A tragédia na velhice
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O envelhecer é visto com temor pelo olhar do outro e está rodeado de estigmas que marginalizam ainda mais esse processo inexorável. Desenvolver-se com uma visão depreciativa acerca dessa etapa do ciclo vital pode gerar uma experiência desagradável, bem como tentativas de se desviar e negar essa condição. Diante disso, como inverter o olhar acerca da velhice? Sendo um criador de si mesmo e de novos valores, como lembra Nietzsche.
Resumo
Os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam um crescimento no número de idosos Brasileiros e um contínuo desenvolvimento dessa estimativa. Essas pesquisas tem despertado a preocupação e a necessidade de um olhar mais atento a essa parcela da população que, atualmente, é vista como um fenômeno complexo. No entanto, o envelhecimento tem sido alvo de estigmas e desvalorização no cenário ocidental, relegando a velhice um papel de inadequação social. Assim, o presente trabalho pretende, ancorando-se em Nietzsche, apontar uma concepção de envelhecimento trágica, privilegiando o lado da possibilidade e não a fatalidade.
Palavras-chave: Velhice. Tragédia. Criação.
Abstract
Data from the Brazilian Institute of Geography and Statistics (IBGE) show an increase in the number of Brazilian elderly people and a continuous development of this estimate. These researches have awakened the concern and need for a closer look at this part of the population that, today, is seen as a complex phenomenon. However, aging has been the subject of stigma and devaluation in the Western scene, relegating old age to a role of social inadequacy. Thus, the present work intends, anchoring itself in Nietzsche, to point out a conception of tragic aging, privileging the side of possibility and not fatality.
Keywords: Old age. Tragedy. Creation.
Introdução
O acentuado crescimento da população idosa tornou as discussões acerca do envelhecimento mais evidentes. O aumento da longevidade e a baixa fecundidade fez com que a pirâmide etária se estreitasse em sua base e sofresse um alargamento em seu topo, indicando a diminuição dos jovens e ascensão das pessoas mais velhas.
Conforme o IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2016) – a expectativa de vida ao nascer está em torno de 75,72 anos, sendo que os idosos representam 8,17% da população Brasileira. Trata-se de um salto considerável se comparado ao ano 2000, onde essa população representava 5,61% do todo e, a estimativa para os próximos anos, é que esse número aumente para 13,44% em 2030. Se comparado às outras faixas etárias, os idosos são os únicos que estão ascendendo nas pesquisas enquanto os outros estão declinando.
A taxa de fecundidade também corrobora para o envelhecimento da população. Ainda de acordo com o IBGE, no ano 2000 a taxa era de 2,30 filhos por mulher. Em 2016 essa taxa já caiu para 1,69. De acordo com os dados apresentados percebe-se que poucas pessoas estão nascendo e, em termos quantitativos, esses estão durando mais em vida, fazendo da população Brasileira uma potencial nação idosa.
Diante disso, nota-se a importância de lançar um olhar mais cuidadoso sobre o tema motivando pesquisas que possam vir a contribuir para o entendimento do acentuado processo de envelhecimento. No entanto, a visão do outro sobre a velhice se dá por uma conotação depreciativa, conforme Jardim, Medeiros e Brito (2006, p. 27) afirmam e completam: “No imaginário social, o envelhecer está associado com o fim de uma etapa; é sinônimo de sofrimento, solidão, doença e morte. Dificilmente neste imaginário se vê algum prazer de viver essa fase da vida”.
É notório que a ênfase sobre essa etapa do desenvolvimento humano se debruça nas perdas que ocorrem, pois ainda existe um entendimento da velhice como um período de hiato do desenvolvimento e declínio das esferas biopsicossociais (STUART E HAMILTON, 2002 apud FERREIRA et al., 2010). Com isso, se abre a questão: No envelhecer, há outros pontos a serem refletidos além das perdas?
