3344 A Religiao E A Espiritualidade No Manejo Etico Na Clinica Psicoterapica

A influência que a religião exerce na vida do ser humano é inerente à sua percepção de mundo, interferindo em sua maneira de ser e agir.

Resumo

A influência que a religião exerce na vida do ser humano é inerente à sua percepção de mundo, interferindo em sua maneira de ser e agir. Deste modo, é necessário refletir de que forma as crenças religiosas pessoais dos psicólogos podem incutir em seus atendimentos clínicos e quais as implicações deste fenômeno na prática. O presente trabalho tem como objetivo compreender como o psicólogo lida com a ética e a religião no atendimento clínico. Foi realizada uma pesquisa exploratória e descritiva, de cunho qualitativo. Foram feitas entrevistas com sete psicólogos clínicos, que responderam um roteiro de entrevista semiestruturada. Os dados foram avaliados por meio de análise de conteúdo de Bardin. Entre os resultados observou-se a dificuldade de uma total imparcialidade, dado que os valores religiosos estão impostos ao indivíduo como introjeções. Por consequência disso, os participantes relatam a necessidade de cuidado e atenção para a obtenção de uma completa neutralidade não só em relação a si, mas também em relação ao outro. Conclui-se que o maior desafio está na abstenção das concepções pré-concebidas sobre a perspectiva religiosa de compreender o homem e que a total imparcialidade é improvável, dado que a identidade de cada indivíduo perpassa por suas crenças e valores agregados a partir da mesma.

Palavras-chave: Ética, Religião, Psicologia, Clínica.

Introdução

A religiosidade e a espiritualidade permeiam as discussões inerentes à história da humanidade. As influências dessas referências são parte inerente do ser humano, independentemente de sua classe social, idade e profissão. Abrangem tanto as relações interpessoais e o âmbito sociocultural, quanto o intrapsíquico do indivíduo, expresso em valores, emoções e comportamentos. Para maior esclarecimento de suas distinções, o conceito de religiosidade está relacionado às práticas religiosas compartilhadas publicamente em instituições do gênero. Já a espiritualidade está relacionada às práticas intrínsecas e particulares do indivíduo, não necessariamente compartilhadas com os outros em ambientes religiosos (ANGERAMI-CAMON, 2002; AMATUZZI, 2008; ANCONA-LOPEZ, 2008; HENNING-GERONASSO; MORÉ, 2015).

A relação entre a ciência e a religião têm sido um assunto bastante discutido e polêmico e com oscilações ao longo da história. Em relação ao saber psicológico, reforça-se que existem diversos teóricos na história da Psicologia que consideram a religiosidade/espiritualidade em suas teorias, a exemplo de Sigmund Freud, Erich Fromm, William James, Viktor Frankl, Abraham Maslow e Burrhus Skinner (HENNING-GERONASSO; MORÉ, 2015). Além disso, as pesquisas em psicologia também se dedicam a identificar como esse fenômeno atua na dinâmica social dos indivíduos, influenciando o seu comportamento, a sua concepção de si mesmo, do outro, do mundo que o rodeia e até mesmo a sua saúde (SANCHEZ; NAPPO, 2007; ALMINHANA; MOREIRA-ALMEIDA, 2008; ALVES, 2010). Por outro lado, o tema não é muito discutido no que se refere à prática de atuação do psicólogo, em especial no âmbito da psicologia clínica, apesar de estar presente nesse contexto, apesar do Conselho Federal de Psicologia (CFP) deixar explícito que não existe oposição entre Psicologia e religiosidade/espiritualidade, pois a Psicologia é uma ciência que reconhece que estas estão presentes na cultura e participam na constituição da dimensão subjetiva do sujeito.

