1075 O Diferente Mora Ao Nosso Lado

Da minha pesquisa, observei que o portador de necessidades especiais tem alguns direitos que muitos não sabem

Ana passava pela rua do consultório onde atendo quando a placa chamou a sua atenção. Não entrou. Passou direto. Como era o caminho de volta do seu trabalho para casa, a placa continuava chamando o seu olhar todos os dias.

Um dia, resolveu entrar e fazer algumas perguntas – era uma mãe aflita com uma história intrigante que carregava há dezesseis anos.

Marcou, com a secretária, uma conversa comigo, o pai também se faria presente. Nessa conversa, ficou claro para mim que os pais do Antônio – que tinha 16 anos e estava cursando a 7ª série numa escola pública de São Paulo – duvidavam dos seus conhecimentos no âmbito da leitura e escrita. Afirmavam não saber o que acontecia com o filho e gostariam que eu fizesse um diagnóstico psicopedagógico.

Nesse diagnóstico cuidadoso que durou dez sessões com o Antônio, as descobertas e surpresas foram surgindo.

Ótimo desenhista, apesar de um traçado de linhas irregulares; preenchia toda a folha de papel com muitos pássaros, árvores, nuvens, sol… Paisagens repetitivas em todos os desenhos! Déficit criativo!? Já as histórias contadas (baseadas no desenho), mostravam bastante criatividade, imaginação e uma acentuada preocupação com a preservação da natureza. Nas avaliações de sondagem da escrita e leitura apresentou-se num processo silábico empobrecido. Nos testes psicogenéticos, forneceu respostas condizentes com faixa etária equivalente entre 6 e 8 anos de idade, apresentando um pensamento não conservativo. No teste visomotor, as questões neurológicas só aumentaram. A gestação do Antônio, segundo os pais, ‘passou do tempo’. A mãe, por não sentir ‘nada’ e não ter feito acompanhamento pré-natal, só foi para o hospital porque o pai disse: ‘vamos, já era pra ter nascido’. Agravante: a mãe tomou medicamentos durante toda a gestação por conta de uma hemorragia constante.

Antônio nasceu e ficou internado por 15 dias com ‘infecção no umbigo, sonda na cabeça e em todo lugar’, segundo os pais. “Durante o período natal, pode ocorrer dano no nascimento, seja pela mecânica do parto, ou por anormalidades da placenta ou do cordão umbilical. A incompatibilidade de grupos sanguíneos é responsável pela destruição das células vermelhas do sangue e por lesão nos tecidos cerebrais, no período pós natal, e qualquer tipo de infecção, envolvendo o tecido cerebral no recém-nascido, ou em qualquer época da vida, pode deixar sequelas, na forma de funcionamento mental alterado. Anatomicamente, a maioria dos numerosos danos cerebrais é reduzível à anóxia ou à hemorragia”*. Nos parece, a partir dos relatos da mãe, que algo parecido tenha acontecido com o Antônio antes ou durante o seu nascimento.

Ele apresenta imaturidade cognitiva séria que nos remete às questões de ordem neurológica. Não conseguiu, até o momento, ser alfabetizado, mesmo tendo iniciado a sua vida escolar aos dois anos de idade. Aprende o possível para as suas limitações mentais. Durante o processo diagnóstico, busquei a escola atual do Antônio e escutei, pela própria diretora, que ele já tinha vindo de uma escola especial com objetivo de inclusão. Vinha passando, desde então, por progressão continuada e só poderia ser retido na 8ª série (mudança de ciclo). Sem ler nem escrever!

O que mais chamou a minha atenção, nesse caso especificamente, e por isso estou dividindo-o com você, é o fato de, apesar dos pais afirmarem ter procurado auxílio médico e profissional desde que o Antônio nasceu, nenhum deles conseguiu ser claro o suficiente para que esses pais pudessem entender a real limitação do filho. Depositavam nele, principalmente a mãe, uma expectativa muito além do que ele poderia retribuir.

Hoje, aos 16 anos, o Antônio é um excelente goleiro, adora futebol, gosta de desenhar e defender a natureza. Com um trabalho efetivo e continuado numa escola especial de qualidade poderá, em muitos aspectos, ampliar as suas potencialidades. Cabe a essa família entender e aceitar as reais possibilidades dele quanto ao seu desenvolvimento educacional. O incentivo e estímulo devem focar o desenvolvimento da autonomia pessoal e social do Antônio frente às dificuldades do mundo.