O presente trabalho propõe trazer uma visão trágica da velhice e vê-la além dos pré-conceitos e dos problemas a ela associados. Para tanto estabeleceu-se breves diálogos com a filosofia de Nietzsche para demonstrar como estigmas construídos por meio de valores enraizados podem ser ressignificados e receber outra conotação, por excelência, trágica e poiética.
Metodologia
Trata-se de uma revisão narrativa de literatura que se utilizou de artigos científicos publicados anteriormente e livros de alguns autores, se destacando aqui Friedrich Nietzsche (1844-1900). Assim, foi realizada uma coleta do material bibliográfico nas seguintes bases de dados: SciELO, LILACS, PePSIC. Esse tipo de revisão de literatura caracteriza-se, conforme Rother (2007), pela interpretação crítica do autor advinda da análise da literatura empregada para embasar uma concepção teórica. Dessa forma, aponta Rother (2007, p. 5) que “essa categoria de artigos têm um papel fundamental para a educação continuada pois, permitem ao leitor adquirir e atualizar o conhecimento sobre uma temática específica em curto espaço de tempo (…)”
Com isso, coletou-se artigos com os seguintes descritores: “Velhice” AND “Sociedade”, “Envelhecimento”, “Velhice” AND “bem-estar” com o intuito de entender o envelhecimento por um aspecto mais amplo e, por meio disso, realizar aproximações entre a tragédia de Nietzsche e essa vivência tão discutida atualmente.
O envelhecer, o velho e a velhice
A velhice é de fato um momento complexo da existência humana. Falar sobre isso é uma tarefa que requer cautela, principalmente porque não se trata de um estado estanque e determinado. Pelo contrário, percepções que atribuem ao velho somente características de fragilidade ou invalidez correm o risco de serem superficiais e reduzir em demasia a multiplicidade de significações e o caráter de crescimento que neles permeiam (PAPALIA & FELDMAN, 2013).
Destarte, demonstrando a metamorfose do envelhecimento, a história mostra como a velhice foi encarada de diferentes formas no decorrer do tempo. Araújo e Carvalho (2005) apontam para a velhice como uma construção social e que remonta a antigas civilizações bíblicas, gregas e chinesas que a constituíam a sua maneira. À guisa de exemplo, segundo os autores citados, “até o século XIX, a velhice era tratada como uma questão de mendicância, porque sua fundamental característica era a não possibilidade que uma pessoa apresentava de se assegurar financeiramente” (ARAÚJO E CARVALHO, 2005, p. 230).
Com a industrialização e a consequente ascensão do capitalismo que até os dias atuais domina o cenário ocidental, o envelhecimento atribuiu-se um aspecto negativo, como de peso social e improdutividade. A situação social do idoso brasileiro, segundo Mendes et al. (2005) é caracterizada por alguns marcadores importantes, a saber, a aposentadoria, as relações pessoais e os laços familiares. Os autores acreditam que, devido a ótica capitalista predominante, a aposentadoria é vista como a identidade de quem não produz e nem contribui com o crescimento econômico do seu país. Se por um lado há o alivio e a oportunidade de descansar depois de anos de trabalho, há também a sensação de desvalia que pode vir a ser potencializada pelo olhar do outro.
Outro fator salientado pelos autores supracitados são as relações interpessoais que se tornam menos frequentes devido as perdas que tornam o círculo social mais escasso e as constantes transformações tecnológicas e sociais impedem, por vezes, que o idoso consiga acompanhar tal ritmo, restringindo seu suporte social e o deixando a margem. Como resultante, a família assume a função primordial nesse processo: onde podem ser para o idoso um locus de apoio durante esse processo ou, por outro lado, se tornar um estressor quando os membros não auxiliam e impedem autonomia do mesmo (MENDES et al., 2005).
Devido a cultura paternalista, os familiares da pessoa idosa estão, por vezes, inclinados a confundir a falta de independência com a falta de autonomia. Netto (2006, p. 12) define “autonomia como a capacidade de decisão, de comando; e independência como a capacidade de realizar algo com seus próprios meios”. Assim, se faz necessário perceber que, em alguns momentos, na velhice não se tem os meios necessários para realizar alguma tarefa, porém pode existir a capacidade de ter voz e decidir o que é melhor.