A religiosidade é algo que constantemente surge como conteúdo nas psicoterapias e o psicólogo deve lidar com o tema a partir da importância e significado que possui para o paciente, para que este não seja encarado como alienado ou a religiosidade como algo prejudicial, de forma preconcebida (ANGERAMI-CAMON, 2004). A utilização da significação espiritual e do trabalho com a religiosidade devem ser tratadas como aspecto de grande relevância no contexto clínico. Percebe-se que a entrada nestes dois conceitos deve ser considerada para que o indivíduo seja entendido e trabalhado de forma plena nas questões expressadas no consultório. Não se deve desconsiderar, pois, que esses pacientes/clientes podem possuir religiosidade/espiritualidade e que estas devem ser consideradas, se assim eles o desejarem (GUERREIRO, 2003; PAIVA, 2007).

Por outro lado, o psicólogo deve lembrar que seu código de ética afirma que, apesar de que a relação dos indivíduos com a religiosidade/espiritualidade possa ser analisada pelo psicólogo, nunca deve ser imposta por ele às pessoas com os quais trabalha. Cabe ao psicólogo o respeito à liberdade e a eliminação de quaisquer formas de discriminação, e é vedado a este a indução de convicções religiosas, filosóficas, morais, ideológicas e de orientação sexual. Reforça-se, todavia, que o conhecimento religioso do profissional existe e o conduz na compreensão do indivíduo, na conduta moral, apesar de não dever aparecer para com o outro (cliente/paciente). Um processo que nem sempre é fácil e que, por vezes, pode exigir um cuidado, atenção e “policiamento” do profissional sobre suas ações, posto que cada indivíduo é pleno de unicidade e regido por seus envoltos teóricos, sendo científicos ou abstratos (WACH, 1990). Sendo assim, precisa estar preparado, não só para compreender o sujeito em uma visão imparcial à sua religião, mas, principalmente, se dispor de uma diferenciação entre a verdade que se origina de si e do outro. Estando, ao mesmo tempo, atento a qualquer postura modulada por suas crenças ou de se utilizar delas na condução inconsciente de seus atendimentos (PESSANHA; ANDRADE, 2009).

Compreendendo a complexidade que o tema merece, faz-se necessário refletir sobre a postura do profissional e as dificuldades que passa para manutenção dessa postura de imparcialidade. Alguns profissionais que possuem na forte influência da religião em sua constituição pessoal como sujeito, podem vivenciar uma dualidade entre o “estar propenso a exercerem suas atividades com um olhar parcial e estigmático” ou “buscarem utilizar-se da ética no atendimento para não introduzir costumes e postura religiosa dentro da clínica”.

A dificuldade em abordar a presença do caráter religioso no indivíduo está relacionada ao fato do pouco contato e discussão com o tema na formação desses profissionais. Muitos acadêmicos possuem um contato vago com as questões relacionadas à religião e espiritualidade e detêm uma posição rígida em relação às experiências religiosas que, muitas vezes, podem apresentar como importantes na resolução de casos com dimensão patológica. Além disso, mostram despreparo no atendimento das demandas de sujeitos que tem na sua constituição concepções assimiladas como crendices (ABDALA et al., 2015; CAMBUY et al., 2006). Diante do exposto, o objetivo da presente pesquisa foi compreender como o psicólogo lida com a ética e a religião no atendimento clínico no cotidiano. 

Método

Tipo de estudo

Trata-se de uma pesquisa de cunho qualitativo, do tipo exploratória, que aborda essa temática a partir da contextualização e articulação da realidade presente com a literatura acerca do assunto em questão.

Participantes

Contou-se com a participação de sete psicólogos clínicos, que possuem uma religião, com número de participantes estabelecido a partir do critério de saturação. Para tanto, foram contatados profissionais previamente conhecidos e outros indicados por esses, por meio da técnica da bola de neve. Não houve, portanto, inserção da pesquisa em nenhuma instituição. Os critérios de inclusão dos participantes foram: serem psicólogos que atendem na clínica e que possuem forte ligação com alguma religião. Entre os critérios de exclusão estão: serem psicólogos que possuem religião, mas não trabalham na clínica ou que atendem na clínica, mas não possuem ligação alguma ou vínculo religioso. 