Uma das preocupações da mãe, após a devolutiva que fizemos, foi: ‘e agora? Temos que conseguir uma aposentadoria para ele’. Aquela racionalidade num momento emocional frágil, despertou-me a curiosidade. O que, realmente, o portador de necessidades especiais tem direito, por lei.

Da minha pesquisa, observei que o portador de necessidades especiais tem alguns direitos que muitos não sabem, tais como:

  • Aposentadoria especial – é preciso comprovar que a renda familiar não ultrapassa um salário mínimo (PREVFone: 0800780191);
  • Curatela – é a pessoa designada para defender os direitos, receber e administrar pensões, bens e enfim defender aquele que por deficiência mental ou física for incapaz de fazer isto por si próprio – a pessoa que se propor a ser o curador deverá entrar com o pedido no Ministério Público, preferencialmente através de um advogado;
  • Escola especial – o portador de necessidades especiais tem o direito a uma escola que esteja de acordo com suas necessidades. A Constituição federal e diversas leis garantem isso;
  • Passageiro especial (carteirinha) – transporte público gratuito de ônibus, metrô e trem metropolitano, em alguns casos com direito a acompanhante – faz-se necessário tirar uma carteirinha de passageiro especial na Secretaria Municipal de Transporte da sua cidade (Em São Paulo, ligue para 156 e busque o posto de atendimento mais próximo de você);
  • Transporte interestadual – o transporte interestadual, de ônibus, também pode ser gratuito, para o deficiente carente;
  • Isenção de IPI para compra de carro – pela legislação em vigor, o responsável pela criança/pessoa autista e/ou deficiente mental, poderá adquirir um carro novo com o desconto do IPI. Esta lei já existia para os deficientes físicos, tendo sido ampliada para atender aos deficientes mentais, na pessoa do responsável.

O número de brasileiros portadores de algum tipo de deficiência, seja ela física, visual, auditiva, múltipla, surdocegueira ou intelectual, chega a 14,5% da população do País, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o que resulta em um total de quase 30 milhões de cidadãos que convivem com preconceitos e com seus direitos reduzidos. A começar pelo direito de ir e vir. A Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência e Mobilidade reduzida (SMPED), da Prefeitura Municipal de São Paulo, lançou uma cartilha – “Dicas de Relacionamento com as pessoas com deficiência” – numa linguagem rápida e simples buscando conscientizar as pessoas da importância de se eliminar preconceitos com respeito e entendimento.

Imagino que, inconscientemente, os pais do Antônio sabiam sim que havia algo diferente, mas necessitavam ouvir do outro de uma forma clara e direta, inclusive porque apresentam um nível cultural e educacional de baixo rendimento. Não podemos nos esquecer, como profissionais da área de saúde e educação, que devemos adequar a nossa linguagem aos ouvidos dos nossos pacientes. De nada adianta uma linguagem rebuscada se ela não fizer sentido nem tampouco atingir os objetivos desejados. A clareza é fundamental em qualquer processo de diálogo – ainda mais quando podemos, com esse diálogo, ajudar a escolher caminhos.

Finalizando, gostaria de mostrar a verdadeira sabedoria da rate de viver! Solicitei que o Antônio desenhasse uma família onde alguém não estivesse bem e, depois, justificasse. Fez um desenho rico em detalhes, com hospital, ambulância, carros, casas, orelhão, pessoas em pé e uma deitada. Ao terminar, me disse, enquanto eu anotava a sua fala: “família não pode abandonar o que está doente, nem desprezar. Vou pedir para por um negocinhos também: que Deus ama a gente do jeito que a gente é e não do jeito que os outros pensam”. Despensa comentários. Sugere reflexão.

BIBLIOGRAFIA

*Clawon, Aleen. Bender Infantil: manual de diagnóstico clínico. Trad. Por Jurema Alcides Cunha. Porto Alegre, Artes Médicas, 1980.

*http://www.especialmenteser.hpg.ig.com.br/noticias/direitos.htm

*AACD – www.aacd.org.br

*Apabex – www.apabex.org.br

*No link abaixo você encontra a cartilha na íntegra:

www.prefeitura.sp.gov.br/arquivos/secretarias/deficiencia_mobilidade_reduzida/programas/0019/Manual_de_Convivencia.pdf

Publicado em 28/10/2010 – 11:33:00

Autor

Luciana Macedo Fernandes – Pedagoga / Psicopedagoga

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