Dessa forma, Netto (2006) alerta que:
(…) para um idoso, autonomia é mais útil que a independência como objetivo global, pois pode ser restaurada por completo, mesmo quando o indivíduo continua dependente (…). O que se procura obter é a manutenção da autonomia e o máximo de independência possível, em última análise, a melhora na qualidade de vida (NETTO, 2006, p. 12)
Percebendo as múltiplas facetas que estão atreladas ao envelhecer e a pessoa idosa, Siqueira, Botelho e Coelho (2002) realizou um estudo onde fez uma divisão didática das perspectivas do envelhecimento, resgatadas através de diversos materiais de cunho científico. Em sua análise destaca-se uma primeira visão que nomeia de biológico/comportamentalista na qual o envelhecimento é abordado com ênfase na degeneração fisiológica e os meios de retardar este processo, bem como alavancar pesquisas epidemiológicas para perceber as mudanças no perfil da população e as enfermidades que a atingem, estabelecendo estratégias de proteção para as mesmas.
Tal visão encontra-se diretamente ligada a proposta de retardar o envelhecimento e prolongar a juventude. Objeto de desejo, a longevidade é uma “preocupação constante do homem em todos os tempos” (Araújo e Carvalho, 2005, p. 228), intensificada na contemporaneidade em meio ao capitalismo e sua ênfase na força produtiva jovem. Aqui, parece se encontrar, ao mesmo tempo, a etiologia e os fatores de manutenção da lógica a respeito da velhice.
Dessa forma, na sociedade econômica, a valorização e status social recaem sobre aquele que contribuem com o desenvolvimento econômico de seu país produzindo um sentimento ligado ao sentir-se valorizado e incluso. Assim, a visão biológica/comportamental enfoca as doenças do envelhecimento, e não necessariamente o velho. Acompanhando esse modelo, a medicina atual lança mão de meios para ajudar o velho a sofrer menos impactos causados por tais degenerações fisiológicas, como a reposição hormonal, por exemplo. (CORDEIRO, PINHEIRO, CORREIO, 2015).
Essa ênfase na beleza e no vigor para qual, através da cultura, é encontrada apenas na juventude é reforçada pela mídia que, constantemente, apresenta e reproduz ao seu público o modelo vigente do que é ideal ou correto. À vista disso, “é através dos noticiários que os dados relativos a mortalidade ganham significação e é por meio deles que os debates sobre o prolongamento da vida são polemizados. A mídia atua enquanto moduladora do corpo e da alma do sujeito moderno” (CORDEIRO, PINHEIRO, CORREIO, 2015, p. 977-8).
Portanto, a mídia sendo um grande veículo informativo e essencial na atualidade, pode vir a ser uma das grandes cristalizadoras de pensamentos e valores acerca do envelhecimento. A indústria midiática vende e normatiza que as pessoas se mantenham saudáveis, bem vestidas, belas de acordo com o cânone estético e com a aquisição de bens materiais “necessários” para ser feliz. Como afirma Dantas (2011) a mídia reforça e vende a longevidade. Nesse contexto, a mesma pode produzir um modelo ideal de velhice que poucos podem alcançar relegando a estes sentimentos de desvalia e fracasso.
Então, a mídia atua no modo como nos subjetivamos, podendo, causar terror nos espectadores a fim de que esses se preservem o máximo para que a manutenção da vida possa ocorrer e a roda do capitalismo possa continuar a girar (CORDEIRO, PINHEIRO, CORREIO, 2015). Essa visão é denominada no trabalho de Siqueira, Botelho e Coelho (2002) de “economicistas”, pois ver o idoso no seu aspecto laboral, como alguém que não produz:
Nessa perspectiva, as investigações preocupam-se em situar o lugar dos velhos na estrutura social produtiva, centrando as análises na questão da ruptura com o mundo produtivo do mercado de trabalho, especificamente, na questão da aposentadoria (SIQUEIRA, BOTELHO & COELHO, 2002, p. 902).