Instrumento

Foi utilizado um roteiro de entrevista semiestruturado, que abordou seguintes temáticas: 1) a posição do psicólogo em relação à religião; 2) a religião como ferramenta de aproximação a dor do paciente; e 3) o lidar com questionamentos ou comportamentos de maneira imparcial e com uma postura neutra na clínica.

Procedimentos Éticos e de Coleta de Dados

Inicialmente, o projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética da Unifor, com parecer N. 807.068, de 15.09.2015. Em seguida, entrou-se em contato com os participantes previamente conhecidos. Foi solicitado que estes lessem e assinassem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), cujo modelo foi elaborado de acordo com a resolução nº 466/12 sobre pesquisa envolvendo seres humanos, informando ao participante que se trata de um estudo científico e que todas as informações serão mantidas em sigilo, bem como o anonimato de sua participação. Em seguida foram feitas entrevistas individuais, em ambiente reservado, de escolha dos mesmos, com o auxílio do gravador.

Análise dos Dados

As entrevistas foram avaliadas a partir da análise de conteúdo de Bardin (1977), seguindo as seguintes etapas: 1) organização da análise; 2) codificação da mensagem; 3) categorização; e 4) inferência.

Resultados e discussão

A construção do trabalho foi elaborada com base em sete entrevistas, que totalizaram 168 Unidades de Contexto Elementar (UCE), divididas em três categorias: 1) A compreensão da religião dos psicólogos (40 UCEs); 2) A influência da religião sobre o processo psicoterapêutico (73 UCEs); e 3) Os conflitos éticos do psicólogo clínico (55 UCEs). No decorrer desta análise serão apresentadas as categorias citadas acima e suas respectivas subcategorias.

Essas três categorias são subdivididas cada uma em duas subcategorias. A categoria 1, “A compreensão da religião pelos psicólogos” composta pelas subcategorias 1.1 (“A particularidade do conceito de religião”) e 1.2 (“O papel da religião na perspectiva do psicólogo”) que se referem a concepção singular e a função da religião  para o psicólogo; a categoria 2 “A influência da religião sobre o processo psicoterapêutico” composta pelas subcategorias 2.1 (“Os aspectos positivos da religiosidade que norteiam o fazer do psicólogo”) e 2.2 (“O cuidado que os aspectos negativos da religiosidade exigem na clínica psicoterápica”) que aludem que o psicólogo lidará com aspectos positivos e negativos na presença do posicionamento próprio e do paciente sobre a religião; a categoria 3 “Os conflitos éticos do psicólogo clínico” composta pelas subcategorias 3.1 (“A postura do psicólogo”) e 3.2 (“A imparcialidade nos atendimentos psicoterapêuticos”) que abordam como se deve ser a postura do psicólogo diante de conteúdos religiosos de seus paciente e a neutralidade na presença dessa temática.

Categoria 1- A compreensão da religião pelos psicólogos

A primeira categoria, composta por 40 UCEs, abordou sobre o termo religião, tratando a concepção de religião para cada participante. Essa categoria se divide em duas subcategorias que seguem abaixo.

A primeira subcategoria “A particularidade do conceito de religião”, composta por 20 UCEs trata sobre a conceituação e percepção dos entrevistados sobre o que seria a religião na visão individual e em amplitude geral. Destaca-se que ocorreram diversas falas que se complementavam e outras que se divergiam, em razão dos psicólogos serem de diferentes instituições religiosas. Assim, os mesmos trouxeram suas ideias sobre o conceito de religião a partir da visão de mundo de suas crenças.

“Religião eu entendo como uma forma realmente cultural, social de organização de pessoas num sentido que tem algo mais subjetivo que as une, algo mais simbólico” (Participante 4).

