja, podem crescer, deter-se, desintegrar-se e apresentar decalagens em sua configuração.

Sem lugar a dúvidas, no momento atual, em função dos avanços tecnológicos que facilitam a comunicação, essa unidade de análise adquire uma relevância fundamental; ao mesmo tempo em que encerra a série das cinco unidades, reverte-se sobre cada uma e sobre o indivíduo muito especialmente, fazendo que, nele, seja introduzido um conjunto de valores e condutas.

Justamente o governo da Cidade de Buenos Aires e a UNICEF – Argentina implementaram, conjuntamente, em 26 de Outubro, uma experiência com crianças e jovens de 8 a 17 anos, a qual se encontra a meio caminho entre dois níveis: unidade de análise comunidade e unidade de análise cultura.

Essa experiência, denominada “Todos votam e eu também”, consiste em consultar a opinião dos jovens coincidentemente com a data dos comícios para legisladores da Cidade de Buenos Aires; ao mesmo tempo em que os exercita na aprendizagem da participação e expressão democrática de suas opiniões.

Cabe mencionar que esse estudo é o terceiro que se leva a cabo na América, mas com uma diferença em relação aos anteriores: as questões foram formuladas por crianças e jovens, e não por adultos.

Essa experiência não só envolve a comunidade, como também a cultura, já que pretende modificar, de forma operacional, a concepção de que os adultos têm razão e as crianças e jovens não   têm  .

O estudo das culturas como unidade de análise exige que o psicopedagogo realize um trabalho em equipe com o sociólogo, psicólogo social, o antropólogo e historiador, sem perder seu objeto de estudo: a aprendizagem.

De outra forma, mas não totalmente desvinculando ao que se acaba de dizer, é importante que, num futuro próximo, de um ponto de vista concreto, prático e técnico, aprofunde-se a Psicopedagogia institucional em suas modalidades: a Psicopedagogia “na instituição” e a Psicopedagogia “da instituição”. Enquanto a primeira aproxima-se da prática do consultório, a segunda introduz-se na instituição como totalidade. Enquanto a primeira permite, entre outras coisas, que as pessoas sejam incorporadas em um nível institucional – fábrica, escola, oficina etc. – adequado às suas possibilidades, a segunda facilita o desenvolvimento da aprendizagem da instituição.

Aqui, também, cabe expressar o anseio de que a falsa antinomia do sociologismo e o psicologismo deixe de ser uma resistência e transforme-se em opostos complementares.

Outro caminho que deverá ser transitado no próximo milênio é o da investigação em Psicopedagogia. As pesquisas psicopedagógicas são essenciais para o processo dessa área do conhecimento, tanto desde o ponto de vista teórico como do   técnico. As ciências que não realizam investigações são as que menos progridem. Muito provavelmente pela juventude da Psicopedagogia,   não há um número necessário de investigações de caráter estritamente psicopedagógico. Os estudos futuros  , necessariamente, facilitarão a distinção do objeto de estudo da Psicopedagogia dos objetos de estudo da Psicologia e da Pedagogia e, ao mesmo tempo, a complementaridade dessas três áreas do conhecimento.

Por último e para encerrar essa exposição, direi que outra meta da Psicopedagogia, em geral, e da Epistemologia Convergente, em particular, é a de fundar Núcleos de assistência, docência e investigação que socializem, democratizem e humanizem o nosso fazer psicopedagógico.

Autor

Jorge Visca – criador da Epistemologia Convergente

Formou-se em Ciências da Educação pela Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires e Psicologia Social na Primeira Escola Privada de Psicologia Social, fundou o Centro de Estudos Psicopedagógicos na cidade de Buenos Aires e os Centros de Estudos Psicopedagógicos no Rio de Janeiro, Curitiba e Salvador, no Brasil.

Professor de pós-graduação na Universidade de Buenos Aires e universidades Brasileiras na especialidade psicopedagógica, tem numerosas publicações no país e no exterior e participou de congressos internacionais que representam a Argentina.

Foi membro de jurados para a eleição de professores em várias universidades,  dirigiu e co-dirigiu estudos e pesquisas em educação e psicopedagogia.

Contato: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.