Outrossim, ser velho não é apenas ser visto pelo viés laboral ou pelo biológico. Como um ser social e histórico o velho e o seu envelhecer é visualizado como um papel a ser desempenhado. Na perspectiva sociocultural “(…) Parte-se do pressuposto que é a sociedade/cultura que estabelece as funções e atribuições preferenciais de cada idade na divisão social do trabalho e dos papéis na família” (SIQUEIRA, BOTELHO & COELHO, 2002, p. 904). Trata-se de algo conceitual moldado em uma determinada época e que pode vir a sofrer mutações como demonstrado no exemplo anteriormente citado do século XIX.
Visto isso, uma outra perspectiva é abordada aqui. Siqueira, Botelho e Coelho (2002) diz que a concepção “transdisciplinar” privilegia um aspecto mais global do ser humano não o delimitando em partes especificas do processo de envelhecer. Para tanto, ser velho é um processo eminentemente existencial, natural e espontâneo com implicações sociais, biológicas, políticas, econômicas.
Nessa perspectiva, a velhice é percebida como fenômeno natural e social que se desenrola sobre o ser humano, único, indivisível, que, na sua totalidade existencial, defronta-se com problemas e limitações de ordem biológica, econômica e sociocultural que singularizam seu processo de envelhecimento” (SIQUEIRA, BOTELHO & COELHO, 2002, p. 904).
Considera-se a visão transdisciplinar como abrangente e atual, ao perceber o idoso como um enlaçamento complexo, uma pessoa que traz consigo uma herança histórica e influências externas. Assim a velhice é algo que só pode ser aprendida pela própria pessoa que a vive.
Por isso é necessário dar voz a pessoa considerada velha, considerando o que ela tem a dizer sobre si mesma e não necessariamente inferir, por meio de um saber já instituído, o que seria a velhice e colocar tais pessoas nessa redoma sem dar a elas o direito de ser velho a sua maneira. Reprimir a expressão e o sentido de ser dessa pessoa é não permitir que o idoso seja “(…) um indivíduo que interioriza a própria situação e a ela reage” como diz Simone de Beauvoir (1976) citado por Siqueira, Botelho e Coelho (2002, p. 905). E, reagir a situações que são interiorizadas ao longo do tempo é justamente uma das aberturas que a leitura da filosofia Nietzscheana provoca, fazendo deste um grande contribuinte para refletir acerca do trágico na velhice.
Tragédia, poiesis e a velhice
A tragédia como é entendida nesse trabalho não está inserida na compreensão ocidental de catástrofe ou tristeza. A tragédia remonta a Grécia, mais especificamente ao teatro grego e significa em sua etimologia Tragos (Bode) e Oides (Som, música) conotando o “canto para o bode”. Cantar para o bode era uma espécie de ritual que se iniciava toda as vezes que iria começar uma apresentação teatral. O bode era sacrificado e dedicado ao deus Dionísio ao mesmo tempo que os atores ressoavam um coro (FERRARELLO, 2014). O simbolismo que contextualiza esse ritual pode ser considerado como uma libertação. Era no palco que os atores poderiam expressar valores diferentes dos impostos.
Agora, imagine-se vivendo uma vida inteira perseguindo um emprego dos sonhos, que lhe proporcione relativo bem estar e no qual você se sinta contribuindo com algo, para depois, ao se aposentar, o sentimento de valia outrora sentindo, transformar-se em sensação de inutilidade. Imaginou-se?
Em uma sociedade capitalista movida pela lógica do lucro, não deve ser nada agradável e, não é atoa que envelhecer causa espanto para muitos. Assim se inicia, a todo custo, uma batalha a fim de evitar essa fase “pesada” da existência. A indústria cosmética reforça esse receio humano, pois este é diretamente proporcional ao seu lucro e, nesse círculo, os cremes antirrugas são lançados mensalmente, cada qual com suas propostas inovadoras e chamativas, objetivando vencer as cicatrizes suaves do tempo.