Segundo Guerreiro (2003) o conceito de religião na concepção atual se encontra em um domínio mais individualizado e privado, por isso não se consolidando somente a partir da cultura de uma instituição religiosa. Desse modo, a cultura se caracteriza como uma religião social, com valores concebidos e adaptados de acordo com o estilo de vida de cada indivíduo.

É importante ressaltar que as divisões anteriormente estabelecidas sobre um indivíduo que seguia costumes religiosos e outro que não se considerava religioso, não se conceitua como em tempos antigos, onde havia uma demarcação clara.  A religião, dessa forma, passou a ser um artifício que sustenta crenças e valores pessoais e não é mais vista como tradição ou herança (GUERREIRO, 2003).

De acordo com Jung (2008) o fator concernente à religiosidade se depara no mundo moderno com um movimento de encaixe a partir da visão de mundo de cada pessoa, viabilizando o bem-estar frente a situações rotineiras. Sendo assim, age em prol do benefício do indivíduo de acordo como a percepção de mundo individual.

A segunda subcategoria “O papel da religião na perspectiva do psicólogo”, composta por 20 UCEs, aborda a fala dos entrevistados acerca da função da religião, tanto para a sociedade quanto para o indivíduo em si, utilizando-se de uma expressão geral que explicita a condição de religioso dos indivíduos. Os entrevistados afirmam que pertencendo ou não a uma instituição religiosa, a própria forma de crer em algo é concebido como ato de fé, configurando, portanto, como uma forma de religião própria. Em outras palavras, sendo coletiva ou individual, essa forma de crer exerce um papel tanto no âmbito privado como se estende moralmente para o âmbito público.

“Aquilo que eu penso, aquilo que eu vivo, a forma como eu desenvolvo a minha vida de um modo geral tem a ver com essa fé, com a fé que eu vivo. Seja em qual aspecto for, tem esse papel de me orientar. Mas tudo tem a ver com a minha fé. Nem tudo tem a ver com a minha religião, no sentido religioso dos símbolos, dos rituais” (Participante 4).

“Porque a religião não é só a religião em si, mas é o apoio das pessoas que estão lá. As pessoas que de certa forma estão ali juntas, com objetivos” (Participante 5).

O papel da religião em sua concepção inicial propunha a responder questões sobre o universo, no intuito de desenvolver um conhecimento abstrato e onipotente sobre o que foi criado. A criação e o papel de cada um nesses espaços se tornou a base de legitimação de um saber (BERGER, 2004).

Categoria 2 – A influência da religião sobre o processo psicoterapêutico

A segunda categoria é composta de 73 UCEs, na qual contempla os relatos sobre a influência que a religião de cada indivíduo exerce, particularmente, no processo terapêutico e no contexto geral. Isto é, retrata quais as principais influências que podem sobressair de um atendimento realizado por psicólogos praticantes de um comportamento religioso e se essas influências são adotadas de forma positiva ou negativa.  Sendo assim, foi solicitado que fossem exemplificados os dois pontos de vista, visto que observamos que, em aspecto unânime, todos os entrevistados citaram pontos positivos e negativos acerca da influência da religião no processo terapêutico de atendimento clínico. Esta categoria se divide, portanto, em duas subcategorias, que serão apresentadas a seguir.

A primeira subcategoria “Os aspectos positivos da religiosidade que norteiam o fazer do psicólogo” é composta por 36 UCEs e refere as avaliações positivas dessas influências explicitadas pelos entrevistados. Segundo eles, essas influências são relacionadas a valores morais que os ajudam enquanto ser humano e ser social a estabelecer um vínculo com os pacientes e os fazem mais solidários com os sentimentos e sofrimentos dos mesmos.