O cânone da beleza se forma no engendramento dessa dialética e ganha força em sua luta contra o tempo. O que implica pensar que não é a velhice que causa desconforto, mas aquilo que supostamente está atrelado a ela, quero dizer, a fragilidade, a dependência, o ancorar-se no nada e a morte. Quanto a essa consciência de finitude, Elisabeth Kubler-Ross (2008) observou sensivelmente como o ser humana tende a negá-la.
Esse viver ganha contornos, significações. Em algumas partes do oriente os que tem mais tempo de vida podem ser considerados sábios, alhures no ocidente como peso social (PAPALIA & FELDMAN, 2013). São muitos os pontos de vista, o que torna de difícil compressão o porquê da necessidade de compartimentalizar o viver que corre espontaneamente. Com isso, se faz pensar que o que faz a velhice ganhar um caráter ainda mais enfadonho na nossa sociedade é a própria “massa social”.
Não é coincidência que essas pessoas adquiriram e se tornaram merecedores de atenção depois que a qualidade de vida aumentou e que o humano passou a viver mais, fazendo por consequência a maioria dos indivíduos pessoas a cima de 60 anos, os considerados velhos. Então, futuramente eles serão a massa com a voz mais intensa e para isso se valer é necessária uma mudança de postura quanto a essa vivencia natural.
A transformação deve ultrapassar a barreira que conceitua o idoso como sendo sempre o doente, o improdutivo, o que está prestes a morrer e aquele que vive o tédio como regra. Mas, perceba, todos nós somos suscetíveis a doença, ao tédio, a improdutividade capitalista. Há a necessidade de se ver o idoso não como partes, mas como aponta Ribeiro (2006) está atento a totalidade e ao tempo existencial (Kairos), fonte de sentidos.
Ao contrário da perspectiva pessimista já comentada, acredita-se aqui em uma velhice trágica. O trágico no sentido grego de libertação, de poder ser diferente dos valores vigentes, com outras significações. Sendo o envelhecer poiesis, que para Plantão tem uma conotação de criação humana (NOVELLO, 2008) e, nesse caso, a própria capacidade de se recriar. O envelhecer não precisa ser taxado como os outros o querem; não precisa ser visualizado apenas pelas perdas. Afinal de contas estas acontecem no nosso finito cotidiano em qualquer idade.
O homem é algo que se supera constantemente, já dizia Nietzsche (2012). Em outras palavras: viver é criar! E o trágico da velhice se trata justamente disso. É dizer “não!” a carga simbólica que foi impregnada na velhice no decorrer do tempo. É rechaçar os valores impostos. É superar-se e superar os tabus inconvenientes. A poiesis pode ser um antídoto para esse mal estar. Entretanto, Nietzsche (2012. p. 81), em “Assim falava Zaratustra”, clamava por criadores de novos valores e alertava que para criar são necessárias “dor e numerosas metamorfoses”.
Em “O nascimento da tragédia” há um trecho que exemplifica essa superação e a transvaloração, quando Dionísio se revela no homem:
Agora o escravo é homem livre, agora se rompem todas as rígidas e hostis de limitações que a necessidade, a arbitrariedade ou a “moda impudente” estabeleceram entre os homens. (…) Cantando e dançando, manifesta-se o homem como membro de uma comunidade superior: ele desaprendeu a andar e a falar, e está a ponto de, dançando, sair voando pelos ares (NIETZSCHE,1992, p. 31).
E ao recriar-se e perceber novos valores, o sentimento pode ser traduzido no seguinte trecho:
Aqui nada há que lembre ascese, espiritualidade e dever, aqui só nos fala uma opulenta e triunfante existência, onde tudo o que se faz presente é divinizado, não importando que seja bom ou mau. E assim é possível que o observador fique realmente surpreendido ante essa fantástica exaltação da vida e se pergunte com qual filtro mágico no corpo puderam tais homens exuberantes desfrutar da vida (NIETZSCHE, 1992, p. 36).