“Eu acho que tem um fator positivo quando você tem a espiritualidade bem desenvolvida. Isso ajuda muito porque te deixa mais centrada, mais presente com você e dessa forma acho que canalizo mais energia para ajudar no processo do outro. Isso é na minha relação aqui professora aluna, mas na minha relação com a clínica também, né? Quando eu estou com um na psicoterapia individual é, esse, essa percepção da minha espiritualidade, de uma crença (quando eu falo espiritualidade também tem a ver com crença) crença em Deus, numa energia superior que está conectada em mim. Quando Deus está em mim eu me sinto fortalecida para ajudar ao outro. Então, quando eu sinto que Deus está em mim, que eu estou alinhada com essa energia superior, eu, eticamente consigo o que é meu e o que é do outro e poder assim ajudar ele nesse processo de deslocamento” (Participante 1)

“Eu acredito que no caso assim, a religião, a minha religião só me ajuda no sentido de compaixão, no sentido de solidariedade, no sentido de cooperação. Foram valores que eu aprendi que facilitam a minha ação como psicóloga e como pessoa na sociedade” (Participante 6).

A segunda subcategoria “O cuidado que os aspectos negativos da religiosidade exigem na clínica psicoterápica” contempla 37 UCEs e evidencia a importância de o psicólogo estar em um estado de atenção para não se utilizar de suas crenças nos atendimentos clínicos. Mediante o exposto, o psicólogo deve ter cuidado nas influências nocivas da própria religião para o paciente, em razão de que esse último poderá ter dificuldade em se responsabilizar por suas atitudes e a levar todas as suas questões para uma culpabilização de um ser superior. Nesse sentido apresenta como um desafio para o psicólogo em saber compreender de modo científico e não apenas espiritual a queixa do paciente com essa demanda.

“Uma senhora, eu já imaginei que tava fazendo a segunda formação né, ela queria a área clínica, imaginei. Mas ela confirmou: ‘Não, eu quero montar uma clínica!’ Eu digo: Ó o conselho de psicologia não permite que você coloque: ‘Só atendo cristãos de tal igreja.’ (era o que ela queria). Você vai receber qualquer pessoa e você não pode simplesmente rejeitar o paciente porque ele é de outra religião. A psicologia não permite isso, que você rejeite, isso é discriminação. Por conta de religião, por conta de raça, por conta de etnia, então se a religião te distância do ser humano e te torna um psicólogo seletivo é um aspecto de influência negativa” (Participante 6)

“Como se fosse uma busca de preencher com o ser superior, onipotente, onipresente, essa falta, né? Como se fosse é… todas as suas falhas, todas as suas fraquezas, ele precisasse se apegar a esse ser maior. A esse pai que vai cuidar, vai proteger, vai resolver digamos todos os seus problemas. Então eu vejo que isso pode atrapalhar o tratamento na forma da pessoa não se auto responsabilizar e isso causar resistências, porque ela tudo espera ou coloca como responsável no outro. No pai do céu ou em Deus: ‘Ah não consigo isso porque Deus não quer!’ ou ‘Não faço isso porque Deus não quer!’ ou então: ‘Sou pecadora, tô pagando pelos meus pecados.’ Pode ser negativo dos dois lados também” (Participante 2).

Conforme Jung (2008) é necessário reconhecer a importância dos valores perpetuados pela religião que trazem em sua essência a aproximação do outro sem julgamentos preconcebidos, ou seja, a aceitação e compaixão, características presentes no trabalho do profissional de psicologia. Sendo assim, desvalorizar essas conjunções seria uma negligencia social, enquanto que a religiosidade é um dos artifícios fundamentais no desenvolvimento do ser humano ao longo da história e, consequentemente, da sociedade. 

Inclusive ao observar marcadamente o envolvimento do paciente com uma religião, pode haver conflitos durante os atendimentos e falta de responsabilização, caso uma intervenção de qualquer ordem implique uma contradição ao que prega a crença do mesmo. Nesse caso, ocorre o que podemos chamar de conflito de interesses, no qual o psicólogo precisa estar também atento se o paciente está alinhado ao tratamento ou se sua religião sabotará o andamento da terapia (BERGER, 2004).

Categoria 3 – Os conflitos éticos do psicólogo clínico

A terceira e última categoria, composta por 55 UCEs, explanou os relatos dos psicólogos sobre os principais desafios pessoais e profissionais em manter a neutralidade de suas crenças dentro do consultório. Partindo do princípio do conhecimento da requerida ética e postura profissional que é regulamentada pelo código de ética profissional do psicólogo, e que, caso não seguida essas regras indicadas, este mesmo está passível de punição e até mesmo do cancelamento do seu registro no Conselho Regional de Psicologia (CRP). Nesse aspecto a utilização da religião nos atendimentos é prejudicial e indevida, se o psicólogo não se abstiver de agir de acordo com suas crenças pessoais na condução da terapia, fazendo uma imposição ao paciente.

A primeira subcategoria “A postura do psicólogo”, composta por 39 UCEs, revela a necessidade de compreensão da distinção entre visão de homem adotada pela ciência e o uso dessa ciência nos atendimentos clínicos e a visão de homem a partir do ponto de vista subjetivo, ou seja, do homem perpassado pelo viés das crenças do psicólogo.

“A religião de um psicólogo não é pra interferir não no seu potencial de trabalho, na sua forma de trabalhar porque ele vai se valer de ferramentas, técnicas e conhecimentos que ele aprende que devem ser necessárias pra ele desenvolver o trabalho dele e se ele achar que não tá conseguindo, a gente tem que entender que isso é uma profissão e que é uma ciência. Eu acho que a nossa fé, nossa religião ela é muito pra gente. É aquilo que nos dá suporte. É aquilo que nos ajuda como pessoa, a nos trabalhar no sentido das emoções, no sentido das relações sociais, no sentido do meu equilíbrio com a minha vida. E pra o outro não é essa demanda que ele traz pra mim, ele não traz uma demanda religiosa” (Participante 4).

“Uma vez que eu abraço a prática da psicologia – eu também sou uma pessoa religiosa -, mas se eu abraço a prática da psicologia, uma coisa que eu faço no meu consultório é baseada na psicologia. Mas no momento que eu quiser, enquanto psicóloga impor a minha religião ao cliente, aí eu tô ferindo o principio ético da psicologia. É preciso uma postura um tanto neutra quanto possível pra não atrapalhar” (Participante 6).

“Quando eu me utilizo da minha base de ordem e não da ética, eu perco a postura. Tem que ficar fazendo todo tempo esse movimento de suspender os a prioris, que é o da redução fenomenológica…” (Participante 1).

A segunda subcategoria “A imparcialidade nos atendimentos psicoterapêuticos”, possui 16 UCEs, aborda o uso da ética na finalidade de se manter imparcial. Contemplou-se a impossibilidade de uma total imparcialidade, dados que os valores religiosos estão impostos ao indivíduo como introjeções e por consequência disso, a incapacidade de uma completa neutralidade não só em relação a si, mas também em relação ao outro, embora se reconheça a necessidade de não expressão de sua religiosidade para o outro.

“Porque quando a gente fala da ética profissional, tem uma questão moral também minha, e que vai dificultar ou não eu estar em relação com ele. Mas da minha relação com o cliente eu não posso tá no automático. Tem que tá o tempo inteiro em vigília” (Participante 1).

“Eu tento na minha prática profissional deixar minha religião de lado, mas acredito que ainda exista sim um mínimo de influência…não dá pra ser imparcial sabe, é questão de também identidade, isso de “estou aqui e sou outra pessoa agora” não existe, só por fora mas os julgamentos tão lá sendo regulados pelo que você acredita, não tem como não, não é nem robô!” (Participante 3).

“Não dá pra ser imparcial em nada. Você não é imparcial com a sua abordagem! Você não é imparcial com nada. A neutralidade ela inexiste. O quê que eu não posso fazer é impor ao outro. A postura é estar atento e poder ouvir a diferença sem querer impor” (Participante 6).