A tragédia na velhice encontra-se em assumir a parte apolínia e dionisíaca da existência e criar, mesmo na visão mais pessimista, a arte que é o próprio bem estar. As mazelas do viver encontra-se em quem vive independente da categoria que se enquadre conforme a concepção corrente.
Oswaldo Giacóia Júnior (2000, p. 25) afirma que: “A tragédia é a síntese dessas forças antitéticas: nela se conciliam, por um lado, a força cega e inexorável do destino, que a tudo destrói, e, por outro, a intensidade máxima do que resiste ao destino, a figura colossal do herói”.
Ao impor ao idoso o destino que o assola como incapaz, como um retardatário ou um ser em uma decadência irreversível ou até mesmo um objeto biológico que não se encontra em pleno funcionamento devido natureza finita que nos deifica resta assim pensar o lado que resiste e que pode resistir. Esse lado é heroico, pois resiste não contra a própria natureza, mas como um movimento de contraposição a fatalidade criada a priori.
Nietzsche (2012) exprimia:
O espirito transformado em besta de carga se sobrecarrega de todas as coisas por mais pesadas que sejam. (…) o espirito se torna leão. Pretende conquistar sua liberdade e ser o rei de seu próprio deserto. (…) Para sair vencedor, quer lutar com o grande dragão. (…) “Tu deves”, assim se chama o grande dragão. Mas o espirito do leão diz: “Eu quero” (NIETZSCHE, 2012, p. 33).
Tal passagem se encaixa bem com os rótulos que giram em torno da velhice. Rótulos esses que são, muitas vezes, falsos e que obstruem a natureza criadora do ser humano. O “Tu deves” a que Nietzsche se refere a todo imperativo que designamos ao outro como uma fórmula que necessariamente proporcionará o certo, o bom. Enquanto que o “Eu quero” é o contra ponto, o clamor que enaltece uma vontade puramente pessoal que discorda e que se encarna em autonomia. O
Não se trata de uma revolução acerca da liberdade sem precedentes. Sabe-se que a velhice é complexa demais, como foi mostrada anteriormente pelas diversas concepções, para encerrar-se na visão aqui demonstrada. Porém, não exclui a tentativa de ver o envelhecimento não como um fim, mas como uma fagulha de recomeço, refutando a ideia de que a velhice é depósito de arrependimentos.
A isto Nietzsche (2012, p. 33) se refere: “Criar valores novos é coisa que o leão ainda não pode, mas criar a liberdade para criar novamente, isso pode fazer a força do leão. Para criar a própria liberdade e dizer um sagrado não, mesmo perante dever, para isso meus irmãos, é preciso o leão”.
Como dito, entre as transformações do espírito, o leão ainda não é capaz de criar novos valores. Porém já deu o primeiro passo para essa conquista, semelhante a um processo de empoderamento. Analogamente a um velho que percebe que é algo muito além do que o moralismo conceitua. E agora, para se afastar de todo os conceitos já existentes e poder fazer emergir uma nova perspectiva o espirito do leão se faz criança:
Que poderá a criança fazer que não haja podido fazer o leão? Para que será preciso que o leão que ataca se transforme em criança? A criança é inocência, esquecimento, um recomeço, um brinquedo, uma roda que gira por si própria, movimento primeiro, uma santa afirmação. Sim, para o jogo da criação, meus irmãos, é preciso uma santa afirmação. O espírito quer agora sua própria vontade. Tento perdido o próprio mundo, quer conquistar seu mundo (NIETZSCHE, 2012, p. 33-4).
Parece que para criar novos valores na velhice, aqui discutida, é necessário ser um velho-criança conforme ensina Nietzsche. Pois a criança não teme experimentar-se, devido ser “roda que gira por si própria”. A analogia de Nietzsche é sábia dado que a criança possui as amarras sociais ainda frouxas conservando assim uma inocência e, a comparação do idoso com a criança não recai mais apenas no foco da dependência e sim na capacidade de ainda poder esquecer, aprender e recomeçar.