O psicólogo diante da religião deve se afastar dos princípios dessa e exercer uma postura neutra e associada a cientificidade. Apesar disso, sua atuação com os assuntos que o paciente traz, pela ótica religiosa, necessita de um enfoque no elemento humano, se distanciando de suas perspectivas particulares (JUNG, 2008). Sabendo disto, contempla-se que a postura do psicólogo deve estar apoiada na relação por inteiro, não como o detentor do conhecimento religioso de si e do outro e científico. É necessário trazer um olhar multidimensional para o indivíduo e suas questões. Bem como, avaliar regularmente sua posição como profissional e pessoa nessa relação, no intuito não de neutralizar suas crenças pessoais, mas de se abster de utilizá-la na condução do processo terapêutico. Isto se vale tanto para o psicólogo quanto em observação da posição do paciente no que consiste a sua religião de base. 

Considerações finais

Diante do exposto, o presente artigo foi essencial para a compreensão da forma como a religião atua sobre o psicólogo clínico e seu desafio frente à ética da profissão. Apesar de ser pouco abordado no meio acadêmico, em decorrência de outras questões mais pertinentes como as abordagens e suas aplicabilidades, é um assunto que, atualmente, tem levantado debates e separa opiniões.

Nota-se que os entrevistados, no primeiro momento, sentiram-se um pouco desconfortáveis quanto ao tema em questão, por envolver suas religiões e particularidades que seriam evidenciados no momento dos questionamentos éticos. Mostrou a dificuldade de relacionar o atendimento clínico do psicólogo à questão da religião. Constatou-se ainda a dificuldade de manter uma imparcialidade de si quanto ao modo de pensar e agir, ainda que mantendo uma não expressão verbal ao outro sobre sua ideologia. Também, percebeu-se algumas resistências, por parte dos participantes, em relação às situações nas quais foram exigidos a manter a neutralidade frente a pacientes com religião e posicionamentos distintos sobre o viver e o adoecer. Nesse viés, foi possível compreender a ética como uma ferramenta que visa direcionar a atuação profissional apesar de sua identidade religiosa.

Dessa maneira, constatou-se que a espiritualidade, em seu sentido mais amplo, faz parte da vida de todos e qualquer indivíduo que se move a partir de uma concepção creditada de valor, o que faz com que funcione como uma base nas mais diversas situações da vida. Cabe ao profissional compreender as particularidades da visão de si e de mundo de cada paciente que busca atendimento psicológico, e não induzir o paciente/cliente sobre sua própria crença, com o propósito de respeitar suas crenças e valores, para que, juntos, possam vivenciar um processo psicoterapêutico.  

Este debate ainda conota muitas contradições, senso comum e opiniões pessoais, mas contempla-se a necessidade de lançar o olhar sobre o tema, em pesquisas e na formação acadêmica dos profissionais de psicologia, sugerindo-se a ampliação de estudos que explorem a relação, o uso, potencial e limitações entre a religião e a clínica psicológica.

Referências

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ALVES, J. S. Espiritualidade e Saúde / por Joseane Souza Alves. – 2010. 88f. : Il. ; 30cm. Dissertação (mestrado) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Programas de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, São Leopoldo, RS, 2010.

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WACH, J. Sociologia da religião. São Paulo: Edições Paulinas, 1990.

Autor(es)

Cynthia de Freitas Melo – Psicóloga. Doutora em Psicologia. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza. Coordenadora do Laboratório de Estudos e Práticas em Psicologia e Saúde (LEPP-Saúde). Email: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

Camila Maria de Oliveira Ramos – turismóloga e graduanda em Psicologia pela Universidade de Fortaleza. Email: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

Priscila Edimara de Lima Cordeiro – graduanda em Psicologia pela Universidade de Fortaleza. Email: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

Tamires Logrado Aguiar – graduanda em Psicologia pela Universidade de Fortaleza. Email: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

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