Ainda, o filósofo supracitado já alertava que a criação é acompanhada de dor. Sair de um ponto de vista e se propor a fazer diferente é caminhar contra a multidão, remar contra a maré consequentemente aumentando as chances de ser repreendido ou julgado. “Acima deles te elevastes, mas quanto mais alto sobes, tanto menor te vêem os olhos da inveja. E ninguém é tão odiado como aquele que voa diante de todos. (…) Como quererias renascer sem primeiro te reduzistes a cinzas?” (NIETZSCHE, 2012, p. 63).
A sociedade ocidental é acostumada a ver o idoso pelo aspecto das perdas ou da debilidade. Os estudos iniciais acerca do desenvolvimento humano não consideravam o velho como um alguém em potencial capaz de evoluir. Prova disso é que Skinner considerava desenvolvimento e envelhecimento como inversamente proporcionais conforme diz Friedan (1993) citado por Papalia e Feldman (2013). Tal visão está mudando e vale salientar que para o aprendizado ocorrer é necessário abertura para isso e não imposição ou uma série de proibições. Nesse aspecto Martin Buber (2014) fala sobre a abertura dada em uma relação inter-humana que consiste em querer:
(…) encontrar também na alma do outro, como nela instalado, e incentivar aquilo que em si mesmo ele reconheceu como certo; já que o certo, então deve também estar vivo no microcosmo do outro como uma possibilidade dentro outras possibilidades; o outro deve apenas abrir-se nesta sua potencialidade e esta abertura dá-se essencialmente não através de um aprendizado mas através do encontro, através da comunicação existencial entre um ente que é e um outro que pode vir a ser (BUBER, 2014, p. 149-150).
Esse tipo de relação que ensina Buber (2014) é recíproca e sem reservas. Percebe-se que é diferente de um encontro onde o outro já se posta como superior, por ser jovem, fisicamente mais forte, detentor do saber “correto” e com discursos pré-estabelecidos sobre a pessoa que se posta em sua frente, sendo ela velha ou não. Está aberto é semear uma relação anterior a qualquer conceito.
Considerações finais
Diante do exposto, falar em considerações finais seria um equívoco. Ao se falar do envelhecimento, da velhice ou do velho é algo que parece se caracterizar por reticencias e não por um ponto final. A intenção do presente estudo é poder enaltecer esse momento da existência por meio de uma ótica que privilegie a possibilidade e não a fatalidade.
Então, cabe aqui admitir que o presente manuscrito não encerra o assunto e nem descarta outras visões. Pelo contrário, o trabalho possui lacunas ainda não refletidas, pontos não abordados o que reforça ainda mais a necessidade de comunicação entre as diversas áreas que se ocupam e se preocupam com esse tema e a produção de mais escritos que o abordem.
Assim, acredita-se que a velhice precisa ser entendida buscando constantemente atentar-se para aquele que a vive e que a significa. O cuidado com a velhice é perceber como esta é pra você ou para mim. Envelhecer é um exercício de autoconhecimento que dura por toda vida. Não trata de uma visão romântica ou positiva sobre a velhice que se esquece do sofrimento. Por outro lado, é notório que o sofrer se encontra desde o nascimento e nem por isso todas as fases da vida são definidas dessa maneira.
A velhice não pode ser reduzida, ser acorrentada em valores morais rígidos constituídos sócio-historicamente. Ela deve ser algo mais, que não cabe definir aqui por parecer não ser possível. Entretanto, no momento, este é o posicionamento por meio de Nietzsche (2012) encerra a reflexão proposta: “Que vosso amor à vida seja amor pela mais elevada esperança e que vossa mais elevada esperança seja o mais alto pensamento da vida. Mas vosso pensamento mais alto deveis ouvi-lo de mim e é este: o homem é algo que deve ser superado” (p. 50).
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Autor
Carlos Eduardo Soares Reis – Bacharel em Psicologia pela Faculdade Maurício de Nassau/FAP – Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.